Sobre o Irã e o Islam – Número 170 – 12/2018 – [79 – 86]

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Oriente Médio foi uma palavra criada em 1902 por um oficial norte-americano chamado Alfred Mahan que afirmava que o país que controlasse o Oriente Médio seria capaz de controlar o mundo (Filiu, 2012: 63). Muitos países do Oriente Médio sofreram invasões, mas o Irã (antiga Pérsia) especificamente foi um alvo mais corriqueiro por conta da sua geografia, já que o Estado foi uma importante rota para o comércio mundial, ao localizar-se entre a Ásia e a Europa. O livro de Kamel explica que a antiga Pérsia foi rebatizada com o nome Irã (que significa terra dos arianos) pelo Xá Reza Pahlavi em 1935, porque ele preferia este nome e também porque a população já chamava o local assim. Alguns historiadores alegam que o Xá nomeou o lugar com este nome para agradar Hitler, mas isso nunca ficou provado uma vez que os cidadãos lhe conferiam este nome pelo fato de os colonizadores da Pérsia terem sido os arianos, portanto chamavam o país de Irã. Também na época em que o Xá estava na frente da máquina política, os cidadãos da Pérsia já denominavam o seu país como o Irã (Kamel, 2007: 117).

A origem do nome Pérsia vem da palavra Pars, que é o nome da província a sudoeste do Irã. Os árabes, que não possuem uma letra equivalente ao “p” em seu alfabeto, chamavam a região foneticamente de “Fars”. E assim o dialeto de Fars, conhecido como farsi, tornou-se a língua literária, padrão e nacional. Nos mundos clássico e ocidental, o nome regional foi também aplicado a todo o país, mas isso nunca aconteceu entre os persas, que usam o nome Irã – a terra dos arianos – há mais de mil anos. O Xá Reza Pahlavi conseguiu com que esse nome fosse formalmente adotado como o oficial do país em 1935 (Lewis, 2002: 11)

Estas invasões trouxeram ao país um pouco de suas culturas e deixaram marcas que permanecem até hoje na sua história, como a religião Islâmica, que chegou ao país junto com os conquistadores árabes. Posteriormente, o Irã passou a ser um grande polo de extração de petróleo, o que fez com que o país não se livrasse da cobiça dos estrangeiros (Weil, 2007: 130). John W Limbert argumenta a respeito dessa vulnerabilidade geográfica do Irã:

With Iran’s geographic vulnerability has come a cultural openness, a readiness to adopt enthusiastically foreign ways in religion, politics, art and social practice. (…) This adaptability and openness to the ways of outsiders has been a key to Iran’s survival as a distinct nation for more than twenty-five centuries. Foreign conquerors and foreign ideologies could change but not destroy the Iranian identity. Instead, Iranians have accepted and then mastered foreign customs by reshaping them into a (refined) Iranian form and making them a part of an enriched Iranian culture (Limbert, 2009: 24).

A citação acima é importante visto que enaltece o Irã como um país “openmind”, que é uma característica percebida pela comunidade internacional como “positiva”, “moderna”, “flexível”. Portanto, a percepção do Irã como um ator aberto a outras culturas, religião e arte contrasta com o discurso dominante nos dias atuais, que o caracteriza como um país arcaico, hermético e inflexível. Ressalta-se aqui a natureza política da caracterização do Irã como um país “retrógrado”. Sua transformação num país ícone do isolamento, da intransigência e do obscurantismo o constrói como o responsável pela relação de hostilidade vis-à-vis a “comunidade internacional”.

Aqui procuramos destacar o que é visto como parte constitutiva da identidade iraniana: o Islam. Como destacado pelos estudos que envolvem a religião muçulmana, a transliteração correta da palavra em árabe é “Islam” e não “Islã” como corriqueiramente é utilizado. Por isso, usaremos neste trabalho a palavra Islam. Como destacado pelos estudos que envolvem a religião muçulmana, a transliteração correta da palavra em árabe é “Islam” e não “Islã” como corriqueiramente é utilizado. Por isso, usaremos neste trabalho a palavra Islam. Fonte: Instituto Brasileiro de Estudos Islâmicos. A palavra “Islam” vem da palavra árabe “salam”, que quer dizer “paz”, já no sentido religioso, a palavra “Islam” significa “submissão voluntária à vontade de Deus”.Outra explicação para a palavra Islam está presente no livro de Pinto: “A palavra Islam vem do radical consonantal slm, do qual também deriva a palavra salam (paz). Embora geralmente se traduza Islam como submissão (à palavra divina), este termo está ligado a um vasto universo semântico que inclui “aceitação”, “conciliação” e “pacificação”” (Pinto, 2010: 42)

Será elucidado uma vez que foi esta identidade religiosa que passou a ser utilizada como argumento para a depreciação e repulsa do Irã. A história do Islam se inicia no século VII, quando um comerciante da Meca começa a realizar pregações religiosa-política. Seu nome era Muhammad ibn Abd Allah, mais conhecido como Muhammad ou Maomé, nascido em 570 d.C., na tribo Quraysh. Aos 40 anos de idade Muhammad recebeu o tanzil (revelações que Allah fez para o profeta Muhammad) através de uma visão do anjo Gabriel e a partir de então começou a difundir essas mensagens, a princípio pela cidade de Meca e mais tarde, em 622 d.C., realizou a Hijra. Segundo Pinto, na forma aportuguesada se escreve hégira (Pinto, 2010: 41). (migração) para cidade de Yatrib ou Medina, pois estava sendo perseguido em Meca. A tradução do árabe para Medina é “a cidade”, o que mostra que foi a cidade governada pelo profeta (Pinto, 2010: 41). A perseguição de Muhammad começou quando ele, através de suas pregações, passou a defender que Allah era o único Deus que deveria ser seguido, e que, portanto, o politeísmo deveria ser abandonado. Vale dizer que Allah não é o “Deus dos muçulmanos” como muitos acreditam. Trata-se de uma religião monoteísta, ou seja, Allah é o mesmo Deus dos muçulmanos, cristãos ou judeus, somente se difere o termo Allah, que é a tradução de Deus para o árabe, assim como em inglês Deus se chama God. Os clãs de Quraysh, que lucravam com as peregrinações à Caaba, passaram a persegui-lo a partir de então (Pinto, 2010: 41).

Os muçulmanos acreditam que o último profeta foi Muhammad e não como alguns o denominam, Maomé.  Os muçulmanos defendem a argumentação de que existe uma regra da tradução em que nome próprio não se traduz, por isso, se mantém o nome original do profeta Muhammad. Por conta disso, será utilizado o nome original Muhammad. Muhammad era descendente direto de Ismael, portanto também de Abraão (Ibrahim) e Adão. Muhammad ficou conhecido como o fundador do Islam, embora, para os muçulmanos, essa religião viesse sendo propagada pelos profetas anteriores a Muhammad, por ser uma revelação divina. Sua importância para os muçulmanos é enorme, tanto que no calendário muçulmano os anos começam a ser contados a partir da data da H’jra (hégira ou migração), que data no ano 622 para os cristãos, que contam o marco zero a partir do nascimento de Jesus Cristo (Schilling, 2006: 24). Muçulmanos são os seres humanos que se colocam sob a vontade de Deus voluntariamente. E esse nome de “muçulmano” lhes é empregado quando eles praticam o Islam.

Contudo, ao contrário do que muitos pensam, Muhammad não está para o Islam assim como Cristo está para o Cristianismo, pois os muçulmanos acreditam em Cristo, assim como acreditam em Noé, Abraão, entre outros. Para os muçulmanos todos eles foram profetas importantes (Said, 2007: 99). O Islã reconhece todos os profetas anteriores a Muhammad, como Jesus e Moisés. O Alcorão também fala da existência de um profeta para cada povo/nação e que não se tem registro do nome de muitos dos enviados de Deus (Pinto, 2010: 40). Os islâmicos acreditam que Muhammad foi o último profeta, e que o livro que deixou no mundo, o Alcorão (significa “Conjunto de Leituras”), é o que complementa e até mesmo substitui alguns dos ensinamentos feitos pelos apóstolos anteriores (Lewis, 1996: 199).Na transliteração do árabe a palavra “Qur’na” foi traduzida para “Corão” e deriva do verbo árabe “qaraa”, que o significado é: ler. Logo, “Alcorão” quer dizer: “o conjunto de leituras”. A fé dos muçulmanos em todos os profetas anteriores a Muhammad é citada na passagem a seguir do Alcorão:

Dize: Cremos em Deus, e no que foi revelado a Abraão, a Ismael, a Isaac, a Jacó e às tribos, e no que, de seu Senhor, foi concedido a Moisés, a Jesus e aos profetas; não fazemos distinção alguma entre eles, porque somos, para Ele, muçulmanos (submissos) (Alcorão 3:84).

Com o passar do tempo, Muhammad se torna tão popular que a cidade de Medina passa a se tornar uma rota importante para as caravanas beduínas comerciantes, que passam a converter-se ao Islam. Com isso, algumas batalhas foram travadas entre os que apoiavam Muhammad e os que controlavam Meca. Com a vitória dos muçulmanos os antigos rivais de Muhammad, os Quraysh, reconheceram a derrota em 630 D.C. e aceitam ceder o poder da cidade ao profeta.

Dado isso, Muhammad voltou a Meca e destruiu os ídolos politeístas de Caaba, mas manteve a cultura da peregrinação. Iniciaram-se então as orações voltadas para a direção de Caaba em Meca, que são realizadas até a atualidade pelos muçulmanos (Pinto, 2010: 43-44). Todavia, o profeta continuou morando em Medina e foi através de sua administração da cidade que foram criadas as regras da sharia, que delimita as regras de como a sociedade islâmica deve comportar-se juridicamente. No Islamismo existe a Lei da sharia. Esta lei versa sobre exemplos de como um muçulmano fiel deve agir na sua comunidade e também na sua casa. Nos regimes teocráticos, tanto o Alcorão quanto a sharia são empregados pelo governo. O objetivo do uso da sharia é que os muçulmanos devem levar uma vida de acordo com a sharia e o Alcorão e assim poderão ter a vida eterna no outro mundo (Lewis, 1996: 203). O profeta Muhammad revelou-se figura essencial para a consolidação da religião islâmica para além da Península Arábica. Foi também fundamental que esta religião fosse difundida através do Alcorão e algumas vezes também foi necessária a jihad.

No alfabeto árabe, “guerra” se traduz como “harb”. Já a palavra “Almukads”, quer dizer “santa”. Portanto, para se ter a expressão “Guerra Santa”, em árabe, seria “Harb Almukads”, que não se encontra descrito nos textos islâmicos. Já a palavra “jihad”, quer dizer “esforço; empenho”. Portanto, segundo a crença islâmica, existem dois tipos de jihad: jihad maior e o jihad menor. O jihad maior é à luta que o homem trava consigo mesmo no seu cotidiano, quando resiste às tentações e evita falhar. O segundo é o jihad menor, e este é mais abrangente, porque diz respeito ao nosso comportamento do homem perante seus semelhantes. Segundo Isbelle, a jihad menor somente pode ser usada no conflito armado caso a busca seja pela autodefesa, e só permitiram aos muçulmanos que se utilizassem da mesma após a Hégira (Isbelle, 2008: 53).

Vertentes do Islam

Existem várias vertentes que seguem o Islamismo, sendo duas as mais populares e numerosas: sunita e xiita. E a discórdia entre elas se inicia por conta da sucessão de Muhammad. A maior parte dos muçulmanos são sunitas, mas cerca dos 15% (Pinto, 2010: 23) restantes se encontram prioritariamente no Irã, no Iraque e na Arábia Saudita. Com o passar dos anos as diferenças entre estas crenças foram aumentando cada vez mais e nos dias atuais elas são tão distintas que muitos adeptos até se consideram rivais.

Não existe um Islamismo comum a todas as vertentes que seguem esta religião, portanto, podemos considerar que existem distintas formas do Islam e que elas se adaptaram de acordo com o ambiente cultural em que foram engendradas. Muitos dos preconceitos que englobam a religião Islâmica estão justamente atrelados a esta ideia, empiricamente contestável, de que todos os islamismos podem ser agrupados numa única vertente e que todos os islâmicos são pessoas perigosas. Como salienta Said: “A maior parte das pessoas se inclina a fazer do Islã um tipo de coisa unitária e compacta” (Said, 2003:119). Ainda assim, buscamos encontrar alguns preceitos comuns para sintetizar a crença no Islamismo, que seriam: a crença no profeta Muhammad, no Alcorão, nos “5 pilares” do Islam, a Hadith (livros que se referem às tradições sobre a vida do profeta) e a Sharia (lei islâmica) (Pinto, 2010: 38).

A palavra xiita vem de shi’ at’ Ali (que quer dizer “os partidários de Ali”) e esse significado demonstra como a sucessão de Muhammad é demasiadamente importante para diferenciar os muçulmanos xiitas dos sunitas. Os xiitas acreditavam que apenas os familiares do profeta (ahl al-bayt) poderiam sucedê-lo, e acreditavam que Ali, que era primo e genro do profeta Muhammad, deveria sucedê-lo após a sua morte. Já os sunitas acreditavam que um muçulmano comum e devoto poderia suceder Muhammad. Segundo Pinto: “Em oposição, aqueles que evocavam apenas a tradição deixada por Muhammad (sunnah) a qual, segundo eles, não incluiria as regras de sucessão, foram designados coletivamente como sunitas”. (Pinto, 2010: 74). Para os muçulmanos devotos do sunismo, a sunnah é a segunda fonte no Islam. O significado de sunnah é “O que o profeta Muhammad disse, fez ou aprovou.” Na sunnah existem as hadiths, que são as mensagens transmitidas pelos companheiros do profeta Muhammad (Ibrahim, 2008: 49). Ali chegou a ser o quarto califa, após a morte de Muhammad, e quando chegou ao poder tentou cessar a discórdia entre sunitas e xiitas, mas não obteve sucesso e foi assassinado em 661, período no qual a sociedade islâmica entrou numa guerra civil (Polk, 2009: 68). A palavra Califa significa “chefe político e religioso. E é a transliteração do termo “khalifa” para o português. Sendo o termo árabe “khalifa”, uma abreviação de khalifatu rasulil-lah e que quer dizer Sucessor do Mensageiro de Deus, o Profeta Muhammad (saw). O título “khalifatu rasulil-lah” foi usado para Abu Bakr, que na época foi eleito o chefe da comunidade muçulmana, após a morte do profeta Muhammad.

Existem diferentes versões sobre a batalha de Karbala. Com a morte de Ali, seu inimigo, Muawiyyah assumiu o califado e iniciou a dinastia dos Omíadas. O filho primogênito de Ali, Hasan (a quem os xiitas consideram como o segundo Imam) abandonou a política e morreu em 669. Quando o califa Muawiyyah faleceu em 680 começaram a ocorrer grandes manifestações em Kufa, no Iraque, para que o segundo filho de Ali, Hussein, se tornasse o novo califa. Mas o novo califa omíada, Yazid, perseguiu Hussein e ordenou que ele fosse assassinado. A batalha ocorreu no dia 10 de Muharram, na cidade de Karbala, onde Hussein estava com mais cinquenta seguidores e acreditava precisar se opor ao líder “injusto” e “ímpio”.

A importância do mês de Muharram é ainda maior por se tratar de um mês sagrado. Este é considerado como um mês abençoado, sendo o primeiro mês do calendário da Hégira e é um dos quatro meses sagrados sobre os quais diz Allah (na interpretação do significado): “Para Allah, o número de meses é de doze (em um ano), como foi ordenado por Allah no Dia em que Ele criou os céus e a terra; quatro deles são sagrados. Este é o cômputo certo, portanto não vos condeneis …” (at-Taubah 9:36). Muharram é assim chamado porque é um mês sagrado (muharram) e para confirmar sua santidade. Nas palavras de Allah: “portanto não vos condeneis…” significam que pecar nesse mês é pior do que nos outros meses. Foi relatado que Ibn ‘Abbaas disse que esta frase (portanto, não vos condeneis…) refere-se há todos os meses, mas que estes quatro foram escolhidos e tornados sagrados, para que o pecado nesses meses fossem mais sérios e as boas ações trouxessem uma recompensa maior. Parecia pensar que um espetáculo de batalha entre a família do profeta contra a tirania faria com que a ummah (a comunidade muçulmana)” (Armstrong, 2001: 420) voltasse a ter práticas mais autênticas do Islamismo. Durante a batalha, que ficou conhecida como a batalha de Karbala, as tropas omíadas massacraram o exército de Hussein (Armstrong, 2001: 66; Pinto, 2010: 75-76). Esta derrota fez com que os sunitas e os xiitas se separassem de vez. Nas palavras de Pinto:

A batalha de Karbala, episódio ocorrido em 680 a.D. entre Hussein e seus seguidores e as tropas do califa Yazid, que terminou na derrota e no martírio daqueles, marcando a separação definitiva entre os xiitas – seguidores de Hussein – e os sunitas, que aceitavam que a liderança dos muçulmanos poderia ser dada a pessoas não relacionadas ao profeta (Pinto, 2005: 239).

A partir desta data os xiitas passaram a praticar o auto sacrifício anualmente no jejum da Ashurahomenageando o sacrifício de Hussein contra o tirano Yazid. “A ’Ashura’, como o nome indica, marca os dez primeiros dias do calendário lunar muçulmano, nos quais Hussein e seus seguidores foram cercados e, no décimo dia, massacrados pelas tropas do califa Yazid em 680 A.D, na planície de Karbala no atual Iraque. Esse episódio marcou a divisão definitiva entre sunitas e xiitas e é relembrado com rituais de lamentação e mortificação” (Pinto, 2005: 241). O ritual consiste em se autoflagelar em nome da tirania e da corrupção da política muçulmana (Armstrong, 2001: 66).

Por isso, os xiitas acreditam no autosacrifício e defendem a ideologia dos mártires, que também pode ser apresentada como a forma que um verdadeiro muçulmano deve viver. Os sacrifícios foram iniciados devido à morte de Hussein, filho de Ali, como dito anteriormente. Para os xiitas, se é dever do súdito obedecer aos governantes que tiverem uma liderança esclarecida, o súdito deve se rebelar contra as lideranças que não tiverem honra, ou seja, que tiverem perdido sua farr– “uma espécie de bênção divina que devem conquistar por seu comportamento moral” (Kinzer, 2010: 37). “Attribute was of even more remote Iranian ancestry and was specifically associated with kingship. It was the notion of divine favor, farr” (Polk, 2009: 42). Este conceito da farr foi herdado pelos xiitas da religião dos Zoroastros, que havia no Irã antes mesmos dos árabes espalharem o Islam no local. Eles não utilizam este vocabulário farr para falar sobre a honra do governante, mas creem que isto está previsto no Islam. Morteza Motahari, líder islâmico, se pronunciou sobre a origem da questão da honra na religião: “O Islam diz que (…) a mais exemplar e suprema forma de luta é um homem sentar-se diante de um líder opressor e pronunciar a palavra justiça” (Gordon, 1987: 29).

O conceito da farr é particularmente relevante uma vez que projeta a religião Islâmica como “justa” e como contrária à opressão. Tal visão se opõe àquela comumente propagada, segundo a qual o Islam por si só seria uma religião em prol das práticas violentas e radicais. O argumento da farr apresenta justamente o oposto disso, revelando como o Islam, sua essência, busca ser uma religião que valoriza a honra e a justiça de um governante. O resgate do conceito da farr revela-se fundamental para repensar os rótulos atualmente atribuídos ao Irã, uma vez que ao invés de ser visto como um país teocrático cuja religião fomenta o radicalismo e o conflito, o Irã poderia ser compreendido, na contramão da visão dominante, como um país que professa uma religião contrária a toda forma de opressão. Pretende-se argumentar aqui, que a lógica moderna usualmente percebida como “fundamentalista” – uma vez que ratifica um Estado teocrático, tido como “radical”- exclui visões alternativas acerca deste país. O consenso moderno em torno dos Estados seculares marginaliza outras formas de governo possíveis.

O fundamentalismo islâmico deve ser citado para que possamos compreender as enormes diferenças que existem no Islamismo, não apenas entre sunitas e xiitas, mas principalmente entre grupos radicais e não radicais. O termo fundamentalista veicula uma ideia de que os que seguem este viés são os mais “puros” da religião, ou seja, os que seguem exatamente o que está escrito no Alcorão e na sharia, mas isso não é incontestável.

O termo fundamentalista utilizado por alguns grupos radicais poderia ser lido como fanatismo, pois tais grupos decifram os ensinamentos de forma radical e os aplicam de maneira brutal nas sociedades em que se encontram no poder. Portanto, a interpretação desses grupos sobre os livros sagrados é apenas uma entre várias possíveis.

Devido ao fato da antiga Pérsia ter sido invadida por povos distintos, não existe uma data precisa de quando o Islamismo surgiu na cultura persa, mas se estima que a conversão dos antigos persas ao Islamismo date do período entre os séculos X e XV. A cultura persa foi durante séculos multicultural e multireligiosa, tendo uma grande parcela da sua população devota também do cristianismo. Alguns dos seus povos colonizadores eram zoroastros, budistas e outros islâmicos. Foi somente a partir da dinastia Safávida que o território iraniano foi sendo convertido ao Islamismo xiita.

O Islam xiita se difundiu na antiga Pérsia no ano de 1501, quando um homem cujo nome era Ismail conseguiu ter o controle do território persa e declarou que dali em diante a religião do local seria o Xiismo do Duodécimo ou Dozeno do Xiismo. O grupo do Xiismo do Duodécimo tem a crença de que a liderança entre os muçulmanos deve seguir; através das suas gerações. Dessa maneira, acredita que foi Allah quem escolheu Muhammad e este também definiu quem seriam os líderes depois dele. Este grupo acredita que o último imã é o décimo segundo e ele está escondido e reaparecerá, trazendo mil anos de justiça e paz antes do dia do julgamento (Gordon, 1987: 27).

Ismail nomeou-se Xá do local e deu início à dinastia Safávida, que perdurou no Irã até o ano de 1722. A palavra Xá é derivada da palavra Xainxá ou Shah-in-hah, que significa rei dos reis (Gordon, 1987: 29). No momento inicial desta dinastia, a grande maioria da população iraniana era sunita, mas as reformas realizadas por Ismail e os governantes que o sucederam mudaram a configuração religiosa do Irã, a princípio, por meio do uso da força (Gordon, 1987: 31). Essa mudança religiosa no Irã foi responsável por determinar grande parte da identidade nacional iraniana, visto que o xiismo é um dos valores políticos e econômicos fundamentais no país. Nas palavras de Limbert: “Yet despite their foreign origins, both Islam in general and Shia Islam in particular have today become fundamental elements of the Iranian national identity” (Limbert, 2009: 24). Com isso, mesmo o Irã não sendo essencialmente um país árabe e tendo adotado tardiamente o Islam, esta religião passou a ser uma espécie de bandeira de resistência frente às inúmeras influências estrangeiras no território.

Considerações Finais

Fez-se necessário explicar o Islamismo no território do Irã, pois esta religião tornou-se um baluarte da resistência iraniana contra as práticas modernizadoras implementadas no país. Islamismo também é objeto de análise tendo em vista que os discursos mais viabilizados midiaticamente qualificam seu seguidores, sobretudo no Oriente Médio, como “fanáticos”, “retrógrados” e “radicais”, criando as condições de possibilidade para práticas violentas contra os países que professam tal religião. A generalização do Islamismo como um símbolo do “atraso” se estende aos seus seguidores, os quais são percebidos, do mesmo modo a religião a qual aderem, como “fanáticos” e “irracionais”, como se esta religião definisse suas identidades. O objetivo é inserir maior complexidade à visão propagada pelos discursos ocidentais, chamando atenção para o fato de que o Islam é um objeto de disputa na própria sociedade iraniana. Busca-se desnaturalizar a ideia de que o Islamismo teria uma natureza inerentemente violenta. Conforme visto, o Islam não pode ser necessariamente compreendido como uma doutrina por meio da qual “fanáticos” religiosos pregariam a violência contra os povos ocidentais.

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Tamires Alves

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.