Macabra Nosografia ou Teologia Negativa – Número 30 – 09/2011 – [113-115]

M

Este Breviário em PDF

O que se pode sentir diante de um corpo que se vê sendo morto?

Existe uma misteriosa conexão entre as coisas do Universo – pensou o rapaz logo após ver um filme (não um rapaz, qualquer) – e de fato – julgou em sua louridade – o meu isqueiro tem algo de um nariz bojudo à francesa. E os dois juntos dançam com os ângulos das linhas da mesa. A ponta da colher cabe no bico do seio. Algum grego louco – pensou em suas lisas madeixas – pensou antes de mim que todas as coisas estão em todas as coisas.

(1) Dois são os movimentos do pensamento.

Três Urubus próprios, porém xarapins, impróprios, sorridentes, acham graça, pela Presidente Vargas, que o número um comece Um-Soberano número dois. Porque em qualquer operação que mereça esse nome “operado” há que ter alguma obsessividade com os números. E como em toda concentração repressiva – Deus assim queira – algo do dito espirituoso permita que um adorador de carniça possa rir. Eu sou aquele que é.

O primeiro se confunde com a propriedade e o segundo com a impropriedade. Na propriedade o pensamento se torna abstrato e alcança um estado em que as coisas estão em todas as coisas. No segundo o pensamento se torna específico – mas não concreto – e uma coisa passa a não se confundir com outra. No mais das vezes estamos entre a propriedade e a impropriedade. No mais das vezes algumas coisas estão em todas as coisas e algumas outras – mas não todas – não se confundem com outras.

Mas seria possível induzir o pensamento? – perguntou a ratazana ainda com um pedaço de carne nos dentes.

O pensamento não pode ser induzido, tal como se pode induzir um incêndio. Mas ele pode ser descrito em circunstâncias de pensamento. Elas se dão em graves quebras de pressão. Quando todas as coisas estão em todas as coisas – este pequeno objeto a passa a ser a única coisa que existe e com nada se confunde. Quando apenas este pequeno objeto a existe – algo o absorve e todas as coisas passam a estar em todas as coisas. A propriedade exclusiva é percebida numa espécie de grande delírio. Ou num delírio grande por detrás das coisas.

Seriam os gregos delirantes por detrás das coisas? – perguntou a ratazana agora palitando os dentes com um palito de restaurante do centro da cidade.

Mas a impropriedade exclusiva é a parteira dos engenheiros ou dos colecionadores de macabrices. Uma parteira de gêmeos. (Gêmeos, gêmeos – alguém falou em gêmeos, gêmeos: há que se chamar a parteira de gêmeos). Ao mesmo tempo em que dá a vida ao colecionador de parafusos para usos futuros. Dá a vida ao colecionar de parafusos sem uso. De um lado o exterminador de poetas. Do outro: o poema exterminado.

(2)

O rei Davi preparado para invadir Jerusalém – que antes era conhecida como Jebus – cidade dos urubus, talvez? – ouviu dos jebuseus que não seria capaz de entrar. Eles disseram a Davi que os cegos e os coxos seriam suficientes para repelir os seus exércitos. O rei Davi que apesar de seus belos cabelos ruivos não era nenhuma florzinha de laranjeira, tomou o desafio dos cegos e coxos como afronte.

Eu sempre gostei dos cegos e dos coxos – disse o Urubu xarapim. Ao que o narrador também foi remetido a sua simpatia por pernetas, não exatamente coxos. Muito embora fosse de uma família patriarcalmente coxa não conseguia deixar de demonstrar o assombro quanto a uma perna deixada para trás poder conter uma meia. Esse cuidado o comoveu o suficiente para um choro convulso de alguns minutos.

O rei Davi disse a seu exército que subisse o canal de água, dentro do qual poderia caminhar até mesmo um homem de um metro e setenta (quase dois, penso o Urubu prendendo o riso) sem abaixar a cabeça. E dentro da cidade dos urubus deveriam matar os oponentes com especial atenção e crueza aos cegos e coxos. Nem cego nem coxo entrará nessa casa – foi o que o rei Davi disse uma vez conquistada a cidade. Claro que o rei Davi pensou que uma vez que pudesse entrar e matar os coxos e cegos pelo duto d’água, por ele também se poderia fugir.

(3)

– três baratas grandes e cascudas interromperam o seu passeio matinal para ouvir a descrição do velho Zaratustra, ele dizia:

Há um tipo de homem que combate dentro de muros de casas pobres e que por vezes morre de tiro nas costas da cabeça. Um tipo de homem que combate dentro de muros de casas pobres. Nome de vegetação rasteira. Providência! Genérica plantinha! Um tipo que foge do modo pensado pelo rei Davi. Um tipo coxo e cego, até mesmo sem perna. Mas com o cuidado e carinho para deixar a meia. Este tipo de homem que anda de meia pela casa. Acaba por ser um tanto escravo de seus muros. Ele não pode sair quando quer. Lida com as armas que fazem fogo como se fossem brinquedos. Ou seria com brinquedos como armas que fazem fogo? Esse homem se faz lídio ao olhar para telas quadradas que emitem luzes e ao segurar um pequeno bastão nas mãos, move personas e animais e baratas como estas que me escutam e ratos. Não pode sair de seus muros, por perigo de ser abatido. É movido dentro de móbeis protegidos. Nas suas veias e narinas correm substâncias demoníacas. Nas suas camas dormem moças e moços e moças e moços. Escutem o que digo, baratas. Devo dizer o seu nome.

– Ele diz muito baixo e as baratas protestam: – diga logo Zaratustra.

Ao que limpa a garganta e levanta a voz:

– Menino de classe média – disse constrangido. As baratas também envergonhadas pela obviedade futura continuam seu passeio matinal. Uma delas persegue homologias. A outra mais objetiva procura um parafuso para fazer poema. Afinal, uma guerra é feita de partes de homens.

***
Cesar Kiraly

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.