Yasmim Salles
Resumo
É mais que necessário a consciência que a arte surrealista não pode ser reduzida a fórmulas explicativas semelhantes às equações matemáticas, pois a linguagem do inconsciente é complexa ao ponto de não ser possível resumi-la a ordem sistemática de uma lógica racional. Assim sendo, partiremos do princípio lacaniano de que apesar da arte produzir somente signos e significantes, o artista consegue expressar o inconsciente na obra sem deixar de jogar com as possibilidades dos sentidos. Tomaremos aqui os modos retratistas do surrealismo apresentado no filme Un Chien Andalou, especificamente, o seu conteúdo onírico e vanguarda como um ato político. Aqui, defenderemos uma interpretação interdisciplinar entre psicanálise, o saber antropológico e as representações metafóricas do inconsciente confrontando a censura em universo que não se deixa etiquetar pela palavra e a naturalização dos sentidos estéticos.
Palavras-chave:
Surrealismo, vanguarda, política, signos e arte.
Introdução
O movimento surrealista, através das suas expressões oníricas, está comprometido a nos mostrar singularidades próprias do sujeito. É claro que a arte de um modo geral trata-se de composições que ultrapassam as fronteiras da razão e é impossível separa-la de seu criador, digo, enquanto processo de criação. A criatividade burla a censura, podemos descreve-la suscintamente como algo que atravessa, algo que emerge e que consegue encontrar “furos” na barreira da consciência1 (na vigília). A partir daí, podemos afirmar que princípio da livre-expressão dado, em especial neste movimento artístico, pode ser compreendido como uma subversão do sujeito. Consideramos aqui o surrealismo e seu estímulo ao desprendimento das convenções e oposição à vigília como um ato que além de vanguardista é político.
Através da repressão os sonhos se mostram criptografados. Freud encontrou nos sonhos uma via condutora para aquilo que não temos direto acesso. Como disse Freud (1900/2006), sonhos são um período mais ameno de continuação do estado de vigília, que após o despertar é submetido a uma deformação com intuito de recalcar o desejo. A racionalidade censura questões do inconsciente, impede o sujeito de conhecer aquilo que contravém sua moral. Dito mais claramente, as relações entre o surrealismo e os sonhos são particularmente íntimas.
Un chien andalou foi um filme duplamente revolucionário: revolucionário porque introduziu pela primeira vez na história do cinema fragmentos oníricos (fragmentos do próprio Buñuel e do pintor Salvador Dalí, sendo a famosa e angustiante cena do olho cortado pela lamina proveniente de um sonho de Buñuel e a cena das formigas de um sonho de Salvador Dalí), ambas cenas absurdamente desprendidas dos valores estéticos tradicionais. É mais que necessário destacar que o filme não pode ser resumido em meras retratações oníricas, mas sim devemos pensa-lo como um manifesto original de um material trabalhado pelo inconsciente, que apesar de ter seu conteúdo deturpado, consegue expor sem o decoro estético as singularidades do sujeito.
Imagem do filme Um Cão Andaluz remetente ao sonho de Salvador Dalí Fonte
[1]: Por William Pereira, imagem retirada do blog WARBURG/UNICAMP
[1] http://warburg.chaa-unicamp.com.br/obras/view/6307
Os surrealistas estavam interessados nos sonhos como significantes sem a preocupação em adquirir uma leitura interpretativa. O Manifesto Surrealista de Breton (1924) descreveu o surrealismo como uma “manifestação pura e real do pensamento” sem o controle da razão repressiva, sem a necessidade cumprir expectativas morais e ordinárias. Assim, o manifesto político de Buñuel está, para fins de imitar as articulações da lógica onírica, em libertar o sujeito das amarras da lógica tradicional repressora.
É fundamental destacar que uma obra não pode representar o artista que a compõe. Segundo o próprio Lacan (1998), ainda que a arte possua elementos do inconsciente de seu criador, quando um artista termina sua obra, a arte deixa de pertencê-lo e passa a ser do mundo. A psicanálise assume que, além de também ser um desbravador das questões da análise, podemos descrever o artista como uma espécie de “pescador” da realidade, aquele que através das obras captura profundezas do inconsciente. O filme Um Cão Andaluz (1928) foi e continua sendo revolucionário por romper com as expectativas dos padrões do sentido. Nele, a preocupação de Buñuel é em ser expressivo sem a necessidade de ser coerente, assim como os sonhos de fato são.
Por sua essência onírica a obra afronta a lógica tradicional, expõe através dos insights elementos caóticos típicos do psiquismo. As obras surrealistas são até hoje acusadas de serem manifestações artísticas sem valor pelas cenas absurdas e confusas, tal qualificação assume uma perspectiva reacionária e empobrecida do que foi o movimento. O propósito da arte surreal é libertar o sujeito dos padrões, o que prontamente nos faz logo perceber a relação desta com o saber psicanalítico.
Os artistas ligados a esse movimento rejeitavam os valores e os padrões impostos pela sociedade burguesa, seguindo a exploração dadaísta de tudo o que fosse subversivo na arte. Fortemente influenciados pelas teorias psicanalíticas de Sigmund Freud, os surrealistas seguiram alguns métodos para impedir o controle do consciente na ação artística, desprendendo o inconsciente (OLEQUES, 2012).
O movimento surreal é um movimento contracorrente dos paradigmas normativos. A psicanálise dialoga eloquentemente com o surrealismo, pois se revela em comunhão com o caráter revolucionário da psicanálise de ter concedido espaço de fala ao sujeito.
Segundo Freud (1908/1996), a sensibilidade artística permite a manifestação do inconsciente a partir da edificação linguística dos devaneios do artista. A arte antecede a psicanálise justamente pelo fato do inconsciente está atrelado à criação e respectivamente ao fazer artístico. Freud, sabendo que a racionalidade impede o contato com as profundezas da psiqué, defendia que a arte tinha que ser irracional, defendia a liberdade criativa. Apesar de tudo, é preciso destacar que a arte e a psicanálise são campos independentes um do outro, a esfera artística não dependente da psicanalítica, nem a psicanálise da arte. Ambos campos são independentes, mas se atravessam.
Assim como a arte, a psicanálise também possui sua autonomia, porém ambas se entrelaçam ao ponto de tornarem-se enredadas pelas expressões da linguagem. Arte é a materialização do processo criativo do artista, onde nela o inconsciente paralelamente se faz presente, dois campos distintos que dialogam um com o outro, duas esferas que se organizam independentemente, mas que em um ponto se imbricam. Tanto a arte surreal quanto a psicanálise expõem algo se encontra no plano do insuportável para o Ego. O Ego é o responsável pelas distorções para evitar conflito com o Id, entretanto mesmo depois de reprimido o desejo ainda está lá, se faz presente e sempre escapa de algum modo.
O cinema produz um sentido. Numa leitura de cunho freudiana há uma relação bastante íntima com o inconsciente e obra, relação que se mostra ainda mais forte no caso da arte surreal. Quando tratamos das produções surrealistas, é perfeitamente possível estampar questões tão profundas ao ponto de serem capazes de até de causar estranhamento a quem às produziu. O surreal é uma linguagem multifacetada e absurda que utiliza a subversão do sujeito como meio.
Podemos definir linguagem como aquilo que é adquirido e perverte a natureza da pulsão. A linguagem toma por completo o sujeito uma vez que nosso inconsciente é estruturado como linguagem. É meio a linguagem que expressamos nossas angústias, desejos e sexualidade sendo através dela que o inconsciente se expressa, embora faça manifestações de maneira simbólica é através dela que o inconsciente se expressa. Lacan nos ensina que o ser humano, por não possuir instinto, é excepcionalmente diferente dos outros animais. O que na verdade possuímos é uma força multifacetada que exige satisfação e que revela várias maneiras de “deixar sua marca” no mundo pela linguagem. O homem encontra-se entre a pulsão e a linguagem, sendo a educação promotora do afastamento entre o sujeito e sua força pulsional primitiva.
Breton (1924) desenvolveu manuscritos sobre como o surrealismo um manifesto de liberdade do inconsciente. O espírito surrealista é iconoclasta. Logo no início do manifesto de 1924 encontramos no seu discurso a negação da lógica, valores burgueses, morais, estéticos, religiosos e qualquer outro plano que se encaixe arquétipo decoroso. Trata-se de capturar elementos imagéticos da inconsciência e sem muito requinte introduzi-los ao plano material. Segue abaixo um fragmento importante sobre a dinâmica surrealista:
Ainda vivemos sob o império da lógica, eis aí, bem entendido, onde eu queria chegar. Mas os procedimentos lógicos, em nossos dias, só se aplicam à resolução de problemas secundários. O racionalismo absoluto que continua em moda não permite considerar senão fatos dependendo estreitamente de nossa experiência. Os fins lógicos, ao contrário, nos escapam.
Inútil acrescentar que à própria experiência foram impostos limites. Ela circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil faze-la sair. Ela se apoia, também ela, na utilidade imediata, e é guardada pelo bom senso. A pretexto de civilização e de progresso conseguiu se banir do espírito tudo que se pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de quimera; a proscrever todo modo de busca da verdade, não conforme ao uso comum. Ao que parece, foi um puro acaso que recentemente trouxe à luz uma parte do mundo intelectual, a meu ver, a mais importante, e da qual se afetava não querer saber. Agradeça-se a isso às descobertas de Freud. Com a fé nestas descobertas desenha-se afinal uma corrente de opinião, graças à qual o explorador humano poderá levar mais longe suas investigações, pois que autorizado a não ter só em conta as realidades sumárias. Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar seus direitos. Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo interesse em captá-las, capta-las primeiro, para submete-las depois, se for o caso, ao controle de nossa razão (BRETON, 1924; p.4).
Com o objetivo de burlar o “império da lógica”, técnicas de automatismo tornaram-se um artifício para libertação do artista das exigências da vigília de modo que permita o maior grau possível de espontaneidade e superação ao controle racional. Em síntese, podemos deduzir que o conteúdo político no onirismo surreal, em especial na cinematografia, está em seu entrelaçamento com a subjetividade, enfrentando ao poder normativo das instituições e tradições como um ato de ruptura e de protesto.
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Yasmim Salles
Referências
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. Pulsões e seus destinos. Col. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Ed. Autêntica, 2013; Trad. Pedro Heliodoro.
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. O Estranho Vol. XVII, 1919; Editora: Imago. RJ, 1977.
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[1]Freud (1908/1996) descreveu a censura como uma instancia de vigília do psiquismo.