Outra Sensibilidade – Número 36 – 10/2011 – [137-138]

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: – “As estações não são bem demarcadas”. Sempre estranhei essa afirmação. Porque nunca estive tanto tempo em outro lugar. Mas ainda sempre julguei um tanto bizarro esse modo de ver. Não por algum nacionalismo climático. Mas apenas por uma experiência. Sempre percebi as estações tão diferentes. A tirania empolgante do verão. A presente mortificação causada por ele dentre os mais tímidos. Mas também uma ostensiva empolgação nos mais expansivos. Uma louca aguaceira de outono. Tonalidades de amarelo. A afirmação clara de que o tempo que passa possui uma cor. Não quando passa para frente. Mas quando retorque em passar em círculos por um eixo que envelhece e que suporta toda a dança da morte, enquanto pode. As noites longas do inverno. O sumiço dos insetos. A lentidão dos mosquitos. Talvez fosse preciso a insensibilidade rotunda dos classificadores para não perceber que a umidade que atravessa o ano é sempre tão distinta. Não sei se pela asma dos meus pulmões. Ou por qualquer outra razão. Mas o fole de respirar se altera por completo entre o inverno e o verão. Os amores nascentes à primavera. Seria preciso enviar os olhos cegados para Berlim para não ver.

A outra não precisa ser o começo de uma história triste. Como se estar regada a silêncio fosse realmente silêncio. A infidelidade da outra sensibilidade, também pode permitir que sua casa seja regada a vozes.

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Um exemplo. Outubrinos. Há homens Outubrinos. Acontecimentos Outubrinos. Graciliano é um homem Outubrino, definitivamente. Não porque lhe sobram Ramos. Ainda que seja quase impossível rir com brincadeiras tão evidentes com nomes tão evidentemente brincáveis. Mas há homens Outubrinos, como a Revolução Russa é Outubrina.

Já me pareceu muito evidente pensar como Wittgenstein, de que a minha dor é uma evidência, ou, melhor dizendo, de que é uma evidência que eu tenho uma dor, não da mesma forma como tenho uma maça, ou uma caneta, mas que não posso duvidar de que essa dor seja minha. E que, por outro lado, eu não possa nunca ter como evidência de que o outro tem uma dor. O que tornaria a minha dor sempre certa e a dor do outro sempre passível de dúvida.

Mas um pouco antes de dormir comecei a pensar em cantigas de roda. E algumas frases soltas bailaram pela minha cabeça. Pensei que deveria acordar. Que talvez essa idéia, que eu ainda não sabia bem qual era, poderia ir embora, e que talvez essa, diferente de muitas outras, não devesse ir embora, que talvez eu devesse levantar, e pegar a minha caneta diferente da minha dor, e tentar surpreender essa idéia um pouco escondida em meio a cantigas de roda.

Não costumo precisar de cantigas de roda para dormir. Acho que se precisasse delas eu me recusaria a dormir até deixar de precisar. Pois então, sempre que me perguntam aonde dói: o máximo que posso dizer é que me dói lá onde não sei o lugar. Essa seria a mesma evidência da dor do outro. Dói no Outro lá onde não sei o lugar. Dói-lhe não onde eu sei que lhe faço sofrer, mas ali onde não sei o lugar. Dói-lhe no mesmo lugar em que me dói. Nada menos jurisprudencial do que uma dor.

Mas daí teríamos um outro problema, talvez não menos grave. Porque ainda que essa intuição me pareça acertada. Não estou preparado para admitir que aceitar a dor do Outro passe pela admissão de algo invisível. Pelo colecionismo esteta dos filósofos morais: – Eu a quero para mim.

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Surpreendeu-me que ela fosse tão bonita. E que a toda vez que lhe era negada a atenção ela precisasse meio que bater no rapaz, assustadoramente mais feio do que ela e que dava a atenção para uma moça assustadoramente mais feia do que os dois. Como deve ser bom amar alguém feio. Pelo menos os pontapés da beleza estão descontados. Não deve fazer mal para ninguém não ter uma vedete acenando constantemente por atenção. Ou um vedeto.

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Mas não se falou de novos critérios. Mas não adianta atacar com eles. Antes de tudo, uma nova sensibilidade deve servir de plano de instauração. Antes de qualquer coisa, há que se fazer valer um plano poético infiel da nova sensibilidade. Pois é dele que surgem os novos critérios. Pode se buscar coisas diferentes num mesmo lugar. Mas não sob uma mesma sensibilidade. É preciso de uma forma diferente, visitar os mesmos lugares. Se este lugar for um estado de natureza, que ele seja o movimento reflexivo sobre as condições de vislumbramento do rosto do Outro. Para novos critérios? Nem mais e nem menos.

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Cesar Kiraly

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.