Elogio de uma Tarde Inútil – Número 72 – 09/2012 – [235-243]

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Ao contrário do que se diz por aí, o pessimismo não é atributo de gente que só fica feliz quando as coisas não vão bem. De jeito nenhum. Isso é mentira espalhada pelo adversário. Não é posição que se deva levar a sério, pela simples razão de que, na história das idéias, o otimismo jamais produziu um só pensador interessante. Quem pensa seriamente sobre o mundo não costuma sorrir feito bobo. O otimismo é a razão de biquíni, com um drinque de abacaxi na mão — o quinto —, em pleno gozo de suas férias. Seria bom se a vida fosse um domingo de sol no Taiti. Acontece que não é. Os pessimistas – melhor chamá-los de céticos – sabem disso. Nós, os botafoguenses, também.

Em essência, o ceticismo — de venerandíssima tradição filosófica — sustenta que estamos sós no mundo. Um dos nossos santos padroeiros, o alemão Schopenhauer, torcedor do Botafogo, dizia que o universo é obra de uma vontade indiferente. Não poderíamos estar mais de acordo. Ninguém liga para as nossas dores. Ninguém vem em nossa ajuda. Pior: é bem possível que ainda venham nos atrapalhar. Dependemos exclusivamente de nós mesmos. Eis algumas constatações que ajudam a temperar a alma em aço puro. Em outras condições históricas, teríamos trazido a nau de volta a Ítaca ou descoberto a América. No caso, como o dia estava calmo, fomos ao Caio Martins. Éramos 6228 pessimistas.

Reparem: em dia propício ao exercício profundo do ceticismo — temperatura mais baixa do ano (17 graus, três Sibérias para um carioca), chuva e vento lambendo o rosto de cada uma daquelas seis mil almas céticas —, fomos ao estádio assistir a um jogo da segunda divisão cujo resultado, fosse qual fosse, não alteraria significativamente nossa posição na tabela. Mas estávamos lá. Este é o ponto, e chego a pensar: talvez por isso mesmo estivéssemos ali, para provar nosso amor incondicional ao time. Na nossa camisa podia-se ler “Botafogo no coração”; na dos adversários, o Marília, a palavra “Marilon”. De um lado, um time sem patrocinador; do outro, um time patrocinado por uma butique (ou um armarinho, ou um medicamento contra febre aftosa, sei lá). Essa é a realidade da segunda divisão. Tudo é meio pobrinho e meio sem importância. No entanto, a cada jogo o Botafogo tem trazido mais gente para o estádio. Isso é maravilhoso e nada tem a ver com a máxima de Nelson Rodrigues segundo a qual “o torcedor do Botafogo é o único que compra seu ingresso como quem adquire o direito, que lhe parece sagrado e inalienável, de sofrer”. Não, senhor. É apenas uma questão de honradez. Quando o time está no inferno, ele precisa de quem lhe estenda a mão. Estamos aqui para isso. Comparecer na vitória é fácil. Difícil é ir a jogo contra time que veste “Marilon”.

Não esperamos muito em troca, apenas que os jogadores se esforcem. O resto, aceitamos. Não sou moralista, mas desconfio que daí se possam tirar boas lições de ética. Outro dia li a seguinte notícia num jornal: “O museum kunst palast (sic) de Dusseldorf acolherá em breve uma obra denominada “Spectacular”, da dupla Michael Elmgreen & Ingar Dragset. No espaço de um dia, todo o acervo do museu será desmontado e removido de seu lugar habitual por uma empresa especializada em transporte de obras de arte, acomodado em caminhões e reinstalado exatamente como estava, depois de ser levada para uma voltinha em torno do museu. De acordo com o release distribuído pelo museu, ‘através deste deslocamento temporário da coleção permanente, Elmgreen e Dragset pretendem chamar a atenção do público para a beleza de se fazer algo inteiramente inútil’ ”. Parece idiota, e vai ver que é mesmo. Mas é disso que se trata. O rearranjo idêntico dos objetos de um museu, assim como a ida a um estádio de futebol para ver o time do coração jogar contra um adversário patrocinado pela(o) Marilon, são gestos absolutamente inúteis. Por isso mesmo são bonitos. Quem sabe até importantes.

No caso da tarde de chuva de 10 de agosto de 2003, seis mil e tantas pessoas tiritavam de frio para dizer a mesma coisa: “Nós somos sujeitos decentes, capazes de amar por amar, intransitivamente, sem nenhum motivo enviesado. Não queremos ser os maiores do mundo nem os mais queridos do mundo. Somos botafoguenses, e isso nos basta”. Em um mundo no qual cada gesto é pensado em relação à sua eficiência, em que tudo é estratégia, quando não artimanha, ir ao estádio torcer pelo Botafogo é verdadeiramente libertário. Somos o avesso do utilitarismo. Pelo menos durante 90 minutos, nada do que fazemos serve para tocar a vida adiante.

Mas é importante notar que, se somos desapegados, não somos humildes. Ao contrário, somos até fidalgos. Admiramos a nossa excepcionalidade. No dia em questão, o estádio Caio Martins inaugurava seu novo placar eletrônico. É o mais moderno da cidade. No caminho para o jogo, em pleno vão central da ponte Rio-Niterói, um amigo lançou um olhar perdido em direção ao mar e suspirou baixinho, mais para si do que para os amigos no carro: “Se Thomas Alva Edison fosse vivo, estaria orgulhoso…”. Foi como se dissesse: “O novo placar é a consumação de todos os esforços do bom inventor”. Em silêncio, todos consentiram. Mais tarde, no estádio, um torcedor ao meu lado apontou um prédio em construção cujos apartamentos mais altos dão vista para o gramado. “Isso é que é lançamento imobiliário”, balbuciou maravilhado. Podia estar diante do Taj Mahal que seu semblante não seria outro.

Uma das boas coisas do Botafogo é o fato de que os grandes jogadores que passaram pelo clube geralmente torcem pelo Glorioso. Em momentos de angústia, quase todos aparecem para prestar solidariedade e apoiar o time. Agora então, que temos um time de meninos esforçados, um bom técnico e um grande presidente, a maioria comparece religiosamente. No dia em que o novo Caio Martins foi inaugurado (fizemos uma reforma no estádio), lá estava Nilton Santos, sem dúvida o maior botafoguense vivo. Viera de longe, de Brasília, para prestigiar o esforço. Nas dependências do Botafogo, por onde anda é aplaudido. Quem está falando se cala. Se pudéssemos, abaixaríamos todos a cabeça e poríamos o joelho no chão, as mãos ambas postas. Acredito que não deva ser fácil para os jogadores entrar em campo com Nilton Santos na tribuna. Fico imaginando um pintor que, momentos antes de pincelar seu primeiro afresco, ouvisse do sacristão: “Michelangelo! Você aqui rapaz! Veio dar uma espiadinha?”. Naquele domingo o time de gigantes não era menos imponente. Cerrando fileiras com os torcedores anônimos era possível avistar Paulo César Lima, Jairzinho, Roberto e Nilson Dias. Três campeões do mundo e um grande jogador que teve a má sorte de jamais jogar num time à sua altura. Seis mil cabeças olhavam para a tribuna de honra em temor reverencial. O clima era solene.

A partida começou com um minuto de silêncio. Pensei em Roberto Marinho, que falecera três dias antes. Devo ter dito isso a alguém. Percebendo meu erro, um torcedor gentil se apressou em me corrigir, sussurrando gravemente: “Não é para o Roberto Marinho não. É para o pai do Levir Culpi, o seu Francolino Culpi”. Em seguida, assumiu um ar genuinamente pesaroso. Levir Culpi é o técnico do Botafogo. O minuto de silêncio durou exatos 60 segundos. Um prodígio de respeito. Nós cuidamos dos nossos. O torcedor pesaroso permaneceu ensimesmado por mais um bom tempo. Só voltou a si na ocasião da primeira falta contra o Botafogo, a um minuto de jogo. Foi quando gritou: “Já é a terceira, hein, seu juiz! Tô de olho!”. A voz agora era outra, de assassino contumaz. O juiz arriscou uma olhadela na nossa direção. Funcionou. Dali por diante, naquela latitude do campo ele pensaria duas vezes antes de apitar contra o time. Uma das grandes vantagens de estádio pequeno é que o juiz está praticamente ao nosso lado. Ouve-se tudo. No jogo anterior, contra o Anapolina (Botafogo 4 x 0 Anapolina), um dos bandeirinhas conseguiu convencer acertadamente o juiz a voltar atrás da decisão de expulsar um dos nossos jogadores. Na saída, foi ovacionado pela torcida (“É bandeirinha! É bandeirinha!”). Olhou para a platéia, encolheu o braço contra o corpo e fez um discreto sinal de ok com o polegar. A torcida delirou.

Aos quatro minutos de jogo, Dill marca o primeiro gol da partida. Com isso, inaugurou o placar. Apareceu seu nome, sua assinatura, a frase (na letra dele mesmo) “Jesus é a paz” e o número da sua camisa: 7. Não podia ser diferente. Na metafísica botafoguense, a única camisa que conta é a 7, a mesma de Garrincha, de Zequinha, de Rogério, de Jairzinho, de Maurício, de Túlio. Só ela teria a autoridade moral e a gravidade histórica para inaugurar o placar mais moderno da cidade. Assim foi feito, provando que quando o Botafogo está em campo há sempre mais coisas entre uma trave e outra além de 23 sujeitos e uma bola. Somos muito devotos do além. Isso pode parecer estranho, visto sermos pessimistas convictos e, como já disse, estarmos convencidos de que não temos ninguém no mundo. Essa é mais uma das sutilezas da alma botafoguense. Não somos agnósticos, muito pelo contrário. O além-mundo alvinegro não é um universo despovoado de espíritos. É exatamente o contrário: todo botafoguense sabe que tem gente demais do lado de lá e que a maioria torce pelo time adversário. Se puderem nos pregar uma peça e nos fazer perder o jogo aos 47 do segundo tempo, não hesitarão sequer um segundo. É por essas e outras que, como se diz por aí, um jogo do Botafogo só acaba quando termina. Até lá, vivemos na mais precavida desconfiança.

Em 1995, numa partida contra um time de São Paulo (não me lembro mais qual), o Botafogo estava ganhando de 4 x 0, no Caio Martins. Ao meu lado, pai e filho comemoravam cada gol como se fosse o último da história. Aos 32 minutos do segundo tempo, numa jogada de sorte, o time adversário bateu a defesa botafoguense e conseguiu marcar seu golzinho de honra: 4 x 1. O pai ficou lívido, meteu o rosto nas mãos e proclamou com voz funda: “Já era” (na verdade, o verbo foi outro). Trêmulo, o menino se agarrou à perna do pai e ambos esticaram o rosto em direção ao céu. Começaram a rezar a ave-maria, baixinho, baixinho. Em matéria de fé, estavam quites com irmã Dulce. É muito difícil não admirar uma torcida assim tão atormentada e valente, cuja condição é mais ou menos aquela descrita pelo pensador jururu Cioran: “Nem um só instante em que eu não tenha consciência de estar fora do Paraíso”.

O mundo é indiferente, sim, mas não custa tentar chamar a atenção. Carlito Rocha, o maior presidente da história do Botafogo, costumava pedir ao roupeiro Aloísio: “Aloísio, sopra as nuvens que estão cobrindo o Cristo. Do jeito que está ele não enxerga o nosso Botafogo”. Na época, funcionava. É claro que aqui embaixo, na terra, contávamos com a ajuda de Garrincha, Didi e Nilton Santos, o que não é pouca coisa. Hoje não temos mais nada. Os velhos heróis se foram e o Redentor já não pode olhar por nós (não jogamos mais no Rio). Precisamos de outros expedientes. Rezar a ave-maria é só um deles. Durante os primeiros anos da década de 80, talvez o período mais negro da história do Botafogo, o irmão mais velho de um amigo meu viu-se diante do seguinte problema: seu filho de cinco anos começava a se interessar por futebol. Fase perigosíssima essa, sobretudo em tempos de Zico. O time da Gávea corrompia despudoradamente o espírito frágil das crianças com suas tentações de Galinho, Raul, Júnior, Leandro, Carpeggiani, Geraldo, Adílio, Andrade e Júlio César. Nós só podíamos oferecer Perivaldo, China, Wecsley e Jérson com jota. O irmão do amigo não teve dúvida. Todo domingo espalhava a camisa do Botafogo por cima da tv, sentava o filho no sofá e lhe entregava um balde de pipoca com um copo de Coca-Cola. Às cinco em ponto ligava o aparelho, mas não sem antes reduzir a zero o volume do som. Em seguida, deixava a criança se deslumbrar com as maravilhas que o time fazia em campo. O time do Atlético Mineiro, isto é. A cada gol de Reinaldo o pai gritava: “Fooo-go!”. Na terceira partida do alvinegro de Belo Horizonte a criança não teve mais dúvida. Canso de encontrá-la nos estádios. É botafoguense roxa.

Quatro minutos depois do gol de Dill, o Marília empata em falha do nosso goleiro. O jogo sequer chegara aos dez minutos e à esquerda e à direita torcedores já começavam a suspirar. O Botafogo é um campo fértil para o estudo dos suspiros. Há toda uma tipologia, do “Ui, ui, ui” baixinho, dito como quem anda na ponta dos pés para não despertar o Cão (uso: um zagueiro nosso faz uma falta dentro da grande área, não sabemos se o juiz viu), aos “ais!” que ricocheteiam no palato como três bolinhas de pingue-pongue — “Ai! Ai! Ai!” (uso: o cobrador do time adversário corre na direção da bola: “Ai!”; chuta: “Ai!”; a bola encobre a barreira e se aproxima do nosso gol: “Ai!”), ao “Hisssss!…” de quem aspira todo o ar do mundo depois de sofrer um quase enfarte (uso: a bola deles bate na nossa trave/passa por cima do nosso travessão/é salva sem querer pelo nosso goleiro), ao gutural e desesperado “Arghhh!!” (uso: acabamos de perder um gol feito ou eles acabam de empatar o jogo). Na ocasião, tivemos direito a dois “Arghhh!!” da primeira modalidade. Aos 12 minutos, Sandro cobrou com violência uma falta, o goleiro rebateu e a bola sobrou para Dill — que cabeceou para fora. Aos 39 minutos, fizemos uma linha de passe na grande área do Marília, mas Leandrão (mais sobre ele no segundo tempo), inteiramente livre diante do goleiro adversário, achou mais educado atrasar a bola.

O torcedor ao meu lado tem um celular. A intervalos regulares liga ou recebe chamado da mulher. O assunto é sempre o juiz. “É um bandido renomado, amor. Renomado!”. Aproveita para dar um recado ao filho: “Cala a boca Pedrinho. Não chora. O Dia dos Pais ainda não acabou. Assim que o juiz terminar de liquidar com o Botafogo eu volto pra casa e a gente vai pra churrascaria”. Além da chuva e do frio, é o domingo dos pais.

Às tantas, a bola é isolada e cai na arquibancada. Na tribuna de honra, alarmado, um cartola se vira para o outro e comanda: “Pachá, pega o binóculo e vê quem vai roubar a bola!”. Depois avisa: “Pachá tem um binóculo de 20 mil euros”. Pachá sorri sem graça, como que embaraçado por não ter um binóculo de 20 mil euros. Seu binóculo foi comprado no camelô. Mas é utilíssimo. Já evitou que umas tantas bolas fossem levadas para casa. No orçamento sofrido do Glorioso, uma bola perdida é menos Gatorade na dieta do atleta.

O primeiro tempo termina e um repórter de tv entra em campo. Alguém espantado comenta: “Até a Globo apareceu aqui hoje”. O torcedor do Botafogo sempre se surpreende com demonstrações alheias de interesse. Pergunta daqui, pergunta dali, e surge a explicação de que é por causa do novo placar. Ao longo das décadas de 70 e 80 passamos tantos anos no desterro — sem títulos, sem sede, sem dinheiro — que acabamos desenvolvendo uma robusta mania de perseguição. Para nós, toda imprensa é rubro-negra; as tevês preferem os times de massa; os juízes privilegiam os clubes de São Paulo. Notícias sobre o Botafogo vêm sempre escondidas nas páginas internas do caderno de esportes e nenhuma rádio importante transmite os nossos jogos. Sinto falta das transmissões com direito aos “Trepidantes”, como são chamados os repórteres de campo da rádio Globo, e, principalmente, lamento não poder mais acompanhar as promoções de fim de jogo, em especial o Prêmio Mortinho em Campo, oferecido pelo sinaf (Seguro Funeral) ao Jogador Mais Inútil da Partida. Nos últimos anos ganhamos vários Mortinhos.

Segundo tempo. Atravessamos o tormento de mais uma bola no travessão — desta feita em chute nosso (Arghh!) — e já começamos a temer que esta tarde seja daquelas em que todos os deuses decidiram previamente se divertir às nossas custas, quando algo inusitado acontece: alguém delibera a nosso favor. Aos dezoito minutos, o bandeirinha assinala um pênalti que passara despercebido de toda a torcida e até do jogador que o sofrera. Um torcedor comenta: “Esse bandeirinha é do Piauí”. Um outro acrescenta, sem um pingo de cinismo: “Grande estado, o Piauí”.

A bola é levada para a marca do pênalti. Os jogadores do Botafogo se reúnem para discutir quem vai cobrar. A torcida prende a respiração. Lentamente, um homem se destaca do bolo e caminha em direção à bola. É Leandrão. (Hisssss!…). Apreensão. Em alguns casos (o meu, por exemplo), pânico. A torcida começa a entoar o “Leandrão, faz um gol pra torcida do Fogão!”. É mais do que um pedido, é quase uma súplica. A torcida sabe do que Leandrão não é capaz. Evidentemente, Leandrão desperdiça o pênalti. A torcida aplaude Leandrão. Ele é ídolo. Isso me lembra de como sempre torcemos pelo jogador errado. Já gritamos “Vi-vi-nho!”, ao invés de Renato Gaúcho. Houve a fase “Chi-cão, Chi-cão, [exclamativo envolvendo a mãe], cabeçudo e orelhão!” no lugar de Waldeir. E “Túlio Ma-ra-vilhaaa, nós gostamos de você” [no ritmo de Fio Maravilha], ao invés de Bebeto (não estou falando do Túlio de 95, mas do Túlio em sua segunda encarnação botafoguense). Um amigo meu costuma dizer que se a torcida do Botafogo estivesse em Jerusalém no ano zero, não hesitaria em cantar “É Barrabás! É Barrabás!”. Consigo explicar muitas coisas do Botafogo. Essa eu não explico.

Uma só vez eu vi as escamas caírem dos olhos botafoguenses. Foi numa tarde de sol no Caio Martins. Bebeto driblou meia defesa adversária e chutou em direção ao gol, com o goleiro já batido. A bola saiu fraquinha, mas na direção certa. Quando estava prestes a entrar, Túlio apareceu não se sabe de onde, encostou o pé na bola, empurrou-a para o fundo da rede e, ato contínuo, ergueu os braços e veio comemorar a façanha perto do alambrado. A torcida estava histérica, num júbilo de dar gosto. Era demais para um dos amigos com quem vou aos estádios (Alexandre Gontijo, o mesmo do Barrabás e do Thomas Edison). Ele não se conteve. Atirou-se na cerca, possesso, aos berros, e gritou a um palmo do nariz de Túlio: “Farsante! Você comemorar esse gol é como o filho do Rockefeller sair por aí gritando ‘Eu fiz a América! Eu fiz a América!’”. Houve um silêncio. A imagem era complexa e precisava de tempo para ser assimilada. Túlio olhava para os lados, meio confuso, querendo saber se estava direito prosseguir na comemoração. Ainda tinha o dedinho espetado no ar quando, aos poucos, um burburinho foi brotando da arquibancada, inchando cada vez mais, até explodir numa das vaias mais estrepitosas da história de Niterói. Túlio aprendeu a nunca mais reivindicar gols alheios. A torcida do Botafogo acabava de se submeter a um saudável exercício de realismo crítico.

No fundo, no fundo, não foi tão difícil assim convencer a torcida do Fogão. Afinal, um dos traços mais profundos da alma cética é sua sólida desconfiança de tudo e de todos. Até mesmo do ídolo. E certamente dos jogadores que fingem se empenhar, mas são enganadores. Numa crônica sobre a torcida do Botafogo, o ex-botafoguense Tutty Vasques lembrou daquela “gloriosa tarde dos anos 80 em que uma muleta decolou da multidão, sobrevoou o alambrado e aterrissou no gramado com o jogo em andamento”. Ou, mais recentemente, no ano do nosso rebaixamento, de quando a torcida promoveu uma chuva de bonecas Barbies — foram mais de cinqüenta —, arremessadas ao campo durante mais um treino melancólico do time. “Como sempre acontece quando o time vai muito mal, a torcida do Botafogo voltou a dar show nas arquibancadas”, escreveu ele, prestes a voltar a torcer pelo seu velho clube. “Nenhuma outra torcida é tão criativa na adversidade […] A do Flamengo grita ‘timinho’, a do Fluminense fica de costas para o campo, a do Vasco pede Edmundo, mas só a do Botafogo trabalha com símbolos tão humilhantes na dialética do velho esporte bretão quanto bonecas e pernas-de-pau”.

Cético: “do grego skeptikós, ‘aquele que observa, que reflete” (Houaiss). Em outra fonte, leio que o cético tem sido historicamente identificado ao ateísta da aldeia. Boa definição. Somos uma torcida que observa, que reflete e, principalmente, que duvida. Para nós, a dúvida é um fim, não um meio. Observe um jogo do Botafogo. Duvidamos de tudo. Duvidamos de pênalti: “Ih, esse ele vai perder”. Duvidamos de placar de 4 x 0: “Agora eles vão virar”. Obviamente duvidamos de todos os árbitros (são flamenguistas). Outro dia, ouvi alguém duvidar da Coca-Cola servida no estádio: “Ouvi dizer que é feita com água da bica”. Nunca vi botafoguense que se preza sair pulando de alegria antes da hora. Nossa história está apinhada de reveses improbabilíssimos. Nossas ironias também são magníficas. O único time do planeta a ter dois jogadores na Seleção de Todos os Tempos — Nilton Santos e Garrincha — ganhou seu mais importante título internacional, a Copa Conmebol, sem a ajuda de nenhum dos dois. Nem deles, nem de Heleno de Freitas, de Jairzinho, de Didi, de Gerson, de Paulo César, de Zagalo, de Amarildo, de Paulinho Valentim ou de Quarentinha. Não. Ganhamos com onze anônimos, dentre os quais um certo William Bacana. A máxima “Há coisas que só acontecem no Botafogo” não existe à toa. Como Drummond, nosso destino também está atravessado por anjos tortos.

Há uma conseqüência prática nessa maneira de enfrentar a vida. Levando em conta que o cético é muito simplesmente aquele que desconfia de toda certeza, é forçoso concluir que toda vez que alguém está cercado de uma multidão que pensa igual não pode haver ceticismo. Ergo, os céticos são sempre poucos. É da natureza da coisa. O Botafogo nunca será, nem deseja ser, um time de massa. Isso seria contrariar nossas crenças filosóficas, nosso espírito irredutível. Time de massa acredita que está certo. Time de massa tem certezas. Como escreveu Sergio Augusto no clássico sobre o Botafogo Entre o céu e o inferno [em dezembro nas livrarias], “torcer por time de massa é como só ler best-seller”. Deus nos livre desse pesadelo. Nunca seremos o Sidney Sheldon. Somos mais refinados. Somos poucos, mas estamos em ótima companhia. Na história da literatura existe uma rica tradição de céticos, todos eles botafoguenses: Swift, Johnson, Juvenal, Machado de Assis. Reparem que todos são donos de um humor finíssimo, cáustico, desses que destroem os lugares-comuns e as certezas idiotas. Não existe sátira sem uma saudável dose de pessimismo. Sei que sorririam ao ver a primeira Barbie aterrissar no campo; desconfio que deixariam o estádio voando na primeira estrofe compactamente obtusa de “Ó, meu Mengão, eu gosto de você…”. Nada mais sem graça do que o triunfalismo obstinado dos otimistas.

Parafraseando Tolstói, todo otimista torce igual, mas cada cético sofre à sua maneira. Somos sólidas individualidades. Enquanto todo flamenguista (ou corintiano, ou colorado, etc) é idêntico ao outro, não existem dois botafoguenses iguais. Na dor, uns rezam, outros lamentam, alguns sussurram, vários lançam Barbies, um joga muletas, outros formam metáforas complexas. Eu, por exemplo, fico de costas.

Na alegria… Bem, na alegria ficamos mais felizes do que o mais feliz dos homens, pois, sabiamente, aprendemos que alegria verdadeiramente imensa é aquela que se conquista com martírio.

Lição prática de ceticismo. Logo depois que o Leandrão perde o pênalti, Camanducaia, jogador do Marília que acabara de entrar, vira o jogo. Detalhe nada insignificante para o botafoguense atento à tortice do anjo: a essa altura o Marília jogava com apenas dez jogadores, enquanto o Botafogo seguia com onze. E mais: o gol teve conotações metafísicas, visto que zerou um saldo positivo que tínhamos com o além. Como disse Alexandre Gontijo: “Pronto. O Misericordioso cobrou a fatura”. Explicação: na partida final do Campeonato Brasileiro de 1995, ganho pelo Botafogo, nosso adversário, o Santos, teve um gol legítimo anulado (graças a Deus) pelo juiz. Seu autor? Camanducaia. Agora, oito anos depois, vinha a retribuição divina. Eu estava de costas, mas pelo menos três pessoas me garantem que o tento foi duvidoso. Seja como for, estávamos preparados. Não nos ocorre que um refresco do destino passe despercebido e não seja cobrado um dia.

Ao meu lado alguém se desespera: “Chega! Nunca mais venho ao Caio Martins! Toda vez é a mesma coisa! Quando não venho, como na semana passada, o Botafogo vence de quatro a zero [Botafogo 4 x 0 Anapolina]!”. No domingo seguinte ele estará de volta, claro, mas a impressão que se tem é que toda vez que o Botafogo vence, no estádio só há vascaíno ou torcedor do Mogi Mirim. Não são poucos os botafoguenses que vão ao estádio no dia em que perdemos de cinco a zero e arranjam uma apendicite meia hora antes de ganharmos a final do campeonato.

Dois minutos depois do gol do Marília, Leandrão é derrubado na grande área. A princípio, não se move. Queda-se inerte. Um torcedor faz seus cálculos: “Morreu”. Outro: “O Misericordioso se lembrou dele na hora do ofício”. E Alexandre Gontijo: “O que é Bob Kennedy no chão comparado a Leandrão no gramado?”. O fato é que, logo após o juiz se decidir pelo pênalti, Leandrão volta a se mover. Como se não bastasse, decide mover-se em direção à bola. Horrorizado, o estádio intervém: “Pelo amor de Deus, você não!”. O técnico acode e ordena que Dill bata a penalidade. Botafogo 2 x 2 Marília.

Aos sobressaltos — é a única maneira que conhecemos —, a partida vai chegando ao fim. Um chute sem pontaria do nosso Camacho faz Levir Culpi virar-se para a torcida: “Vocês viram o Camacho?”, pergunta incrédulo. Vimos, Levir, vimos. Aos 44 minutos, uma bola chutada por Túlio bate na trave do Marília, descreve uma trajetória fisicamente improvável (a não ser na física quântica) e termina nas mãos surpresas do goleiro. O jogo se encerra. Os cardíacos são retirados em maca.

Em 90 minutos fomos ao paraíso, caímos bruscamente de volta ao chão, descemos na marra ao inferno e finalmente nos vimos içados ao ponto de partida. Como os objetos do tal museu, terminamos no mesmo lugar: 2 x 2. Uma tarde perfeitamente inútil. Reparem, entretanto: tivemos céu e inferno, mas nenhum intervalo entre os dois. Nenhuma promessa de alívio — e aqui está a essência do Botafogo. Nossa doutrina não comporta Purgatório, essa espécie de Aracaju metafísica, um lugar na eterna periferia do muito ruim ou do muito bom. Engana-se quem confunde nossa atitude com masoquismo. Adoramos ganhar, mas não gostamos de meias experiências — afinal, as cores da nossa camisa são o preto e o branco—, o que é outra maneira de dizer: o botafoguense é um trágico. No melhor e mais grego sentido da palavra.

Naquela tarde fria, seis mil trágicos voltaram para casa com a certeza de que, se Sófocles porventura retornasse à terra, só teria olhos para nós.

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João Moreira Salles

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.