A Chave dos Profetas – Número 45 – 12/2011 – [178-181]

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O padre Antônio Vieira é um dos principais pensadores (senão o maior deles) que escreveram em língua portuguesa. Suas obras possuem imensa fortuna crítica. A própria grandeza de seu trabalho, no entanto, talvez contribua para um certo desconhecimento de seus textos por parte do público leitor da “flor do Lácio”. Isso se deve, acredito eu, mais ao volume de sua obra (incontáveis sermões e infinitas cartas) do que à distância temporal que nos separa do jesuíta.

Algumas contribuições, entretanto, foram dadas pelo mercado editorial brasileiro, nos últimos anos, para o leitor que se arvora a desvendar o vasto universo vieiriano. Refiro-me a edições de seus escritos que os apresentam em formato mais acessível ao público leigo. Este é o caso das edições, em dois volumes, de sermões escolhidos publicados pela editora Hedra[1] e do Índice das coisas mais notáveis[2], pela mesma editora, ambos organizadas por Alcir Pécora. O Essencial Padre Antônio Vieira se soma a essas contribuições, fornecendo não somente uma seleção de textos, mas também um panorama da obra de Vieira.

É possível dizer, com alguma segurança, que a vastíssima obra de Vieira possui algumas dimensões essenciais (ou, pelo menos, estratégicas) para aqueles que buscam aprofundar seus interesses de leitura acerca desse notável escritor da língua portuguesa, a quem Fernando Pessoa, no livro Mensagem, chama de “Imperador da língua portuguesa”. Essas dimensões entrelaçadas – e que se distinguem seja pela natureza mesma dos escritos, seja pelos conteúdos a que se dirigem – são: (i) sua biografia, em primeiro lugar, que se confunde com as questões fundamentais da vida pública do mundo ibérico seiscentista, principalmente, das relações da península com as terras de além-mar. Sua vida e os vínculos com a sua obra, além de constarem em ótimas biografias[3], estão documentadas nas diversas cartas que escreveu para políticos, monarcas, amigos e colegas de sacerdócio. (ii) Os sermões dizem respeito à segunda dimensão essencial, sendo a parcela mais extensa de seus escritos e que também dizem respeito à atividade na qual mais se destacou e que exerceu de modo mais constante e dedicado: Vieira pregou no púlpito durante mais de dois terços de sua longa vida, que durou 89 anos. (iii) Por último, destaca-se a sua obra profética, na qual o milenarista Vieira se dedica a indicar as coordenadas para a revelação das profecias da emergência do Quinto Império. A carta que ficou conhecida como Esperanças de Portugal e que ele endereçou, em 1659, ao padre André Fernandes, a História do Futuro e a Clavis Prophetarum são textos significativos de sua obra profética.[4]

Falar, portanto, daquilo que é essencial – não o que é mais importante, em termos valorativos, mas o que é indispensável – para se conhecer os escritos do padre Vieira significa se remeter a estas três dimensões. O volume intitulado Essencial Padre Antônio Vieira, organizado por Alfredo Bosi, membro da Academia Brasileira de Letras e professor da área de Literatura Brasileira da USP, justamente por dar conta dessas dimensões, acerta em cheio na seleção de textos.

Abre o livro uma introdução escrita pelo próprio Alfredo Bosi sobre a vida e a obra de Vieira. Essa introdução, além de apresentar uma perspectiva cronológica, traz um panorama das questões das quais Vieira se ocupou em sua atividade política e religiosa, o que é fundamental para a compreensão de um autor que viveu tanto e tão intensamente, estando ora no coração da metrópole, ora nos confins do Grão-Pará. Nas páginas apresentadas por Alfredo Bosi, temos material para tirarmos a medida de um homem que estava à altura de sua obra. Ficamos logo sabendo que para ele vida e obra não se distinguem. Vieira viveu uma vida extraordinária que parecia ser motivada pela máxima que ele mesmo cunhou no Sermão de Santo Antônio, de 1670: “Nascer pequeno e morrer grande, é chegar a ser homem”.[5] Ao percorrermos um pouco de sua biografia, fica mais clara a vinculação que ele acreditava (e pregava) haver entre palavra e ação (as obras, como dito no Sermão da Sexagésima), entre A Palavra e as palavras, entre o Verbo e a vida. Tal relação é bastante estudada e está no cerne daquilo que Alcir Pécora chamou de “unidade teológico-retórico-política”[6]. A vida e a obra de Vieira representam um bom começo para o leitor de primeira viagem.

Só não é um começo melhor do que a leitura dos sermões. Aqueles textos que encantaram tantos escritores e poetas (como, além de Pessoa, Manoel de Barros, que confessa alguma paternidade vieiriana em seus poemas, como naquele intitulado “Parrede!”[7]), quando lidos pela primeira vez revelam sua grandeza de muitas formas: seja pela óbvia beleza daquelas palavras – verdadeiro monumento –, seja pelo vigor que ainda manifestam, mais de trezentos anos depois de terem arrebatado auditórios, como se o orador ainda mantivesse alta sua voz de cima do púlpito.

A seleção de sermões apresentada em Essencial Padre Antônio Vieira é muito feliz. Como não poderia deixar de ser, o Sermão da Sexagésima – talvez, o texto mais conhecido de Vieira –, abre esta parte do livro. Este sermão é essencial porque fala sobre o significado da própria pregação e define, portanto, a tarefa mestra de todos os outros sermões: incidir no mundo, ser instrumento de ordenamento da vida terrena de acordo com a ordem divina. O Sermão de Santo Antônio aos peixes e o Sermão de Santo Antônio, de 1642, também tratam do papel da pregação e da vocação missionária de Portugal. Os três sermões do Rosário (décimo quarto, vigésimo e vigésimo sétimo) expõem o modo pelo qual as disposições das Escrituras informam a ordem terrena, através da afirmação do mistério, revivido e ritualizado nos sacramentos católicos, como elemento da unio mystica. O Sermão pelo sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda e o Sermão dos Bons Anos são dois exemplos da pregação de Vieira dirigida para assuntos da política de seu tempo, ambos orientados para a estabilidade de Portugal – aqui há sempre no horizonte as profecias do Quinto Império. Outros sermões selecionados complementam estes aspectos fundamentais da homilética vieiriana, tais como: sua incidência em variados assuntos da vida pública (Sermão do Bom Ladrão, Sermão da primeira dominga da Quaresma, sermões da primeira e da terceira dominga do Advento); as formas do amor de Cristo (Sermão do Mandato) e suas manifestações no sacerdócio e nos sacramentos da Igreja; e, por último, os limites da condição humana e sua verdadeira finalidade nos desígnios da ordem divina (no belíssimo Sermão da quarta-feira de cinzas, de 1672). Sem afetarem a qualidade da seleção dos sermões, a ausência de tradução dos trechos bíblicos em latim, que são muito recorrentes nos sermões e são fundamentais, principalmente, por comporem os conceitos predicáveis, prejudica, entretanto, as finalidades introdutórias do livro.

Dentre as cartas do Maranhão escolhidas, se destaca a Carta ao padre André Fernandes, que também ficou conhecida como “Esperanças de Portugal”, na qual Vieira apresenta suas interpretações das profecias sobre a ressurreição do rei D. João IV que acreditava estarem presentes nas trovas do sapateiro Bandarra. Essa carta é muito importante, tanto para a compreensão do pensamento profético de Vieira, quanto do processo inquisitorial ao qual o jesuíta foi submetido.

A cereja do bolo é a tradução da Clavis Prophetarum (a Chave dos Profetas), obra póstuma e inacabada, escrita em latim, e que não tinha, ainda, tradução para o português[8]. Esse texto, que Vieira considerava a obra de sua vida, possui caráter mais estritamente teológico e apresenta uma exegese acerca da conexão entre o Verbo divino e a história terrena como chave para a realização do reino de Cristo na Terra.

No Essencial Padre Antônio Vieira encontramos um conjunto de textos que preenchem uma lacuna importante: a escassez, no Brasil, de edições que ofereçam um panorama introdutório da vastíssima obra de Vieira, proporcionando não somente o comentário qualificado, mas também – o que é imprescindível – a leitura direta de seus textos.

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André Rodrigues

[1] VIEIRA, A. (2003), Sermões. , PÉCORA, Alcir (org.), São Paulo, Hedra, vols. I e II.

[2] VIEIRA, A. (2010), Índice das coisas mais notáveis, PÉCORA, Alcir (org.), São Paulo, Herdra.

[3] Por exemplo, a excelente História de Antonio Vieira de João Lúcio de Azevedo (São Paulo, Alameda, 2008).

[4] A esse respeito também é proveitosa a leitura das peças do inquérito inquisitorial sofrido por Vieira e que foram reunidas em De Profecia e Inquisição, editado pelo Senado Federal, Brasil, 1998.

[5] Em Sermões. op. cit. vol. I, p. 285.

[6] Em Teatro do Sacramento. Campinas, Editora da Unicamp; São Paulo, Editora da USP, 2008.

[7] Em Memórias inventadas – As infâncias de Manoel de Barros. São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2010.

[8] Existe grande polêmica sobre a relação entre a Clavis Prophetarum e a História do Futuro (escrita em português e que possui edição organizada por José Carlos Brandão Aleixo, pela editora da UNB, 2005), como discute Silvano Peloso em seu livro Antonio Vieira e o Império Universal: A Clavis Prophetarum e os Documentos Inquisitoriais, Rio de Janeiro, De Letras, 2007. A tradução apresentada no Essencial Padre Antônio Vieira pode ser de grande valia para essa discussão e representa contribuição inequívoca para os estudos sobre o pensamento profético de Vieira.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.