David Hume não é um filósofo da linguagem, mas a sua obra inaugura a preocupação com as regras e com as convenções que afetará a filosofia analítica. Hume não é um filósofo transcendental, estritamente falando, mas a sua obra inaugura a forte sensibilidade à imaginação que será característica dos escritos de Kant e Husserl. A obra de Hume não poderia ser descrita como uma filosofia da interioridade, mas Husserl atribui ao escocês uma virtude ausente nas meditações de Descartes, a descrição da experiência na perspectiva do sujeito: em termos de impressões e idéias. Ainda assim, quando a filosofia francesa do século XX resolve desafiar a autoridade do sujeito moderno é na obra de Hume que encontra abrigo. A obra de Hume é fundamental para as grandes idéias dos últimos 250 anos de filosofia (em 2011 completam-se 300 anos do nascimento do filósofo). Se não fosse pela filosofia da experiência descrita por impressões e idéias, ou pela idéia de que o sujeito é um feixe despertencido de sensações, ou pela enunciação de que a razão é e deve ser escrava das paixões, o nome de Hume ainda seria lembrado pela granada deixada no colo dogmático da humanidade: o paradoxo da causalidade (denominado de paradoxo de Hume).
Neste paradoxo, bastante agônico a toda filosofia futura, encontra-se uma indagação bastante simples: não seria a causalidade, antes, um artifício da natureza humana na composição da experiência, do que algo de natural? Porque temos muitas idéias mirabolantes, mas se queremos torná-las um pouco mais simples podemos sempre reduzi-las a elementos de composição, e, nesse cenário, temos induções e mais induções, mas nunca causalidades. Na ciência várias foram as tentativas de escapar do paradoxo de Hume (naturalizamos a experiência por operação cognitiva artificial, com a qual estamos habituados): Popper tentou vulgarizar o problema postulado por Hume inventando uma forma de historicismo científico no qual as refutações são modelos de causalidade. Algo relativamente verdadeiro também aquilo que os pragmatistas fazem em filosofia. Outros, como Nelson Goodman, buscaram levar o paradoxo de Hume a sério e nele desenvolver o que pode ser denominado de teoria da projeção. A causalidade serve basicamente para duas coisas: (1) fazer com que nos sintamos em casa na experiência e (2) fazer com que possamos sentir que estamos a prever o futuro. À natureza humana o futuro é menos incômodo quando pode ser parcialmente previsto.
No que Hume puxa o tapete da causalidade um novo cenário é aberto: (1) podemos nos sentir em casa, mas para isso, podemos, no campo da moral, desalojar, pela falsa causalidade, um sem número de homens e (2) podemos prever o futuro, mas é aconselhável, no campo da ciência projetiva, não nos tornarmos servos de nossas previsões. O paradoxo de Hume, cabe lembrar, é desenvolvido nas circunstâncias de uma filosofia que coloca a natureza humana na cotidianidade, e o problema da moral é ponto de chegada para o questionamento acerca de nossas crenças causais. Não existe homem sem a possibilidade de vislumbramento da causalidade no mundo – existe sempre um forte componente de sociabilidade na crença causal – mas a causalidade exasperada pode tornar o mundo inabitável. A causalidade, para Hume, deve-se ao fato de que a natureza humana se habitua a experiência que a constitui. Nesse processo a imaginação estabelece conjunções constantes entre idéias e fenômenos que reconhece. Em última instância a natureza humana, pelo hábito, inventa a experiência que a constitui.
Já sabemos que a modernidade são “modernidades”: há uma modernidade com Kant e Weber e outra com Hegel e Marx. A modernidade com Hume, por outro lado, é bastante outra. Ler Hume, dentre outras razões, é relevante para darmos oportunidade a essa modernidade outra. Nesta modernidade outra o sujeito é relevante, mas a sua soberania é relativa. Interessa ao sujeito as investigações acerca dos elementos da experiência capazes de lhe constituir, porque existe uma indiscernível relação entre o entendimento, a moral, a crítica e a história. Nesta outra modernidade não há que se identificar finalidades extrínsecas às paixões, à simpatia e ao gosto. Existe, pois, uma história das representações – das imagens, dos discursos, das crenças e das cores – do entendimento, da moralidade e do gosto. Esta modernidade outra, identificada com a idéia de uma antropologia cética (ou seja, uma modernidade cética) possui uma árvore genealógica em Pierre Bayle e Michel de Montaigne. Nela, a natureza humana não exerce apenas um anseio ordenador, mas se define pela disponibilidade à experiência que a constitui: a natureza humana é disponível ao Outro pela simpatia e é disponível ao aprofundamento da experiência pelo gosto. Existe, portanto, um gosto pelo outro e um gosto pela experiência. Na disponibilidade à experiência do Outro surge a simpatia e na disponibilidade ao aprofundamento em certas experiências surge a delicadeza da imaginação.
A leitura da obra de Hume é polifônica como os seus conceitos. A obra principal de Hume o Tratado da Natureza Humana, escrito antes que o autor completasse 30 anos, é monumental no número de questões mefistofelicamente geniais, mas apresenta um estilo solto e encantador de filosofar que mais tarde será renunciado pelo escocês, dando lugar ao estilo mais sóbrio das Investigações sobre o Entendimento Humano e sobre os Princípios da Moral, os seus ensaios, igualmente, por vezes parecem trazer conceitos em cuja amplitude resignificam toda a obra, como a idéia de gosto, e ainda a História da Inglaterra que talvez, em sua monumentalidade, seja o principal exercício de filosofia pública da história da filosofia. Isto é, a polifonia da obra de Hume nos impede de estabelecer qualquer efeito orbital dos Ensaios e da História com relação ao Tratado e às Investigações: a obra de Hume é mais bem explicada pelas idéias de composição e acoplamento, as leituras acabam, por franco estímulo do autor, por fazer desenhos distintos.
A gramática filosófica de Hume é relevante à história da filosofia e intrigante ao historiador dos discursos em política, mas é inegável o poder de sedução à filosofia contemporânea. No campo da moralidade nos permite pensar a pluralidade sem relativismo, ou seja, estabelece formas de investigação da cultura sem o vício do culturalismo; no campo do direito nos ajuda a pensar os conteúdos mínimos do direito natural sem os quais estaríamos constantemente expostos a clubes de suicidas ou de delirantes e no campo da arte nos inspira com a descrição imagética da experiência, a admissão da idéia de marcas da experiência, e um conceito de gosto que em nada se confunde com o julgamento dos melhores objetos, mas que estabelece um forte imperativo de disponibilidade da imaginação às novas experiências.
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Cesar Kiraly
Originalmente publicado no Nº 267 da Revista Ciência Hoje.