Sobre otários e vigaristas: perseguindo um tema em John Searle e Edgar Allan Poe – Número 85 – 12/2012 – [324-330]

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Wang Li faz passar algumas pranchas por baixo da porta de um quarto fechado. Cada prancha traz impresso um caractere da escrita chinesa e, juntas, formam uma pergunta que pode ser assim traduzida: Quem é Charles Dodgson? José, dois arquivos e um manual estão no quarto.

José ignora de modo pleno o idioma chinês e é incapaz de distinguir os signos da escrita chinesa dos signos da escrita árabe ou venusiana. José sequer sabe que aquelas formas impressas nas pranchas que acabaram de passar por baixo da porta são entendidas como signos por certos homens. Não obstante, José é fluente na língua portuguesa e é capaz de  ler com desenvoltura instruções escritas nesse idioma. Enfim (mas isso pouco importa), José também ignora quem é Charles Dodgson.

Cada arquivo no quarto possui uma cor diferente: Um deles é azul e o outro é vermelho (talvez aqui se devesse acrescentar que José não é daltônico, mas o leitor por certo acharia essa ressalva despicienda). Ambos guardam um número muito grande de pranchas em suas gavetas e, em cada uma dessas pranchas, há um caractere chinês impresso.

O manual contém instruções precisas, redigidas em português e endereçadas a José. Essas instruções determinam as regras pelas quais as formas impressas nas pranchas que estão no chão do quarto, perto da porta, devem ser correlacionadas a certas pranchas guardadas no arquivo azul e como estas, por sua vez, devem ser correlacionadas a certas pranchas mantidas no arquivo vermelho. Estas últimas, enfim, segundo as regras havidas no manual, devem ser passadas por baixo da porta.

Wang Li, que permaneceu no corredor enquanto todos esses eventos aconteciam no interior do quarto, recolhe as pranchas do chão e nelas lê: Lewis Carroll.

Pedro, que durante essa aventura mantivera-se discreto, no fundo do corredor, assoma à porta do quarto fechado, escreve um bilhete e o faz passar pela fresta. Nesse papel se pode ler, em bom português, a seguinte pergunta: Qual é a estrela matutina? José recolhe o bilhete e (no próprio verso daquele papelucho) escreve: A estrela matutina é a estrela vespertina, devolvendo o bilhete pelo caminho de sempre. Pedro, então, recolhe o papel do chão, lê a resposta  que nele foi escrita e entende que a estrela matutina e a estrela vespertina são um e o mesmo corpo celeste (que, aliás, não é uma estrela, e sim o planeta Vênus, mas isso não basta para afirmar que José e Pedro não leram Frege (1978 [1892]) e nem que o primeiro está mentindo para o segundo).

Do ponto de vista de Wang Li e Pedro (que se pode chamar de perspectiva externa), a primeira resposta (Lewis Carroll) é tão boa quanto a segunda (A estrela matutina é a estrela vespertina). Mas, do ponto de vista de José (que se pode chamar de perspectiva interna), a primeira série de eventos é bem diferente da segunda: Naquela, figuras são correlacionadas de acordo com uma certa sintaxe, de modo a formar uma sentença vazia de significado para o habitante do quarto; nesta, de modo distinto, José compreende a pergunta escrita no bilhete e o conteúdo de sua resposta se adequa ao conteúdo da questão proposta por Pedro.

A distinção entre essas duas perspectivas é o que há de melhor no Argumento do Quarto Chinês[1], de John Searle (1980). A inteligência artificial (IA), em sua versão forte[2], afirma que o quarto habitado por José é uma mente e que toda mente é nada mais do que um computador capaz de receber inputs, processá-los segundo uma sintaxe determinada, e devolver outputs ao mundo externo. Ao identificar a mente ao computador, ao não distinguir entre processos sintáticos que incidem sobre formas e processos cognitivos que envolvem a compreensão de conteúdos semânticos, a IA (em sua versão forte) negaria o óbvio: Que José, ao manipular os signos chineses, é mera instância de execução de um programa computacional mas que, ao responder sobre os corpos celestes, entende o conteúdo dos símbolos que lê e escreve. Ao identificar a mente ao computador e ao defini-los como máquinas de manipulação de valores formais de acordo com certas regras sintáticas, a IA seria incapaz de explicar (e, menos ainda, de reproduzir) os processos cognitivos de José.

O argumento de Searle revelou tamanha força que serviu como a pá de cal no túmulo de boa parte dos projetos da IA. Essa disciplina nunca mais se recuperou do golpe e apenas sua vertente mais fraca (a qual afirma que os computadores servem apenas para simular processos cognitivos e não para reproduzi-los) ainda goza de alguma credibilidade.

O que torna forte um experimento mental? Quais as suas condições de felicidade[3]? Não se trata de justificá-lo, nem de definir o valor de verdade de suas proposições. Interessaria aqui descrever as virtudes (que pertencem à letra) e a fortuna (que é circunstância discursiva) dessas peças que se batem em arenas florentinas. Cada uma delas é uma pequena joia capaz de instaurar mundos povoados por estranhas entidades: Gatos virtuais confinados em caixas herméticas, persas que enfrentam gregos e os vencem, flechas imobilizadas em pleno voo, gêmeos que viajam no tempo, hotéis de infinitos quartos, tartarugas velocistas e outras tantas bizarrices.

O elenco de criaturas sugere que o experimento mental é espécie do mesmo gênero da ficção, da fraude e das maquinações (ou, pelo menos, que essas categorias guardam entre si relações de familiaridade[4]). A perspicácia de Goffman (2012, p. 128) alerta que todo embuste experimental deve ser capaz de induzir o participante ingênuo a ter uma falsa convicção a respeito daquilo que está ocorrendo à sua volta. Essa trama ardilosa, quando bem sucedida, falsifica uma parte do mundo, desarranjando modelos que até então aparentavam estabilidade e serviam para alimentar a crença do participante em sua própria segurança. Quando o tapete é enfim puxado pelo embusteiro, o participante tomba, despertando de seu sono dogmático com a firme convicção de que é um otário. Nos experimentos mentais, são os próprios seres imaginados que fazem as vezes de néscios. Aquiles, no paradoxo eleata, talvez seja o paradigma desses casos: Seu esforço é patético[5] pois sua performance, outrora fluida, executa um staccato de suspensões infinitas e tal fraseio, que lhe é imposto, torna inatingível o compasso seguinte, onde repousa a tartaruga.

Boa parte da força de um experimento mental reside na oportunidade, que oferece ao leitor, de ver com os olhos do embusteiro (espectador privilegiado da trama). Esse olhar se torna possível quando o sujeito ocupa certo ponto de visada arquimediano, posto fora do mundo instaurado pelo argumento, a partir do qual se torna possível alavancar uma apreensão objetiva[6] da maquinação em curso. Assim, além das perspectivas interna e externa (sublinhadas por Searle no Argumento do Quarto Chinês), seria preciso que se acrescentasse a visão do próprio filósofo-vigarista, da qual o leitor logo se apropria e, ao fazê-lo, se torna cúmplice de um ardil: Aquele que induz Wang Li (postado no corredor e dotado da perspectiva imposta por  tal localização) a acreditar que a resposta obtida (Lewis Carroll) é fruto de um ato intencional, enquanto o embusteiro bem sabe que ela é o produto de um processo mecânico que a instância José executa em um vazio semântico.

O sujeito que perscrutasse as exibições do autômato jogador de xadrez do Barão von Kempelen (1734-1804) era obrigado a se valer de uma perspectiva bem distinta. Edgar Allan Poe (2003 [1836], p. 385-414), como tantos em sua época, ficou intrigado diante das exibições de The Turk, um dispositivo artificial que se apresentava como capaz de jogar xadrez sem a intervenção humana. Sabe-se que tal artefato foi construído pelo Barão, em 1770,  para o entretenimento da corte da Imperatriz Maria Tereza. Em seguida, e durante os próximos 84 anos, The Turk se exibiu em inúmeros salões na Europa e nos Estados Unidos, até ser destruído por um incêndio, em 1854. Na sua carreira, conseguiu vencer, com pouco esforço, personalidades como Benjamin Franklin e Napoleão Bonaparte. De fato, apenas duas derrotas são atribuídas ao invento de Kempelen, além de alguns poucos empates e centenas de vitórias (Reininger, 2011).

Diversos mágicos, literatos, jornalistas e homens de ciência tentaram demonstrar, com sucesso desigual, que The Turk não poderia ser uma pura máquina. Em 1836, quando Poe se debruça sobre o problema, havia algum consenso, entre as pessoas ilustradas, de que haveria um homem oculto dentro do invento. Vale a pena referir que a primeira demonstração convincente e detalhada dessa hipótese, capaz de descrever o mecanismo de funcionamento do artefato, foi realizada por um enxadrista, e não por um cientista ou filósofo, o qual testemunhou ser o homem oculto dentro da máquina[7].

Ao olhar do espectador, The Turk era um armário retangular em cujo tampo superior havia um tabuleiro de xadrez. Sentado junto ao móvel, numa posição efeminada e com os braços apoiados sobre o tampo, um boneco de forma humana, vestido à turca, realizava os lances das partidas, movimentando os braços e tomando as peças pelas mãos. Como se não bastasse, o boneco dizia xeque quando o lance assim o exigia e movimentava a cabeça e os olhos em momentos críticos da partida, fazendo crer que fosse capaz de cálculo e dotado de espírito. As faces anterior e posterior do móvel traziam algumas portas e gavetas. Estas, quando abertas, permitiam a visão do interior do invento, repleto de cilindros, engrenagens, rodas dentadas e coisas do tipo, além de vãos pelos quais o olhar do espectador atravessava o engenho de maneira transversal. A sequência de abertura e fechamento dessas portas e gavetas sempre antecedia a performance do autômato e procurava convencer a platéia de que não havia qualquer pessoa escondida no interior da máquina. O tronco e as pernas do boneco também possuíam portinholas, as quais eram abertas para a inspeção do público, que nada percebia além de partes mecânicas no interior do simulacro.

Poe assistiu a inúmeras apresentações do autômato e isso talvez revele o quanto ele ficou intrigado com o invento. Ele acreditava que, por trás de cada exibição do suposto autômato, haveria um ardil muito bem tramado que induzia a plateia a acreditar na natureza mecânica do jogador. Poe se recusava a acreditar no que seu olhos lhe sugeriam e sua crença na presença de um homem escondido no interior da máquina é anterior às evidências empíricas que se esforçou por colecionar em favor de sua tese. De fato, em uma sarcástica nota de pé de página[8], Poe afirma que as evidências empíricas da presença de um homem oculto no interior da máquina serviriam apenas para convencer alguns de seus amigos que não se deixavam influenciar pelo rigor das demonstrações a priori. O argumento dedutivo proposto por Poe era o seguinte, aqui apresentado na forma de silogismo: Os movimentos dos artefatos mecânicos são previamente determinados. Ora, os movimentos das peças de xadrez durante o jogo não podem ser previamente determinados. Logo, os movimentos do jogador de xadrez do Barão von Kempelen não são determinados por um artefato mecânico, mas sim pelo espírito humano[9].

Mas é preciso adequar a experiência à razão pois a distância entre uma e outra é fonte de erro, angústia e mal-estar. É no olhar do espectador que essa distância se constrói. Esse olhar é guiado de maneira precisa pelo mestre de cerimônias, que vela e revela o interior do invento, fazendo com que se perceba o que não foi visto: A ausência humana dentro da máquina. É por meio de uma sequência fixa de abrir e fechar das portas e gavetas do engenho que o espectador incauto é induzido a acreditar que viu, de um só lance, todo o interior do armário que guarda as engrenagens do jogador. Mas é certo que seu olhar alcançou apenas espaços distintos em momentos distintos, permitindo que o homem escondido na máquina se desloque de um lado para o outro, mantendo-se oculto aos olhos da multidão. Quando as portas e gavetas enfim se fecham e a partida inicia, o enxadrista oculto pode então operar os mecanismos que fazem funcionar o simulacro: Questão de ordem técnica e não epistemológica.

Não se pode dizer que Poe, ao fim e ao termo, alcance uma perspectiva objetiva da cadeia de eventos em curso, equivalente àquela alcançada pelo filósofo no Argumento do Quarto Chinês. A perspectiva de Poe se mantém sempre interna. Ele participa do ardil na condição de otário, de espectador que deve ser induzido a acreditar no que é falso. Assim, a perspectiva de Poe é em certo aspecto familiar à perspectiva de Wang Li: Os mirantes em que ambos se encontram não lhes permitem uma visão arquimediana dos eventos. Suas visadas lhes revelam apenas seções discretas da realidade e não alcançam os pontos-cegos que o filósofo e o mestre de cerimônias mantêm invisíveis. Mas, ao contrário do chinês, Poe julga haver algo errado na série de acontecimentos que se lhe apresenta. Ele acredita estar sendo vítima de um engodo. Essa sua crença lhe parece justificada por outras crenças anteriores, relativas às naturezas do homem, da máquina e do jogo, segundo as quais seria impossível a existência de um autômato jogador de xadrez. E é justo esse sono dogmático, essa certeza da impossibilidade de um absurdo, que lhe impede a queda ao solo, quando o maquinador puxa o tapete de sob os seus pés. Seu ceticismo diante da pura máquina é reforçado e justicado pelos dogmas de sua metafísica, que lhe permitem desacreditar da trama em que se viu enredado pelo engenho de Kempelen.

Desde a época de Poe, mudaram as concepções acerca da natureza dos jogos, dos homens e das máquinas. Hoje, operam com desenvoltura e felicidade sistemas de maquinações distintos e a crença em autômatos capazes de jogar xadrez com maestria é algo tão trivial que o invento de Kempelen dificilmente atrairia alguma atenção. Essa reviravolta permite que encerremos este ensaio propondo um pequeno experimento mental, decerto outro ardil com sabor de paradoxo: Se o leitor fosse transportado à época de Poe e assistisse a uma das exibições do autômato de Kempelen, seria correto afirmar que ele acreditaria presenciar a performance de uma pura máquina (no que estaria errado). Por outro lado, se transportássemos Edgar Allan Poe ao presente e o fizéssemos presenciar os jogos de xadrez de um autômato atual, seria correto afirmar que ele acreditaria na presença de um homem oculto dentro dessa máquina (no que também estaria errado). Esse quiproquó talvez entretenha os filósofos às voltas com o fantasma exorcizado por Ryle (1949).

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Richard Ybars

REFERÊNCIAS

AUSTIN, John. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990.

FREGE, F. L. G. “Sentido e referência”. In: Lógica e filosofia da linguagem. São Paulo, Cultrix, 1978 [1892].

GOFFMAN, Erving. Os quadros da experiência social: uma perspectiva de análise. Petrópolis, Vozes, 2012.

HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva, 2009.

POE, Edgar Allan. “O jogador de xadrez de Maelzel”. In: Histórias extraordinárias. São Paulo, Nova Cultural, 2003.

REININGER, Alice. Wolfgang von Kempelem: a biography. Viena, East European Monographs, 2011.

RYLE, Gilbert. The concept of mind. New York, Barnes and Noble, 1949.

SEARLE, John. “Minds, brains, and programs”. The Behavioral and Brain Sciences, 1980, nº 3, p. 417-57.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo, Abril Cultural, 1975 (Os Pensadores).


[1] Aqui apresentamos uma versão adaptada desse argumento.

[2] A distinção entres as versões fraca e forte da inteligência artificial também está em Searle (1980, p. 417).

[3] Cf. Austin (1990, p. 29-37)

[4] Cf. Investigações filosóficas, §67.

[5] Do grego path?tikós, ‘comovente’, “que tem capacidade de provocar comoção emocional, produzindo um sentimento de piedade, compassiva ou sobranceira, tristeza, terror ou tragédia” (Dicionário Houaiss da língua portuguesa, verbete ‘patético’).

[6] Cabe ressaltar que, no Argumento do Quarto Chinês, tal objetividade não exige o desinteresse por parte do sujeito, mas apenas que ele se posicione em um dado mirante (como se a ótica e a psicologia corressem por trilhas paralelas).

[7] Jacques Mouret era um forte jogador, discípulo do grande Philidor, e vendeu o segredo da máquina à revista francesa Le magasin pittoresque, em 1834: Mouret revelou ter se escondido dentro do suposto autômato, durante várias exibições, e ali operado os seus mecanismos, longe das vistas dos espectadores. Hoje, são conhecidos os nomes de pelo menos oito operadores, todos recrutados entre os enxadristas mais fortes da época.

[8] Poe (Op. cit, p. 402).

[9] É irresistível afirmar que o termo menor do silogismo se baseia numa concepção equívoca  do jogo de xadrez .

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.