A Relatividade Essencial – Número 159 – 01/2018 – [02-11]

A

Este Breviário em PDF

A noção do relativo é essencial a céticos e relativistas. No que concerne à sképsis pirrônica, Sexto Empírico o demonstra nas Hipotiposes Pirrônicas em pelo menos dois lugares: no oitavo “modo” de Enesidemo e na exposição dos cinco modos de Agripa. No oitavo modo Sexto diz ter estabelecido a relatividade de todas as coisas, o que ele toma como condição para poder concluir que somos incapazes de afirmar qual é a natureza ou a essência delas, isto é, o que cada uma é independentemente dos seres que procuram conhecê-las. Nós só estamos, nessa medida, autorizados a discorrer sobre o aparecer delas, o que explicita seu relacionar-se a nós, sua relatividade. Ou como Sexto prefere apresentar essa consideração, nos Modos de Agripa, tanto coisas sensíveis quanto objetos de pensamento são relativos àqueles que têm as impressões ou que desenvolvem alguma atividade intelectual a seu respeito.

Mas Sexto faz mais. Nas Hipotiposes, ele também faz questão de distinguir entre o ceticismo pirrônico e a filosofia de Protágoras, frequentemente designada por historiadores e comentadores de nossa época como um “relativismo”. Sexto reconhece não ser fácil a tarefa de diferenciar ambas as posições, dada sua grande semelhança, consolidada pela admissão básica do papel primordial do pensamento do relativo no chamado pirronismo e na sofística. Por isso o ponto de partida adotado aqui é uma passagem das Hipotiposes Pirrônicas de Sexto Empírico (HP, I, 216-19), onde é fornecida uma indicação para distinguir-se entre o ceticismo pirrônico e a filosofia de Protágoras – mais precisamente a famosa doutrina do “homem-medida”. Sexto destaca, logo no início deste trecho, a importância decisiva, em Protágoras, da noção de relatividade. Sexto, a rigor, diz muito pouco para promover a distinção. É difícil afirmar que isso se deva ao aparecer como óbvio a seus olhos o dogmatismo de Protágoras, por trás da elementar semelhança entre ambas as posições filosóficas; ou então que o acanhamento se deva a uma dificuldade por parte de Sexto no sentido de aprofundar a diferença. O máximo que consegue afirmar em conclusão é que “de acordo com Protágoras, o homem se torna o critério das existências reais; pois todas as coisas que aparecem para o homem também existem e as coisas que não aparecem para o homem não têm qualquer existência. Vemos, então, que Protágoras dogmatiza sobre a fluidez da matéria e também sobre a subsistência, nela, das razões de todas as aparências, as quais são matérias não evidentes, sobre as quais suspendemos o juízo.”

Também entre os céticos modernos a relatividade não se faz ausente, como o ilustra o caso especificamente de Hume. Mas, seria Hume, ao menos em sua filosofia prática, um relativista ou um cético? Bem, enquanto cético, certamente não é um pirrônico, cujo filosofar não usufruía de simpatia nem identificação, de sua parte. Há comentadores contemporâneos que parecem dirigir-se para a primeira opção, como John L. Mackie. Com uma visão oposta temos Richard Popkin, que, em sua “História do Ceticismo”, identifica Hume como o primeiro filósofo a pôr em dúvida sistematicamente tanto a crença religiosa (ou fé) quanto o conhecimento. Temos assim um cético completo, nos tempos modernos: cético epistemológico e cético em matéria de religião. Como sustenta este último intérprete, Hume pensava que um ceticismo total, radical, não podia servir de base para a convivência humana. Mas ele era da opinião que havia um tipo de conhecimento que não tinha necessidade nem de fé, nem de primeiros princípios filosóficos: o conhecimento ou saber prático – este sim, capaz de lastrear uma reflexão política consistente e responsável. Segundo afirma Hume, no Tratado da Natureza Humana (ed. Selby, pp. 468-69), a história mostra que “a dependência mútua dos homens é tão grande em todas as sociedades que raramente alguma ação humana se completa inteiramente em si mesma ou é levada a cabo sem alguma referência a ações de outrem.” Nesse sentido, quanto maior a complexidade de uma sociedade, maior a dependência, ou por outras palavras, a relacionalidade entre os seus membros em seu agir.

A linguagem da história, no entender de Hume, é que seria a mais adequada para se discutir e pensar a vida humana. A história nos ensina que os seres humanos parecem, efetivamente, não saber de modo objetivo e certo o que fazem. Ocorre que a vida comum exibiria algo de grande mérito aos olhos do filósofo escocês: que a moralidade é determinada por sentimento, algo que brota da estrutura da natureza humana. Hume mostra que a moralidade não é ameaçada pelo conhecimento nem pelo ceticismo. Decerto, a história não seria, de forma alguma, uma lição de moralidade. Hume diz na Investigação sobre a moral: “Da evidente utilidade das virtudes sociais, foi prontamente inferido pelos céticos, antigos e modernos, que todas as distinções morais derivam da educação, e foram, à primeira vista, inventadas e posteriormente encorajadas pelos políticos de modo a tornar os homens tratáveis, subtraindo-lhes sua natural ferocidade e egoísmo”.

Hoje, considero da maior relevância enfatizar o papel e o peso desempenhado pelo conceito de relatividade, sobretudo quando nos situamos no campo de discussão das crenças morais e políticas e dos valores na vida ética. Privilegiar o peso e o papel do relativo acima dos detalhes técnicos escolares parece-me primordial no plano da intervenção na arena ético-política, dando razão, nessa medida, a Richard Rorty quando diz que “o melhor que podemos fazer, quando fazemos escolhas morais ou políticas, ou quando decidimos entre teorias científicas ou convicções religiosas, é elaborar uma história da maneira mais coerente que pudermos. Mas fazer isso não assegurará que o julgamento da História ficará do nosso lado. Se o fato de perseverarmos em nossas histórias nos tornará objetos de admiração ou de aversão para futuras gerações é algo inteiramente além de nosso controle.” Rorty aproxima-se das posições contextualistas, para quem não há uma única racionalidade – uma ‘Razão’, com ‘R’ maiúsculo, significando ou implicando uma validade independentemente de contextos (RORTY, 2009: 125). Ele entende que nossa identidade moral é determinada pelo grupo ou grupos com os quais nos identificamos. Donde poder tomar posições como essa, ao afirmar, no que concerne ao difícil problema dos choques de tradições e culturas e entre os valores dos povos, que não há nenhum tribunal transcultural da razão perante o qual se possa julgar a questão da superioridade. Assim, pode defender com simplicidade e com coerente firmeza que podemos trabalhar na direção de um acordo intersubjetivo sem sermos iludidos pela promessa de validade universal. Podemos introduzir e recomendar novas e surpreendentes ideias sem atribuí-las a uma fonte privilegiada. Como se sabe, Rorty sustenta, em concordância com Dewey, que os filósofos nunca seriam capazes de ver as coisas sob a perspectiva da eternidade; eles deveriam, em vez disso, tentar contribuir para a conversação da humanidade sobre o que fazer com si mesma. O progresso dessa conversação tem engendrado novas práticas sociais e mudanças nos vocabulários empregados em deliberações morais e políticas. Sugerir novos vocabulários já é intervir na política cultural.

A coerência no apoiar-se no relativo, por parte de Rorty, pode ser notada em muitos outros lugares, por exemplo, em um artigo sobre suas divergências e convergências com Hilary Putnam, no qual, neste segundo caso, arrola considerações antiabsolutistas, como a que sustenta que deveríamos aceitar a posição que estamos destinados a ocupar, de todo modo, a posição ou condição de seres que não são capazes de possuir uma visão de mundo que não reflita nossos interesses e valores, mas que são forçados a encarar algumas concepções – e alguns interesses e valores – como melhores do que outros. O conhecimento ético não pode pretender um status ou caráter de absoluto. Assentado na ferramenta conceitual da relatividade pode sempre dizer coisas como estas: que nossas normas e padrões sempre refletem nossos interesses e valores, e que não somos capazes de justificar nossas crenças para todo mundo, mas apenas para aquelas pessoas cujas crenças convergem ou superpõem-se com as nossas em alguma medida apropriada – O que, aliás, é algo que, a mim ao menos aparece, um cético pirrônico não diria.

Aliás: em que termos colocar a questão da justificação no domínio da ética? É uma posição amplamente aceita a que defende a existência de uma analogia entre a diferença entre justificação objetiva versus subjetiva no plano epistemológico e a mesma diferença no plano da ética. Alguns autores observam que uma ação é, de um modo geral, dita justificada simplesmente quando ela é moralmente aprovada. Mas é importante distinguir entre justificação subjetiva e objetiva. Há, decerto, variações na maneira de dizer o que é uma justificação ética objetiva, mas a elas não se está atribuindo peso aqui. Passando por cima dessas distinções, não necessariamente de grande monta, o que se faz presente na maior parte das vezes é a ideia que as crenças efetivas de um eventual agente e a informação de que ele dispõe sobre a situação são irrelevantes para fins de avaliações ou julgamentos éticos objetivos. O ponto chave, então, a ser ressaltado é que a justificação objetiva em matéria de moral é considerada como sendo independente das crenças ou dos estados cognitivos do agente. A justificação subjetiva é relativizada, considerada como relativa, de alguma forma, ao estado cognitivo do indivíduo agente. Daí que se possa sublinhar que pode muito bem haver ações que são subjetivamente justificadas, sem serem objetivamente justificadas e, por razões similares, ações que podem ser objetivamente justificadas sem serem subjetivamente justificadas. Como quer que seja, já que mencionamos o ceticismo, Rorty faz uma observação perspicaz acerca de uma ideia que seria comum a Stanley Cavell e a Jacques Derrida: que o ceticismo é algo que retornaria, ressurgiria sempre – à maneira de um psicanalítico retorno do reprimido.

Como bom analítico, Rorty entende assim a participação político-cultural: já estamos tomando parte na política cultural quando discutimos o uso correto de palavras. Reprimendas e admoestações a certos usos podem significar aumentar o grau de tolerância que certos grupos sociais têm em relação a outros: “não há critérios para se determinar quando é racional e quando é irracional passar da adesão a uma tradição a uma concepção cética de mero mitoa seu respeito. Decisões sobre quais jogos de linguagem devem ser jogados, sobre o que falar a respeito e o que não falar, e com quais objetivos, não são tomadas com base em critérios de consenso. A política cultural é a atividade humana menos governada por normas.” (RORTY, 2009: 47)

Ora, o potencial moral da linguagem pode ser esvaziado ou mesmo saqueado – o que provoca toda uma angústia, todo um desespero nos indivíduos. Certas palavras parecem ter seu sentido evaporado, sendo usadas irrefletidamente, pois uma vez que alguém se detenha nelas e reflita sobre o que elas significam, descobrir-se-á que elas podem dizer qualquer coisa e nada especificamente, elas nada esclarecem, nada acrescentam em termos de compreensão. Essa, então, é mais uma contribuição para a descrença das pessoas das sociedades modernas em sua cultura ou para com sua história. Aquelas belas palavras, das grandes falas, da retórica de ocasião, tornaram-se corrosivas para a filosofia moral e para a ética em geral. Talvez as pessoas falem demais com elas, mas não possuam aquilo que elas significam ou tenham alguma vez significado para muitos: não é incomum que se fale muito do que não se tem – assim, por exemplo: liberdade, justiça, democracia, etc.

——-

Em se tratando de atitudes ou posições básicas que se contrapõem, como no caso da oposição relativismo versus absolutismo (ou universalismo), o ponto de vista de quem defende o relativo deixa-se descrever de maneira elementar e econômica de modo semelhante a como Sexto Empírico define a atitude do pirrônico: como não se tendo ou dispondo de razões boas ou fortes para se adotar uma das posições em detrimento da outra (sendo que o absolutismo defenderá, contrariamente, que tais razões existem sim). O relativista em matéria ética sustenta que é impossível fornecer as tais boas razões a favor ou contra determinados juízos morais, se por “boas razões” se entendem razões que não sejam ou estejam culturalmente vinculadas. Que dada opinião moral seja verdadeira ou falsa, isso é algo que não depende de quem ou quantas pessoas nela creem, e sim de se razões podem ser fornecidas para justificar essa opinião. E o que justifica não é o fato de haver certo acordo ou determinada concordância, mas a razoabilidade ou plausibilidade das opiniões ou dos juízos: aqui ser racional ou razoável tem o sentido simplesmente de ser capaz de dar razões para algo que se diz ou acha. O importante, no fim das contas, como diz Gilbert Harman, é enxergar que a tentativa de derivar normas morais absolutas de universais genericamente humanos e a adoção de um método absoluto — isto é: um método que seja válido para todos os seres humanos em todas as sociedades — para a justificação racional de normas morais absolutas são duas coisas inteiramente diferentes, e que o segundo empreendimento não depende logicamente do conhecimento de universais genericamente humanos. Harman condensa em um ponto as diferenças entre o relativista e o absolutista: eles se diferenciam no que se refere à compreensão que eles têm de certas espécies de desacordos morais persistentes. “O absolutista supõe que os desacordos morais ocorrem, ou bem enquanto um resultado do fato de alguns participantes cometerem erros acerca da situação ou de raciocinarem mal, ou simplesmente porque alguns participantes estão melhor localizados do que os outros para alcançarem a verdade. O relativista supõe que muitas dessas discordâncias não se fundam em erros factuais ou de raciocínio, ou no fato que alguns participantes simplesmente não estão bem localizados para alcançar a verdade.” (HARMAN, 2003: 40) O relativista não supõe que haja condições de verdade absolutamente objetivas. A questão do relativismo em moral deve ser concebida como uma questão acerca da objetividade, não acerca da verdade.

Hankinson observa que no domínio da discussão ética podem ser distinguidos, grosso modo, dois campos: primeiramente, há aqueles que acreditam que não existe algo como um fato moral objetivo (posição que ele chama de “ceticismo ontológico em matéria moral”); em segundo lugar, há aqueles que defendem que possa haver tais fatos, só que nós não possuímos nenhum método para descobri-los e tampouco temos razões para afirmar que haja ou não tais fatos. Segundo os céticos “ontológicos” em moral, o fato de haver conflitos de valores é uma boa razão para sustentar que não há isso que é comumente chamado de valores morais objetivos; tais entidades não passam de invencionices, frutos da imaginação. Nos tempos recentes, John L. Mackie é logo o nome a ser lembrado como típico dessa posição. O domínio dos valores é especialmente enfatizado por autores como Hankinson porque essa é uma área particularmente e mais facilmente vulnerável a ataques ou desafios céticos.

Em seu artigo de 1802 sobre a relação do ceticismo com a filosofia Hegel entendia que o pirronismo era uma posição com um traço fundamental que seria o de atacar toda e qualquer crença, de qualquer espécie ou natureza, científica ou de senso comum. Pode-se dizer que os dez “tropos” de Enesidemo visam também às crenças do homem comum. Pode-se dizer também que os cinco “modos” de Agripa são indiferentes no que se refere à natureza das crenças contra as quais eles venham a ser dirigidos. Sexto Empírico diz claramente, em Hipotiposes Pirrônicas, I, 165, que o alvo dos Modos não é somente o filósofo ou o homem de ciência, mas também o âmbito das crenças da vida comum. No que concerne a valores, Sexto considera uma vantagem do pirronismo sobre outras posições filosóficas e também sobre o senso comum o fato de os pirrônicos abrirem mão de crer que as coisas sejam boas ou más por natureza ou em sua essência; essa característica contribui para minimizar o desconforto mental, os incômodos, as perturbações psíquicas tais como as inseguranças, as ansiedades, culpas, e outras.

De acordo com Sexto, todas as suas falas, suas manifestações verbais devem ser compreendidas apenas como meras expressões de como as coisas aparecem a ele em determinado momento. Nesse sentido, basta conferir em Contra os Moralistas, o trecho 18-20; nas Hipotiposes Pirrônicas, as passagens são muitas, por exemplo, I, 4; I, 135; I, 198, além de outras. Sexto também explica que a aceitação por parte do pirrônico das presentes aparências não passa de uma aceitação que suas afecçõesmentais são deste ou daquele modo nele, e não uma aceitação de que essas aparências representam corretamente, objetivamente, fatos a respeito do mundo exterior. A aceitação das aparências enquanto aparências faz com que a posição do pirrônico seja a de alguém que não é prisioneiro, que não possui compromissos sólidos, firmes, com crenças. Meros relatos de aparências não significam, nem aspiram, de modo algum, ao status de verdades – o que é um detalhe sumamente importante, posto que crença tem a ver essencialmente com o aspecto de ser verdadeiro. Já é possível notar que a noção de aparência (ou fenômeno) é central no modo de vida do cético: o pirrônico segue o que lhe aparece como lhe aparece. O que aparece é o seu critério – critério prático, critério de ação. A aparência fica, então, fora dos exames ou das investigações dos céticos, o fenômeno não é posto sob suspeição. O cético não ignora uma regra ou lei a ele aparentemente injusta, nem um conteúdo que lhe apareça como repugnante; mas não fingirá ignorar o caráter dessas coisas enquanto fenômeno, algo que não tem como não perceber.  Não menos importante é a distinção que Sexto faz e enfatiza entre o mero aparecer e aquilo que se diz desse aparecer ou sobre ele – sendo este último aspecto aquilo a que o pirrônico se agarra e busca pôr em questão. Sobre o aparecer, as coisas se passam como na observação de Roberto Bolzani de que o fenômeno passa a ser simplesmente um evento, um acontecimento pessoal, desnudado de qualquer pretensão objetiva, quando o cético o toma como critério de conduta, caracterizado como uma passividade experimentada, pela pessoa em que tal evento ocorre. O cético, assim, constata e descreve o que constata, e a esse movimento pode chamar-se assentimento.

Pode-se dizer, então, que as objeções céticas no ceticismo antigo (pirrônico) eram acionadas a partir e para um procedimento que tem todo um embasamento para o que é ético, ou seja, uma atitude, uma postura intelectual tomada na vida cotidiana, sem perder de vista ou desligar-se desta última, diferentemente do que se passa no ceticismo moderno. Não se poderia, por isso, reivindicar para o pirronismo um significado ou, pelo menos, um statusde naturalidade, por essa sua continuidade entre o ordinário e o filosófico? O desdobramento discursivo do ocorrido no plano primário, qual seja, a vida cotidiana mesma, seria assim uma verbalização ou expressão linguística de algo que tem início em um nível pré-teórico, na atitude do pirrônico, bem como em suas intervenções em experiências dialógicas / dialéticas com eventuais interlocutores. É de se pensar que uma crítica como esta a seguir não se aplicaria então ao pirrônico: que a dúvida cética não deve ser vista como em continuidade com a dúvida normal, ou seja, a dúvida situada em um contexto concreto. Poderia uma consideração como a que tece Michael Williams, de que a dúvida cética desenvolveria toda sua potência quando extrapolasse a dúvida localizada, circunscrita? Serviria isso para caracterizar o ceticismo antigo? Já uma observação como a seguinte (perdoando-se o anacronismo!) poderia muito bem ser aceita por um pirrônico: que somente no interior de algum jogo de linguagem é que nós efetuamos juízos – o que aponta para uma tentativa de apelar para uma responsabilidade linguística que cada um de nós, com sua faculdade de julgar, teria e precisaria assumir. O ceticismo pirrônico é práxis e não doutrina, teoria; é descritivo e não explicativo, e muito menos prescritivo. O ceticismo pirrônico é, portanto, muito mais uma posição em que um indivíduo caia ou entre. Suspensão sobrevém, não é escolha, decisão. O pirronismo parece, antes, uma questão de “know-how”. O pirrônico efetua experimentos intelectuais, ele ensaia. Para Sexto, o ceticismo é uma forma de vida, um modo de conduzir-se na vida, e não de retirar-se dela, seja por que meios for ou com quais intuitos. A sképsis é um caminho pela vida, pelo mundo, logo seria estranho que ela comportasse uma dúvida sobre a existência do mundo, o que já não é estranho para ceticismos modernos.

Ora, a estratégia de Sexto Empírico, no campo da ética (em Contra os Moralistas, por exemplo), consistia em tentar mostrar que não há concordância sobre o conteúdo da noção de Bem / Mal; e que na ausência de qualquer concordância, não pode haver nenhum critério para se julgar qual das descrições ou apresentações do Bem é para ser preferida; e se não há critério para julgar, então nenhum juízo deve ser feito. Notar: ‘bom’ é definido comumente em termos do que merece ser escolhido, ou do que vale, tem valor para se escolher, e não em termos do que porventura seja ou venha factualmente a ser escolhido por este ou aquele indivíduo, ou indicado e defendido por algum sistema filosófico, conforme o que está dito em Contra os Moralistas (ou AM, XI),35-39; e também nas Hipotiposes Pirrônicas, III, 173-74. Em seguida à análise da noção de ‘bom e mau’, Sexto parte para descrever a inevitável discordância (diaphonía) em que se envolvem e engalfinham as filosofias dogmáticas. Há que se observar também, desde já, que a sentença “Não há nada de bom ou mau por natureza” ou ‘Não há nada naturalmente bom ou mau” é uma asserção dogmática, que está presente em Sexto, por exemplo, em HP, III, 180; 182; 191; 193, além de em AM, XI, 35-39. A pergunta que se pode fazer, é claro, é por que ele o faz: no meu entender, em concordância com a interpretação de Richard Bett, ele o faz tão somente por motivos dialéticos, polêmicos, ou seja, para inserir essa sentença em uma antinomia insolúvel, e não porque, ele, Sexto, acreditasse e por isso defendesse essa asserção dogmática. Tampouco defenderia ele, no fundo, a contrária a ela, qual seja, de que ‘Há algo bom (ou mau) por natureza ou naturalmente bom / mau’. O cético considera que a crença na objetividade ou positividade dos valores das coisas, do ser em si ou objetivamente bom / ruim de uma coisa, é algo danoso. Mas o carecer de uma crença positiva não é necessariamente ter, no lugar desta última, uma crença negativa. Como resume Hankinson, não podemos livrar-nos de nossas afecções. Mas podemos sim evitar comprometer-se com a verdade, ou melhor, a realidade dos objetos dessas afecções; e esse evitar traz consigo dividendos terapêuticos. É importante reter a observação que argumentos contra o ser naturalmente bom / mau são argumentos contra a objetividade dos valores: eles servem para mostrar que valores objetivos, a existência ou realidade dos valores independentemente dos indivíduos é algo que não existe. E o aspecto terapêutico, acima referido, é: livre da crença na objetividade do valor, eu serei tão feliz quanto seja possível a um ser humano.

Céticos antigos e modernos estariam de acordo que seria injustificado achar que haja ações ou coisas que sejam absolutamente (ou naturalmente) boas ou más; porém, uma diferença entre eles seria que “em primeiro lugar, enquanto os pirrônicos argumentam no sentido de uma suspensão do juízo em todas as questões de crença em valores, a maioria dos céticos modernos, longe de suspenderem a crença, são dogmáticos negativos que argumentam em favor da tese não cética de que é um autêntico erro endossar valores objetivos. Em segundo lugar, os modernos também supõem, tipicamente, contra os antigos que nossos juízos normativos de primeiro grau não são afetados por (são “insulados”) nossas dúvidas metaéticas de segundo grau; daí que o ceticismo moral ofereça pouca esperança de reduzir nossos acessos de ansiedade “de primeiro grau”.” (Mc Pherran, 1990: 127) É tipicamente moderno pensar, como sugere John Mackie, que desacordos ou discordâncias em matéria de moral refletem a adesão e a participação das pessoas em distintas formas de vida. (Dogmatismo esse que seria um relativismo ético ou moral.)

Essa maneira de interpretar (isto é: como um relativismo) leva, por outro lado a aproximar o pirrônico Sexto Empírico dos modernos céticos, dado que se enxerga que os argumentos de Sexto em Contra os Moralistas (AM, XI) estão próximos da modernidade por chamarem atenção para o aspecto que os desacordos no que se refere a valores devem-se, não a genuínas diferenças nas ações e nas coisas julgadas, e sim a diferenças nos observadores, nas pessoas que julgam. Já que fiz a afirmação acima sobre o cético moderno como sendo mais um relativista moral, seria de bom alvitre indicar alguém que sustente tal identificação com os antigos pirrônicos: por exemplo, Julia Annas e Jonathan Barnes, que sustentam que Sexto em Contra os Moralistasseria antes um relativista moral do que um cético, não vendo que sua argumentação pudesse estar dirigida, agora apenas de outro modo, para produzir neutralização de crença, no caso, da crença oposta ou contrária, ou seja, para induzir também, ao fim e ao cabo, a suspensão do juízo.

Não é demasiado repetir aqui: os pirrônicos decididamente desejavam evitarque substituíssemos a crença em valores objetivos, seja ela uma crença absolutista ou relativista, pela crença contrária, que realmente não existem tais coisas. Sexto descreve nas Hipotiposes Pirrônicas que o que fica ou resta após a suspensão é aparência de valor, aparência que é necessária para nós (ou que é, portanto, “para nós”) – e como Sexto procura deixar claro em HP, I, 216-219, a aceitação da relatividade, no caso, de valores, não significa necessariamente um relativismo, mas apenas um reconhecimento de que aparências de valor parecem variar de indivíduo para indivíduo, e de acordo com circunstâncias diversas.

É preciso, entretanto, registrar que há uma espécie forte de relativismo que poderia bem ser concebida como implicada ou derivada da noção de algum “bem” ou algo “bom em relação a” (uma pessoa, um grupo, etc.), com a qual Sexto opera, principalmente em Contra os Moralistas (AM, XI), isto é, a concepção que ao mesmo tempo em que não há valores independentes de alguém que avalie, há valores relativos a algum contexto de pensamento. Neste registro, juízos de valor têm sentido somente por referência aos desejos de cada “juiz”, por assim dizer. Donde a conclusão: “Podemos pensar que Sexto ofereceria o argumento de que assim como a noção de uma “verdade privada” é incoerente, dado que a verdade pressupõe um critério independente de indivíduos (ver, por exemplo, HP, II, 48-79), do mesmo modo a noção de um “bem privado” subjetivista que é ao mesmo tempo um bem real, autêntico, seria igualmente incoerente. Em resumo, Sexto não parece passível de ser exposto à acusação de condescender com um relativismo não-cético.” (HANKINSON, 1998: 137)

Enfim, ética, para Sexto, é em termos gerais o estudo do que as pessoas valorizam. Precisamos então determinar a que as pessoas efetivamente dão valor, observando atentamente o que elas de fato procuram ou evitam. Ética, desse modo, é antes  descritiva que normativa. E na medida em que a ética é normativa ou prescritiva no mundo antigo, ela tende a ser assim na medida em que ela recomenda cursos particulares de comportamento como podendo conduzir o indivíduo à vida feliz. Sexto repetidamente assevera que se algo possui por natureza (ou seja: essencialmente, em si mesmo) uma capacidade de afetar ou influir, então esse algo tem que exercer essa capacidade sem exceção. As coisas possuem sua natureza e nessa medida estão dispostas para agir ou serem agidas de maneiras específicas. E é uma verdadeira sobrecarga no conceito de natureza o aspecto que se alguma propriedade ou qualidade pertence a uma coisa por natureza, ela pertence a ela não relativamente, mas invariavelmente, absolutamente.

A relatividade pede passagem para apresentar algumas de suas razões: uma vez que encaremos a vida ética que hoje temos como uma estrutura a rigor histórica e local, uma vida que é peculiarmente autoconsciente acerca de suas próprias origens e possibilidades, nós seremos menos tentados a supor que ela é um todo funcionando satisfatoriamente. A tarefa se apresenta de reinterpretar com categorias históricas o que é eticamente significante, de modo a se ter uma crítica das instituições, concepções, preconceitos e poderes existentes. Uma dessas “categorias” é, por exemplo, a de transparência, assim como a exigência que a ela se acopla. Outra poderia ser (por que não?) a de um ceticismo moral mitigado (ou um relativismo ético moderado), um ceticismo básico acerca da capacidade ou eficácia dos poderes do Estado moderno no sentido de transformarem eticamente a sociedade humana. Aqui, ao mesmo tempo em que se reconhecem os méritos da moderna tecnologia da comunicação, há que se ressaltar a verdadeira obsessão, que junto a ela se generaliza, quanto ao segredo. Donde a necessidade de posicionar-se contra quaisquer iniciativas que favoreçam o controle da informação e contra quaisquer decisões políticas tomadas em desprezo pelos cidadãos.

***
Luiz Bicca

Hankinson, R. J. The Sceptics. Routledge, 1998.

Harman, G. Moral Relativism and Moral Objectivity. London: Blackwell, 2003.

Mc Pherran, M. “Pyrrhonism’s arguments against value” in Philosophical Studies, 60 (1990).

Rorty, R. Filosofia como Política Cultural. S. Paulo: Martins Editora, 2009.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.