A Morte é uma Flor: Diane Sbardelotto – Número 169 – 11/2018 – [75-78]

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1. A dúvida dela era sobre como começar. Ainda não pudera verificar. Sabia que como título de livro não fora Celan que pensara em A Morte é uma Flor. Ela pensava nisso atenta à forma como lhe parecia único. O mais belo título jamais pensado teria sido estabelecido eivado de apocrifia. Seriam os poemas que ele não publicou ou julgou que era o caso de não fazê-lo. A morte retirara a liberdade de ter segredos reveláveis. A morte permitiu que desabrochassem sua intimidade. A memória parecia a enganar. Pode ser que A morte é uma Flor fosse o início de um poema por Celan esquecido e pela morte lembrado.

2. Depois de decidir que deveria começar por Celan. Mais do que isso, depois de lhe parecer recomendável sempre estrear com Celan, supôs como era fácil compor com flor. Ainda, o vínculo entre o temível ou do misterioso com a flor. Não parecia difícil amar o abismo, a tristeza, o sofrimento se na verdade fossem flor. Pode-se dizer que ficou um pouco abatida com essa descoberta. Houvera dito a morte ser flor por sabê-lo? Não seria o resultado de um esforço de composição, mas tão somente o relato de algo percebido? Celan pudera o dizer por ter visto a morte ser flor? Então, por isso, ela que se entregou a pensar sobre Celan, acometida pela melancolia momentânea de perceber a gravidade da fórmula, a impossibilidade de tirar vantagem da descoberta, estava certa de não poder dizer quase nada como flor, nem mesmo o amor como flor. Sabia poder repetir Celan. A morte é uma florA morte é uma flor. Isso, oras, não era dizer, mas citar.

3. Assumia como seu o hábito de andar muito, de percorrer a cidade sempre estalando a sola dura dos sapatos sobre os calçamentos. Ao definir que esse seria o seu modo de proceder, admitia bem claramente para si mesma, ter se inspirado no fato de que Nietzsche também dessa forma procedia. Impressionava-a as referências de que o andar o impelia com tal intensidade que havia mesmo imaginado uma forma pela qual a escrita errante, feita em deslocamento, poderia ser possível. Apesar da influência, concebia que o mais correto seria andar muito, mas, de tempos em tempos, interromper a atividade, plantar-se para escrever. A escrita seria a forma nova do movimento que se realizava, sem distrações ou ressentimentos, donde o poema germinaria, então, como flor. Primeiro se iniciaria uma agitação, mas que só deveria se tornar letra, depois que a quentura atingisse o momento de transfiguração. Operação que demandaria a imobilidade para acontecer. Daí a lição. Seria o caso, diante da exaustão do cavalo, do chicoteamento, de não simplesmente, autorreferente, ver-se extenuado, por não mais ser capaz de criar. Nada disso. O pranto copioso em Turim não deveria ser por se ver empático ao animal, mas por, em visão simpática, ter nele um igual abatido. O resultado de se tomar o cuidado de mediar a criação pelo repouso seria o de trocar a existência trágica que não pode parar, porque se para, pensa, e se pensa, chora, por uma existência neutra, que apenas seria feita miserável, daí passível de lágrima, toda vez que lhe fosse vedado o momento de flor.

4. Ela não vira o seu rosto. Nada de fisionomias. Não foi por isso que o respeitou ou se sentiu contemplada. Entre eles houve uma extrema exigência de rigor. A mesma intransigência existente entre La Boétie e Montaigne. Não era relevante a família da qual saíram, as escolas em que estudaram, os amores pelos quais se aventuraram, nada disso, não se exigiam os nomes das fraturas, mas o movimento realizado a partir delas. A relação livre, como mantida entre raízes poderosas, que, a despeito de todas as fissuras sofridas, vencem o concreto para chegar ao outro lado. A primeira impressão foi a de alguém andando ainda mais rápido do que ela. Ela, sempre tão orgulhosa de sua própria velocidade, não ignorava a aproximação de alguém. Mas virar apavorada para ver o rosto de quem vinha e se sentir tranquila por ser branco ou prender a respiração por não ser, era clichê que ela insistia por não repetir. Além do mais como lhe podiam acompanhar as pernas? Sim, apenas um pouco mais alto, as pernas do mesmo tamanho que as dela, pois sempre as tivera longas, ou seja, nenhuma disparidade anatômica que justificasse o ultrapassamento. A reação seria compensar a momentânea falta de velocidade por ardil. Se ele tivesse alguma dificuldade para se livrar dos passantes à frente, seria o momento em que o troco seria dado. Ela o viu em seus contornos. Ao ultrapassá-lo, destemida, sentiu-se percebida também nos seus, porém também em seu ardil, em sua resistência. Afastou-se, atrás de si, um belo e frágil instante, a liberdade feita possível, não pela rivalidade, mas pela possibilidade do movimento, de ter uma direção para ir, pela viabilidade, diante de todos os acidentes, de, diante de todo reconhecimento precário, ser surpreendida caminhando para algum lugar.

5. De repente se deu conta do descompasso entre o desejo de se determinar o espaço da árvore e o curso próprio da liberdade dessa. A circunscrição de metal esperava um corpo não tão esguio, ora, havia a expectativa de que se tornasse bojuda, farta em seu preenchimento. Mas nem por isso. O resultado fora o inicial esgarçamento do metal. Ele poderia ser arrebentado e a liberdade diria basta à idealidade roubadora da expansão. O resultado, porém, é a fusão da carne da árvore a engolir a ferragem, a deixá-la existir. O tronco se mescla à imaginação restritiva, a existência arbórea se torna o vestido do esqueleto que passa a envolver. A planta se faz roupa anômala do corpo que lhe fora imposto.

6. Nos esforços de compreensão da modernidade, em sua industrialização, dois modelos de compreensão disputaram. Aquele que prevaleceu, demonstra o modo como o maquínico inaugurado pelo engenho dá início à imensas cadeias pelas quais nossos valores se reproduzem com eficiência inesperada, tendo como resultado o atravessamento do tecido social por uniformização e ordem. Essa narrativa grosso modoprivilegia dinâmicas amplas. As grandes máquinas de nós surgidas a se metamorfosearem com os nossos valores. Mas a versão derrotada parece assumir nova vida em ambiente contemporâneo. Gabriel Tarde é o seu instituidor, nela são privilegiadas plêiades de pequenos acontecimentos que esteticamente se oferecem aos nossos valores em possível outra reação. As nossas máquinas seriam também boicotadas por seus acidentes, residuais mesmo, que, ao serem notados como insistentes, reagiriam com o que pensamos de nós mesmos e do nosso mundo, aparentemente, mesmo a contrapelo aos modos da homogeneidade. Sim, essa seria a via de refutação à suposta natureza normativa dos processos sociais, pela afirmação de dinâmicas regulares, que, justamente por serem regulares, preveriam a transgressão. Assim, mesmo sob densa atmosfera normativa, a variabilidade nos faz encontrar esteticamente o acidente, de modo a marcar a precedência do pequeno sobre o grande e da composição sobre a imagem. Se as jovens costureirinhas nas fábricas têm os seus corpos e mundos feitos na cadência maquínica em que são levadas a perfurar os tecidos com as agulhas, torcendo os panos de um lado para o outro, movendo as suas pernas para frente e para trás, metamorfoseadas em homúnculos autômatos, há também uma perversão regular, a qual precisariam resistir para trabalhar com eficiência, que as empurra a cerzir o estranho, a expressar a tortura em seus corpos, a transfigurar a linha em sutura, pulsão essa que mesmo sendo reprimida, pode ser vislumbrada na quase invariável diferença de todo ente pretensamente idêntico. A diferença que vive na composição.

7. Os seus dias sempre repletos de atividades. A opção seria acordar mais cedo para poder lavar suas roupas. Não poderia participar da sinfonia de máquinas de lavar, a girar e deitar água por mangueiras, que acidentalmente sabia existir todas as tardes. Era a exclusão que sofria por não ser, no sentido pleno, uma dona de casa. Pouco importava. A perversão então a empurrava a realizar o trabalho pelas madrugadas. Nada de solar para casas vazias. A consciência da estética (e da politicidade, por que não?) presente na condução dos afazeres cotidianos, tentava-a por se aproveitar ainda mais da adorável anomalia das coisas. Se, como havia lido, “[u]ma árvore, uma coluna, uma flor, uma vara crescem através do corpo; [se] sempre outros corpos penetram em nosso corpo e coexistem com suas partes”, então quereria alucinar como raiz a se revolver pelo corpo de todos os que estariam dormindo[1]. Seria, com sua máquina de lavar solista, a mais expressiva das vozes mecânicas pela madrugada. A sua pretensão seria a de atravessar os corpos e colonizar os sonhos com as imagens de roupas sendo retorcidas, torturadas em formas imprevistas, tortuosas em suas cores estabelecidas pela fusão velocíssima, que seriam induzidas pela cadência rítmica e oscilada entre lavagem, molho, centrífuga e enxaguamento. Aquele universo estético, ignorado na vigília, mistura da poética do cotidiano com abstração sinuosa, instituindo as percepções sem que as pessoas pudessem ter qualquer defesa. Ela comporia com roupas no inconsciente vulnerável de seus involuntários ouvintes. Essa seria a sua flor pela madrugada.

8. Por lhe parecer uma estranha rebeldia da qual não conseguia se esquivar, ela perguntou sobre o que faria se estivesse na posição dela: – O que faria se, ainda que pudesse consultar alguma fonte, insistisse em torturar a si próprio para lembrar sozinho, sem depender de nenhum artifício? Ela notou o efeito da estranha pergunta sobre o parcialmente desconhecido. A resposta prosaica, contudo, fora de grande ajuda. O homem disse que agonizaria até que algum incidente o obrigasse a parar. Ela concluiu pelo prazer de um martírio que pudesse ser interrompido. Pode ser que aquele nem sempre fosse o caso, mas, na verdade, era o seu caso. Não podia lembrar sozinha de um verso do Celan. Este precisaria ser usado em um trabalho com data para ser entregue. Até que havia chegado a véspera. Desistiria assim? Seria só isso? Abrir o livro e saber? A perversão a fez, apesar de ter o livro em mãos, sentar à frente do quase conhecido: – Eu sei que a morte é uma flor. Mas o que mais a morte é? Ele lê e diz que a morte é uma flor. Se ela se abre, nada abre com ela. Pode abrir a qualquer momento. Ela é o corpo do qual se deseja ser a roupa. 

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Cesar Kiraly

[1] Gilles Deleuze, Lógica do Sentido (São Paulo: Editora Perspectiva, 2000). p. 90.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.