Hume e a Verdade – Número 44 – 12/2011 – [171-177]

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“[E] apesar de todo o melancólico ceticismo, com o qual minha alma se debate, pressentimentos maravilhosos esgueiram-se dentro de mim”.

Heinrich Heine, Cartas de Helgoland, carta escrita no dia primeiro de Agosto.

Enfileiremos pensadores: Montaigne, Bayle, De Maistre, Burke. Dentre eles encontraria lugar, Hume. Mas qual seria o princípio de pertencimento, qual a semelhança de família? A prática da inovação formal – pelo tipo no verbete, pelo ensaio ou pela epístola – e da linguagem violenta. Não é simples medir a violência de um discurso, de alguma forma toda linguagem filosófica e política é violenta. Trata-se, nesse caso, de uma violência estética, decorrente da prática virtuosa do ressentimento moral. Para esses filósofos referidos, o mundo está ou devirá em perdição moral, salvo se for obrigado a suportar uma violência estética. Montaigne, Bayle e Hume, uma violência pictórica, presente na prática da descrição, seja pela paisagem, pelo retrato ou pelo abstrato. De Maistre e Burke, uma violência libertária, porque vinculada à autoridade. Na trinca, trata-se de se pintar paisagens, retratos ou quadros abstratos de crenças. Na dupla, a enunciação, que também é imagista, mas sem a mesma consciência dos céticos, concerne aos vislumbramento de uma humanidade carniceira. Esta, se vê obrigada, por reatividade, denunciadora de sua imoralidade, desde a enunciação, a se esforçar para não ver a carniçaria que se tornou a partir dos movimentos revolucionários. Por certo, o objeto acrescido pelo ressentimento pictórico, também é literário, mas o fato é que somos obrigados a ter paisagens de crenças distintas, retratos de sistemas filosóficos antagônicos e a admissibilidade da compreensão interna, inclusive, do dogma.

Todavia, essa enunciação ressentida não se confunde com aquela da desconfiança. O ressentimento filosófico, e nisso ele guarda uma coloração conservadora, apela para a invenção, pelo discurso, de modos de circunscrever protetoramente um valor, para que esse seja possível na vida pública, de circundar, pelo excesso, um objeto que sem esse esforço seria dissolvido, ou, na melhor das hipóteses, seria soterrado. O ressentimento conserva uma dignidade perdida e a faz seguir um estado de coisas com uma lembrança. Essa pode ser a persecutoriedade promovida pela intolerância religiosa, o aspecto fictivo dos sistemas de crenças, e, em especial, dos sistemas filosóficos, a necessidade construtiva dos conceitos e a identidade carniceira das revoluções políticas. A desconfiança, por outro lado, nada tem de ressentida, nela existe a ironia acerca da possibilidade da verdade, da invenção de sistemas, da defesa de valores etc. O ressentimento não pratica ironia, mas o humor. A desconfiança ironiza o humor e a união entre a beleza e a verdade na conservação dos objetos políticos.

A violência ressentida da obra de Hume se inicia com o Tratado da Natureza Humana, um livro que ao mesmo tempo em que consiste numa obra de juventude, com o estilo livre, a profusão de conceitos e problemas, o humor, também é exemplo de manifestação de maturidade, nunca mais Hume encontrará o mesmo fôlego e densidade. O Treatise é o primeiro, e, nesse sentido específico, o último trabalho de Hume, a mensagem na garrafa, seu maior legado, selvagem e furioso. Esta capacidade de defender um modo de pensar cederá espaço para livros maduros, mas sem pressa, sem essa sensação de que não haverá tempo para dizer, própria à juventude, a sensação de que se houver atraso será tarde demais para dizer, e à maturidade diante da morte, de que dizer pode ser cedo mais, mas é o último momento. O escrito maduro é terminantemente distinto daqueles de juventude e de maturidade diante da morte, que se completam. Dentre as suas obras maduras estão as Investigações sobre os Princípios do Entendimento e da Moral, a História da Inglaterra e a História da Religião Natural. Mas Hume, apesar da maturidade, mantém um vínculo constante com o Treatise, na obra aberta de seus Ensaios e dos Diálogos sobre a Religião Natural.

Esse tom da preservação dos objetos, de esforço para lhes conferir uma condição de existência, pela consciência pictórica, concerne, antes de tudo, a percepção da elevação libertária da atividade filosófica. A escrita filosófica exerce a crítica – e não é demais dizer que o Iluminismo Escocês é um esclarecimento outro – consciente de que o conceito é preparado pela expressão; essa trilha é percebida por Stuart Mill ao evidenciar que a liberdade é liberdade tanto de imprensa, quanto de prensa, o que faz Hume estar próximo da inovação formal. Seja pela profusão dos gêneros utilizados, tais como Tratado, Investigação, Diálogo e Ensaio, ou pela nova violência aos modos de dizer. No Treatise, apesar da correta divisão em três partes – Conhecimento, Paixões e Moral –, o texto é percorrido de experimentos mentais belos e confusos. No diálogo, Hume faz o improvável, até mesmo para Platão, as partes contendoras efetivamente se escutam, e mudam de opinião pelo reconhecimento da coerência, cujo portador não é evidente desde o início. No ensaio, Hume hiperboliza esse modo de expressão inventado por Montaigne, mas o tira da sua captura mais frívola e o torna um mecanismo para a inovação epistemológica em ciências humanas, e abordagem de idéias difíceis como o suicídio. A beleza da escrita acompanha a sua verdade.

Mas não é possível ler Hume hoje, sem se dispor a boa quantidade de ombradas laterais. Apesar de ser dito por Russel o filósofo do Reino Unido, não há lugar, já dado e confortável, para a sua leitura. Mas nada mais saboroso do que ser forçado a uma escrita ressentida para tratar de um ressentido. O bom ressentimento, produtor, inventor de província para alguns valores – e há que se valer do comedimento com a violência ressentida, pois ao mesmo tempo em que ela é característica do gênio, e opositora da ironia inteligente, também está presente em coisas muito ruins –, precisa se acotovelar com as segundas e terceiras gerações de preguiçosos filósofos analíticos, de roupa esporte e sapatos de borracha, que se valem de algumas boas descobertas de Hume, como o ceticismo sobre a crença causal, a necessidade de teorias da projeção e a percepção da regularidade, como operador antidelírio, para reduzir a preocupação filosófica a uma perscrutação simples da regularidade lingüística, ou tornar atividade historiográfica apenas ligada a novidade de contar de novo uma velha história, como se a regra não fosse dependente da crença ou como se a história não precisasse ser alimentada de efetivos esforços de originalidade. Mas também precisa se acotovelar com os relativismos rasteiros provenientes da organização de sectários sob poucas idéias, e mal lidas, dos pensadores de Maio de 68. Isso para não falar das versões baratas de humanismo desenvolvidas por habermasianos mais ligeirinhos.

Mas por que é necessária tal profusão de ombradas e acotoveladas para se ler Hume, nesse seu aniversário de 300 anos? Porque Hume, e isso o faz figura central na renovação das ciências humanas, em especial na ciência da política, crê na verdade e no seu vínculo estrito com a natureza humana. Por certo que o escocês não é um escolástico, e seu cartesianismo se dá na utilização do conceito de imagem, mas de uma forma completamente outra, e, por essa razão, o seu conceito de verdade é dotado de alguma especificidade. Antes de tudo, a verdade tem uma presença formal constante, mas um conteúdo variável. Nesse sentido, uma boa parcela da verdade é histórica. A verdade não tem que ver com o dogma, e a possível coincidência é apenas uma piada de bom gosto do tempo. A verdade pertence à natureza humana, o que não significa que alguns enunciados sejam menos verdadeiros se não estivéssemos aqui, apenas há o reconhecimento de que a dízima realista exaspera um pouco em imaginação fértil. A verdade é um efeito da imaginação, mas reconhecida pela força comparativa e crítica do entendimento. Sim, a verdade é crença e regularidade sobre a referência. Pois bem, as condições da verdade são delimitáveis pela investigação, mas o seu vislumbramento é dependente do aprofundamento na experiência permitido pelo gosto. Sim, a verdade é também um gosto pela verdade.

Dessa forma, o plano da experiência da verdade é habitado por formas instituídas – ainda que os olhos intumescidos de sangue do retórico queiram nos dizer o contrário –, as quais podemos denominar de objetos. A pictorialidade antes referida nada mais é do que isso, os objetos possuem contornos capazes de permitir que seus valores de conteúdo sejam distintos de outros objetos. Nada mais natural do que perceber que os objetos em conjunto dão a perceber sentidos ausentes na exibição isolada. Em função da transitoriedade da verdade, ela concerne à percepção da autenticidade de um objeto com relação ao outro. A crítica existe para neutralizar, o quão possível, os efeitos da retórica na distinção dos objetos. Os modos da pictorialidade concernem à forma da crença e a discursividade, o seu conteúdo. Mas, posto concernir a critérios, não pode a crítica restar satisfeita com a simples contraposição entre a verdade e a falsidade, há que se falar também na falsificação.

Hume explica a possibilidade de formas pela experiência, seguindo, de modo bastante próprio, uma trilha aberta por Bacon e Locke. Mas fazia questão de enfatizar que não há elementos para se falar de um fora da experiência, o que torna o debate sobre a existência, ou não existência, de uma entidade metafísica bastante enfadonho e epistemologicamente infrutífero, e disseca os elementos de composição da experiência em impressão, idéia e crença. As impressões concernem à inegociabilidade do primado da experiência, as idéias dizem respeito à relativa liberdade compositiva sobre aquilo que foi adquirido de modo inegociável e a crença é um ardil da experiência, pois consiste na possibilidade de idéias inegociáveis, idéias com a força de uma impressão. Colocadas todas juntas: impressões, idéias e crenças são modos da imagem distinguíveis por diferença de intensidade e função. A impressão pelo aspecto da inegociabilidade é abrandada por ser, mormente, difusa, consistindo numa imagem mais intensa do que a idéia. Essa é menos intensa do que a impressão, porque o seu aspecto concentrado permite a sua plasticidade, a possibilidade de ser manipulada pela imaginação. A crença é a liberdade ardilosa concedida pela experiência à natureza humana, pois nela o produto da plasticidade pode ser feito inegociável. A esse processo de passagem entre intensidades da imagem, da saída da impressão à crença e da crença à impressão, pode-se utilizar o nome “sociabilidade”.

Mas não basta a Hume dizer a intensidade, mas é preciso compreendê-la. Para tanto, resolve vê-la na teoria das paixões. Sob uma originalidade imensa, diz que a paixão nada tem que ver com o organismo, matéria deixada a cargo do delírio dos fisiologistas, mas é o princípio que anima a forma. A física das paixões é relativamente simples, e como precisa de uma referência para ser estabelecida, nada mais natural que essa seja o Eu e sua relação com o Outro. Principalmente, no que concerne ao aspecto direto do movimento das imagens, a dor e o prazer pelo Eu sentido. Depois, no aspecto indireto, o amor e o ódio, elaborações da dor e do prazer, no que concerne ao movimento que começa no Eu e parte em direção ao Outro, e orgulho e humildade, no caminho de volta. Uma vez que o Eu é uma imagem como as outras, Hume fala que pode ser definido como um fluxo de sensações, ele é sujeito às mesmas categorias para a avaliação dos objetos. E, conforme o argumento que empreendemos, também com relação ao Eu e ao Outro devem existir demandas de autenticidade e verdade, falsidade e falsificação. Mas a originalidade de Hume não se estanca na descrição do movimento das imagens, e associações entre elas por contigüidade, semelhança e crença causal, mas também lhes confere, por assim dizer, uma metafísica moral de homologias. A sympathy, além dos seus tradicionais conteúdos de afinidade social, de compartilhamento do sentimento dos outros, fellow feeling, da presença no peito de todo homem da habitação de um Outro, também concerne a um flagrante homológico, uma espécie de engano sobre o qual se funda uma virtude moral, um engano necessário, nele o Eu não se sente como se fosse o Outro, ele se sente Outro. Nessa outrendade do Eu, sem “como se”, os distanciamento comuns à vida cotidiana se tornam inúteis, por esse motivo a sympathy é pouco indicada para a vivência da cotidianidade, mas é fundamental para a construção da vida pública. O médico não pode sentir que está operando o próprio filho em toda criança que cortar, o filho não é o Outro, mas, ainda, o Eu, todavia o enunciado moral, para ser efetivo, deve passar por esse esforço de crueldade do Eu contra o Eu, e é de tal forma sofrível, esse procedimento de se sentir Outro, que tal só acontece por acidente.

A sympathy estrutura não só a homologia virtuosa dos sentimentos morais, mas enquanto animação pictórica que representa, permite a associação de imagens morais. Se o hábito recomenda a não relativização das fronteiras políticas, a sympathy amolece a política pela relativização das fronteiras entre grupos distintos de crenças. Esse sentimento outro no campo das imagens morais é um incentivo à sensibilidade com as palavras, ele nos leva a perceber que os sentimentos presentes nas nossas imagens mais díspares, talvez, possam referir a uma mesma experiência, o que torna a sensação de diferença um equívoco. Pois, bem costuma levar ao escândalo a afirmação de Hume de que a justiça é uma virtude artificial, e que se estamos em circunstâncias de miséria extrema, ou de abastança, nem sequer ela é possível de ser percebida enquanto hábito. O atrelamento da justiça ao interesse e à utilidade não é um acidente ao fenômeno, mas a sua simples condição de presença na sociabilidade. Dessa forma, o casal sympathy e justiça nem sempre pode estar junto, ele não resiste à miséria e nem à completude material, nos extremos, a forma da imagem moral, para além das diferenças, permanece intacta, mas a interrupção da utilidade e do interesse nos faz, o que concerne ao conteúdo das instituições, menos morais. De tal forma que nos seria dado indagar o porquê da existência de um ser que tem sympathy, mas não tem justiça.

O leitor já deve ter percebido uma falsa polissemia entre os conceitos de crença, instituição e forma. Eles referem o mesmo fenômeno, o modo pelo qual a natureza humana constrói o seu mundo ao fazer com que seus sentidos perdurem no tempo. A diferença é que a crença está mais próxima do aspecto composicional; sendo uma idéia de vinculação imagista, a instituição se refere à fixação cristalizada da crença no tempo, e a forma concerne ao modo de expressão capaz de persuadir o tempo a se fazer marcar, de que uma crença pode nele se aprofundar. Não é desprezível dizer que a verdade não pode aparecer sem o modo ativo pelo qual o espírito humano se aprofunda nos objetos; sem esse nome genérico que reúne, sob seu guarda-chuva, a crença, a instituição e a forma, que é o gosto. A sympathy não precede apenas à justiça, mas também ao gosto. É pelo aprofundamento nos objetos que as composições simpáticas são reveladas , e, pela comparação promovida pelo gosto, a verdade pode ser aferida.

Sim, o gosto é requerido com mais intensidade para a distinção entre objetos artísticos, basta pensar no desastre que é uma falsificação no mercado de arte, mas tal monopólio pela arte se deve ao esforço de imoralidade política, no campo do poder, o gosto realiza, ou deveria, os seus melhores préstimos. A delicadeza do gosto e da paixão é capaz de promover a virtuosa autenticidade no tratamento dos valores públicos. Mas não é simples ao gosto saber por onde se aprofundar num objeto, pois eles aparecem como blocos opacos, naturais, num outro sentido, e por isso não denunciam a composição pictórica que os compõem. Por essa razão é que o gosto segue a regularidade. Hume percebe que a afirmação da substância nos entes é quimérica, e por isso é a habitualidade cotidiana da nossa lida com tais objetos que garante as suas intensidades e presenças. Crenças, instituições e formas concernem aos fenômenos pelos quais a natureza humana estabiliza a experiência, para os quais a regularidade serve de índice. Todavia, não há vício maior do que reduzir a crença às mera regularidade.

O falsificador exerce tal redução da crença à regularidade. Não se pode simplesmente ignorar a prática. A renovação, nesses 300 anos, das pesquisas humeanas é dependente desse esforço. Pois se o dogma nas circunstâncias revolucionárias concerne ao excesso metafísico, em nossos dias ele habita na falta. Assim, parece que é necessário aprender vendo os falsificadores. Mas o que é um falsificador? Ele é uma prática de imitação da regularidade, e reprodução da mesma, sem a hesitação da autoria. Se personificarmos o falsificador, poderemos dizer que é aquele que se desvia da fala confusa e angustiante da criação, dentro da qual, o hesitar é a sustentação do abismo no corpo, para produzir uma linguagem límpida e linear, uma vez que não desbrava a sua própria província. O falsificador não hesita,porque não sofre. Pode ser que o falsificador queria se passar pelo original, enquanto vivência, ou na autoria dos objetos, mas isso não é relevante, porque a falsificação é um tipo de morte pequena da autoria.

Nesse sentido, não se deve confundir o falsificador com o falsário. Pois esse aprende as regras para desafiar a crença, a instituição e a forma. Não seria estranho admitirmos, a partir da narrativa humeana sobre a experiência, que a verdade, em sua enunciação autêntica, necessita da participação do falso. Na verdade, não há relativismo na relação entre o verdadeiro e o falso, trata-se de uma relação semelhante àquela entre a autoridade e a liberdade. É a verdade que autoriza o falso, como a autoridade autoriza a liberdade. O falsário acaba por participar do núcleo da autenticidade, porque ao questionar o império da tristeza autoral, a autoridade advinda do enfrentamento do desconhecido, o vôo solo, resultado da invenção de uma gramática prática, ele força a autenticidade a migrar no tempo. O falsário é responsável pela instigação à transfiguração histórica. A sua mera presença induz à virtude. Se a verdade se explica pela decantação da idéia de alguns, o falsário é o seu resolver do fundo.

No panorama das instituições políticas, a imagem dialética que descrevemos não se faz distinta. Pois nelas também o gosto precisa se aprofundar refinando suas paixões, para ser capaz de distinguir o enfrentamento histórico, entre a autenticidade e a falseabilidade, da proliferação de objetos públicos falsificados. E as distinções não são possíveis, senão sob esforço intelectual. Não existe intuição que torne evidente a ausência de crença numa instituição, ou, de que a crença de base indica que o esforço deve ser pela atualização regular; não se pode prescindir do esforço investigativo: imergir na cotidianidade, diferenciando as suas grandes questões daquelas menores da vida ordinária, seguir as regularidades, perceber o contorno da crença, compará-lo na história das nossas representações e afirmar a composição da crença: pela associação pictórica, pela dinâmica cognitiva e pela presença das paixões. Hume lega-nos o aspecto incontornável do esforço epistemológico para o julgamento moral, além do pertencimento da epistemologia à moralidade. Por certo, as distinções educam o gosto, uma vez que a falseabilidade ou a falsificação são identificadas, quem faz o esforço de educação dos sentidos não mais se engana em disposição. Apesar de que o engano circunstancial é necessário para neutralizar uma possível, e distante, autocracia da crítica em assuntos políticos. Assim, a crítica, uma vez identificada a gênese da falseabilidade, altera sua própria constituição, uma vez percebida a movimentação da verdade. E, da mesma forma, uma vez se tendo perdido tempo para poder ver a falsificação, como quem pratica algo de gosto, pode-se afastá-la da vida pública. Nem sempre vemos o objeto falsificado, mas um vez identificado, toda falsificação é grosseira. Isso não acontece com o falso.

Por fim, cabe dizer que um dos graves equívocos provocado pela imoral tendência contemporânea a redução da crença aos seus aspectos regulares é a separação entre o gosto e os princípios políticos. A tendência a guardar os livros de poesia e romances em estantes separadas aos ensaios positivos. Não pode haver espaço público sem princípios, sobretudo, sem clareza sobre a relação entre liberdade e a servidão, o quanto que se suportará da segunda, e o porquê; Hume institui a autonomia do conhecimento político orientado pala moralidade com um ensaio sobre o tema, Que a Política pode ser Reduzida numa Ciência, sendo a redução compreendida como identidade dos elementos compositivos, à maneira dos primeiros nominalistas, como Ockham; mas o apelo para a relação entre crenças e princípios não visou nunca fetichizar os princípios, de modo a que pudessem ser invocados como lugares comuns e palavras vazias à maneira de genocidas ou populistas. Um princípio deve ser percebido na relação estrita com a verdade, a aceitação atenta aos modos da falseabilidade e combate à falsificação. Um princípio sem a ação contínua do gosto que o atualiza não é nada e não serve para nada. Talvez esse seja o principal legado do escocês esclarecido David Hume, para os próximos 300 anos. Ou seja, ressentimento contra um mundo regular e sem alma.

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Cesar Kiraly

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.