Shame de Steve McQueen – Número 59 – 04/2012 – [121-122]

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Ao entrecruzamento de vistas no metrô há poucas alternativas, pode-se assumir o vazio, o caráter vagabundo dos olhos naquela circunstância, a frivolidade de certo espaço livre que permite o obliquo dos olhares, o tensionamento dos toques; ou pegar o celular e tornar evidente por representação (a presença fantasmática do ausente) de que não se está à mercê. Não é caso aqui de perguntar sobre aqueles que no trem estão a ler, pois tal nos levaria à oscilação entre o vazio e outra coisa. Ora, circunstâncias diferentes possuem modos distintos de vazio, nesse caso ele está na flutuação dos olhos.

Todavia, sem depender da circunstância, o vazio, para realizar os seus efeitos, só pode ser exercido por alguém vazio. Por certo que, salvo exceções, ninguém é vazio sempre, mas esse não é o problema. A questão é: o que é o vazio? Ele é um estado de repetição identitária, com ou sem gozo, dentro do qual se age para expulsar o afeto. Sim, nada é mais afetivo, de um modo reativo, do que o vazio, afinal, cada uma das peças da sua estrutura possui a forma negativa de uma paixão.

Seja lá qual for a circunstância, o vazio, nela, é sempre a condição mais exigente; custosa, num certo sentido. Veja o caso do metrô, para o vazio, há necessidade de alguém que não queira dirigir por opção, uma vez que o horário do olho perdido é desviante daquele das pessoas que o usam por motivos de trabalho, ou de cujo trabalho se desvie dos outros, daí reiterada a liberdade, o vazio é exigente, porque demanda uma responsabilidade mitigada diante do mundo, e mais, uma recompensa não proporcional ao esforço. O vazio é feito de posições sociais intelectualizadas que possam ser preenchidas por um cotidiano sem a busca por obra. O vazio simula a vida criativa, mas não paga o preço por ela. Repete o idêntico e por ele não é consumido. Ou seja, a diferença não se impõe por devastação.

A repetição sexual é preferencial no vazio. A sua notação parte de si, enquanto nulidade de afeto, e se encerra na adicção afetiva. Nos extremos, o vínculo entre relação sexual e afeto é impossível, no vazio, qualquer afeto atrapalha, e na outra ponta, nenhum afeto é suficiente. O parceiro precisa ser trocado para a manutenção da pura identidade, no vazio, afinal ninguém é idêntico a si mesmo, e da pura diferença, na adicção afetiva, porque ninguém é completamente de si distinto. Na zona cinzenta entre os extremos, o afeto atrapalha e não é suficiente, e por isso mesmo passa a ser tudo o que se tem, sem qualquer opção.

Na escala cromática, no chuvoso do ocaso dos dias, o vazio é o rosa tênue do acerto contratual feito pela espontaneidade das faces, das mucosas, ou imitação delas com artifícios cosméticos, e possui como oposto diametral a densidade do vermelho do sangue dos pulsos cortados a se espalhar por superfície encontrada limpa. A opacidade à mucosa ou ao sangue quebraria essa máquina de pouco personagem que é o vazio. Nele o drama se faz pela falta de marcas e pelas cicatrizes nos pulsos, para não falar do olhar para a dobra das pernas ou aos dormentes dos trilhos.

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Cesar Kiraly

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.