Hölderlin e os Modernos – Número 128 – 12/2014 – [93-104]

H

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Pois em parte alguma ele fica.
Signo algum
o encerra.
Nem sempre
um vaso para contê-lo.

Frederich Hölderlin

A relevância do filósofo e poeta Frederich Hölderlin no final do século XVIII não foi das menores. Em 1794 ele se embrenhava nas discussões filosófico-ontológicas que pululavam durante o famoso seminário de Tübingen, cuja participação contava com Schelling e Hegel, causadas principalmente pelo impacto das três Críticas de Immanuel Kant e filosofia audaciosa de Fichte sobre a liberdade infinita do Eu, ambas vinculadas ao que iria convencionalmente chamar de Idealismo Alemão.

Antes de dissertarmos sobre o assunto, seria prudente de nossa parte recapitular um pouco do que o século XVIII representou ao pensamento das sociedades contemporâneas. O século do Iluminismo e da Revolução Francesa possibilitou ao homem um olhar para si próprio como indivíduo dotado da capacidade de julgar e punir segundo leis genuinamente humanas. Os revolucionários ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade foram muito além de uma simples Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na medida em que agiram consonantes aos valores morais, estéticos e psicológicos daqueles indivíduos que viviam no presente, numa época. Em questão de poucas décadas a própria racionalização requintada e bem ordenada fundada pelos enciclopedistas seria interpretada como um erro de um conhecimento parcial e o tempo seqüencial rechaçado em relação ao tempo simultâneo; num retorno radical aos pensadores pré-socráticos. Isso justificaria além da profunda alteração na percepção temporal, a crescente aceleração do tempo que estas sociedades sofreram em meio à agressiva industrialização e à noção de progresso, como nos alertou Pierre Nora nas primeiras páginas de sua obra referencial[2].

Seja em Tübingen ou em outras universidades alemães, a problemática do ser e de sua manifestação dividia o espaço entre kantianos e pós-kantianos com o movimento do romantismo alemão, enquanto os antiquários defendiam seus ameaçados princípios. De um lado temos os que desejam preservar a tradição sacra do passado na íntegra, do outro lado aqueles que a aceitam apenas enquanto subsumida a determinadas especificidades do presente, um tipo de querela dentre muitas manifestada ao longo dos séculos; com a diferença de que desta vez houve uma ruptura mais drástica com os sistemas classificatórios. Através do intelecto ou da intuição criadora, privilegiou-se sobremaneira a ars critica à ars tópica[3] especialmente quando Friedrich Schlegel argüiu o modelo de arte filológica nutrida através da elaboração de uma ciência crítica. O moderno,portanto, ergue-se imperioso contra o antigo dogmatizado em prol da criação entusiasmada, “livrando-se do fardo pesado do passado para poder se estabelecer como modernidade” (RODRIGUES, 2000: 263-278), na medida em que o novo é interpretado como “um momento de solução para a tensão entre a tradição e o moderno” (ibid). Renovar suplanta o recriar rumo ao inovar.

Através do novo é possível transformar o moderno em modernidade, quer dizer, o moderno em tradição e futuro. Mas de que maneira o novo se articula com o futuro? Quando Schelling no início do Oitocentos defende a autonomia da arte no pensamento através daquilo que chamou de intuição estética, contrapondo filosofia positiva à filosofia lógico-racional ou negativa, estava atacando a pura ideia do Deus kantiano que excluía toda a dimensão da experiência da existência pressuposta ao pensamento, sem a qual o tempo autêntico não é possível. O conceito de Schelling valida a simultaneidade dos três modos de tempo (passado, presente e futuro), sem abolir contudo as diferenças qualitativas dos mesmos por meio do nascimento de um presente vertiginoso, autêntico e imediato que afirma e altera constantemente o passado quando explica,legitimado pelo futuro que nunca está por vir,pois está sempre aqui sob o formato dos fatos presentes. A não-continuidade ou universalidade deste tempo reflete o esgarçamento causado pela inovação que propõe a cada “coisa sua singularidade e significado”.[4] Entre outras palavras, a arte torna-se algo além da busca por um saber absoluto cristalizado num passado remoto, mas uma constante síntese espiritual para além-ato no mundo real, um verdadeiro disparate aos antigos. À mercê da consciência histórica e da historicidade, ela é a sua própria origem e unidade do separado.[5]

Algo se faz futuro sobre o presente. Podemos inferir a presença de historicidades orgânicas (Geschichtlichkeit e Historizität) nesta relação temporal. Expliquemos: a primeira destas historicidades diz respeito à história vivida, res gestae, ao qual possibilita falar num ser histórico, isto é, num ser ontologicamente qualificado como possuindo historicidade. Se, por exemplo, devo lidar com a mitologia lidarei com o seu processo mitológico, quer dizer, a mitologia essencialmente mitológica enquanto história dos deuses, ao qual não se pode produzir senão mediante algo vivido, experimentado. É o homem cujo progresso inesgotável da história afirma o juízo do mundo. Para afirmar algum juízo é necessário que exista alguma consciência desta afirmação como juízo, reflexos da atividade de um futuro introjetado. Daí a Historizität representar a história consciente, aquela do homem-testemunho que, tendo a Geschichlitchkeit em si, particulariza pelo caráter,pelo ethos do fato o destino pessoal, enlaçando a necessidade à liberdade[6] – de preferência nem sempre condizentes com a razão, segundo Schiller:

A que decepção não se expõe alguém que só se aproxima da história à espera da luz e do conhecimento que ela deve trazer? Todas as tentativas bem-intencionadas da filosofia de harmonizar o que o mundo moral exige com o que o mundo efetivo produz, na realidade são refutadas pelos ensinamentos da experiência. Mas fala-se desta diferença desde que se renuncie a explicá-los e que se paute seu juízo por essa incompreensibilidade que lhes é própria![7]

O novo como sentido para o novo, algo por fazer, nunca dado pelo passado em si, mas em constante e inacabada travessia daquilo que Heidegger caracterizará como “no passado do futuro”, espécie de presente autoconsciente. Destarte a busca pelo supra-histórico ou história superior, história antes da história, dos arqui-eventos que explicariam a verdade do mundo, onde os tempos, como que permanentemente enevoados, se alinham e desalinham em acelerado ritmo.

Agora que falamos um pouco dos modernos, será preciso abrir um pequeno parêntese no que tange à distinção das temporalidades a fim de evitar algum equívoco: em primeiro lugar o tempo da filosofia não é o tempo histórico que não é o tempo da natureza e vice-versa. Este último é uniforme, contínuo e circular por excelência. São as montanhas e as florestas. Tempo previsível. No tempo filosófico ou da consciência são os das mudanças humanas, logo o extremo oposto do tempo natural. É um tempo vivido e sofrido onde há sempre a novidade – este o de que Schiller, Schelling e Hölderlin nos fala. O tempo histórico, por sua vez, intenciona lidar com ambos os tempos, tanto com o sucessivo da filosofia quanto ao simultâneo da natureza, de modo crítico-reflexivo[8], o que procuramos fazer introdutoriamente neste artigo.

Retomando o percurso, será no Iluminismo que as primeiras teorias estéticas se definirão em relação à antiguidade como modelo de referência diretamente ligado à reflexão epistemológica[9], escapando portanto das fórmulas atemporais e miméticas aristotélicas prescritas pelo ensinamento das técnicas da práxis do poético; procedimento usual até o período iluminista. Haverá, portanto, a transformação do tempo cíclico em algo mais dinâmico ligado à experiência do presente. A contestação da tradicional mimese invalida a leitura de que as obras de arte são cópias perfeitas da natureza; ademais, o mundo sensível e a história, validam o reconhecimento das manifestações temporais para um além-reconhecimento do universo empírico natural, como foi no século XVII. Quando o Idealismo Alemão avança sobre o Iluminismo, a estética liberta-se do caráter normativo, possibilitando a Schiller, Hölderlin, Hegel e Hölderlin,Schlegel o questionamento dos padrões clássicos de beleza e a conseguinte formulação da ciência do belo artístico como filosofia da arte segundo uma dimensão especulativa, algo fundamentalmente moderno.

Em “The Perspective from which He Have to Look at Antiquity”[10], o poeta suábio busca uma solução para esquivar do impasse classicista defendido pelo historiador de arte Winckelmann. Para este, o valor histórico apregoado pelos antiquários baseados na descrição estritamente biográfica nada significa se isento do valor sensível e subjetivo das obras enquanto aparecimento, desenvolvimento e decadência. Apenas o pensamento regrado em etapas conseguiria vincular o modelo ideal ao histórico – incluindo o seu próprio discurso – das obras de arte a fim de desvelar a “essência da arte e de seu criador”, dando “conta do sentido verdadeiro e profundo” idealizado pelas mesmas.[11]

Há formas que podem ser mais perfeitas em outros corpos ou que podem ser imaginadas como mais perfeitas. Em conformidade com o ensinamento da experiência, estes inteligentes artistas – os antigos – agiram como habilidosos jardineiros agem quando lançam num solo fértil sementes de uma mesma excelente safra ou como abelhas quando polinizam muitas flores. (…) A seleção das partes mais belas e a união harmônica delas em uma única figura produzirá o ideal de beleza[12].

Através da metáfora da semente, Winckelmann conectará a tradição estética à liberdade individual sistematizada, pois “pela semente, a Grécia escolherá o melhor solo para plantio”. Somente a cultura helênica proporcionará a garantia de uma beleza harmônica ao qual a “forma suprema” da “nobre simplicidade e serena grandeza” do espírito grego irá constituir-se frente “a arte decadente de seu tempo”. Sejamos claros: a imitação dos antigos aqui não é um fim em si mesmo,uma cópia ipsis litteris, e sim um procedimento potencializado do processo de criação. Tal procedimento pospõe a imitação da natureza aristotélica a um segundo plano, pois antes de imitá-la, a arte moderna deve visualizar os ditames da arte clássica para só então poder criar imitativamente, isto é, como original sendo imitação. Tal correlação permite um percurso lógico: se os gregos ou Shakespeare são inimitáveis, pois perfeitos, os alemães os imitando serão também inimitáveis e perfeitos, segundo o modelo do Classicismo francês.

Hölderlin contrapõe-se a Winckelmann à maneira do crítico de arte Lessing que refuta o classicismo em prol dos modernos e do movimento literário e artístico beneficiador da subjetividade individual no embate entre emotividade e o racionalismo que ficou conhecido como Sturm und Drang. Todavia, o poeta suábio vai além disto ao propor que os modernos consigam sua própria orientação a partir de uma distinção clara entre arte grega e arte moderna, cujo fundamento não poderia mais ser guiado “pelos ensinamentos da Natureza e arte na formação dos corpos, para conservá-la, desenvolvê-la e embelezá-la” como o historiador da arte pensava. Para tanto ele separaria a arte grega como corpórea e a arte hespérica ou ocidental moderna como uma arte sem dúvida decadente e fraca, isenta de “virtude atlética”, contudo de elevada capacidade espiritual obtida apenas pela função purificadora da tragédia [13]. “Os antigos possuíam uma consciência estética limitada às formas e dependiam delas para apreender o belo no mundo, ignorando, dessa forma, as emoções da alma” assevera Antonio Rodrigues sobre o pensamento dos modernos[14]. Todavia Hölderlin abnega a idealização do classicismo sem se desviar dos clássicos, isto é, recusando a leitura que torna a antiguidade classicista e termina por rechaçar o olhar da modernidade privilegiador do novo, do diferente e original:

 O originalmente unido…deve necessariamente sair de si mesmo e […] a imobilidade não pode ter lugar nele, visto que precisamente o modo de reunião não deve, nele, permanecer sempre o mesmo […] [15]

Assim, sua reflexão acerca da modernidade permite uma reavaliação do conceito de harmonia, beleza e pureza de Winckelmann, pois não sendo mais serena e homogênea, a produção adviria de forças antagônicas entre arte e natureza,ausência e excesso, quase em estado de transe – a fim de lidar com a ausência de força absoluta e de um destino coletivo[16] – eis a pólvora essencial presente na originalidade do trágico moderno. A manipulação do antagonismo segundo uma espécie de lógica na contradição,desmesurado, sem conciliação ou resolução, elevará o espírito reflexionante ao vigor e esplendor heróico, por consecutivamente ao limite de sua experiência humana.

Como podemos observar no fragmento do autor de “Morte de Empédocles”, há uma preocupação explícita com a opressão que o inerte, desvitalizado, exerce na época moderna, ressalvando daí a importância da ambição formativa, criativa e vital do indivíduo. A percepção de uma distinção de princípio entre modernidade e antigüidade não nega a existência de uma desilusão. A perda da unidade original e coletiva, sintoma primeiro constitutivo da modernidade, reparte tanto o ser humano como a sua história em duas esferas mutuamente excludentes: por um lado a subjetividade e por outro a objetividade;o material e o espiritual.

O significado da tragédia pode ser mais facilmente compreendido a partir do paradoxo do não-pertencimento. Nos dizeres de Hölderlin:

A significação das tragédias é mais facilmente concebida a partir do paradoxo. Pois tudo o que é original, pelo fato de todo poder ser justa e igualmente repartido, por certo não aparece em sua força original, mas propriamente em sua fraqueza, tanto que, de maneira de todo própria, a luz da vida e o aparecimento concernem à fraqueza de cada todo.[17]

 A manifestação da vida pertence à fraqueza de cada todo. O destino trágico irredutível delineia-se na figura singular do herói dividido entre o amor e o sofrimento, ingredientes essenciais para o engrandecimento espiritual. É mister ressaltarmos as leituras e traduções de Édipo e Antígona realizadas pelo autor de “Hipérion” à procura do “verdadeiro espírito” na tragédia grega, um espírito evidentemente imerso nas grossas lentes das preocupações do presente. A Grécia deixa de existir em si, como vimos em Wickelmann, em prol da imagem produzida como Grécia sobre as molas da modernidade, onde à maneira de Herder, a tensão inevitável entre natureza e cultura possibilitará debates sobre o lócus fundamental na essência de cada cultura.

A tragédia antiga diferencia-se da tragédia moderna: o herói da tragédia grega é condenado pelos deuses e toda a peregrinação trágica do herói desenvolve-se pela representação e identificação mimética pressuposta tanto no personagem quanto no público sob efeito da katharsis; o herói moderno,por sua vez, deve sofrer a auto-condenação, uma morte trágica que sobrevém ao tempo pessoal, a seu íntimo tempo, e não mais ao coletivo. Ele deve, portanto, reagir elegiacamente à temporalidade de sua época, à limitação e ao sentido racionalizado através do suicídio. A morte aqui não é o fim, mas a reunificação do que estava separado, momento em que ocorre a doação mais forte “de seu ser mais profundo”, e a dor não é aquela que conscientiza, quer dizer, não serve como guia para o que deve ou não se deve fazer, e sim um aprendizado obtido pela intensidade do sofrimento. De acordo com Courtine:

A tragédia já não é o exclusivo conflito entre a necessidade e a liberdade, (…) mas um fenômeno muito mais inquietante e decisivo, através do qual se revela a historicidade como tal, a viragem do tempo. [18]

O pathos da tragédia moderna hölderliana permeada pelo sacrifício enquanto isolamento individual desmedido e dissidente de si e pela transição gerada pelo sacrifício, viabiliza o reconhecimento da finitude humana mediante a necessária separação entre Deus e homem, sem abolir o fato de que a essência da tragédia está na consideração do todo – incluindo o mundo invisível, incognoscível -, cujo âmago transparece em Historizität e Geschichtlichkeit. A mediação articulatória deste herói dividido entre o extremo da experiência sofredora e a força recusatória de toda e qualquer passividade faz dele uma fonte de inspiração e encanto para os modernos, pois a maré do desejo especulativo e da aspiração apontará sempre em direção a sua antítese,isto é, ao não-familiar, à diferença e estranhamento, à custa da perda ou decadência do protagonista,único modo de restaurar o equilíbrio. Daí a censura de Hölderlin a Wickelmann pelo fato deste desconhecer o conceito de alteridade,conceito chave para os gregos, ainda que a alteridade de Hölderlin faça mais jus ao sombrio e mortificante que ao outro. Não há hierarquias solidificadas ou esperança de reconciliação, porque tudo está por fazer.

A tragédia autoriza a manifestação do sublime histórico, segundo a intuição estética do mundo, cabendo a ela inferir no mundo – pensado como objeto histórico – onde as forças da natureza e liberdade humana se engalfinham num processo dinâmico e profundo. O papel da Weltgeschichte (história universal) é de instruir sobre o resultado desse embate, proporcionando a consolidação da Geschichtlichkeit, através dos lendários feitos heróicos e mitológicos, do sublime em meio ao caótico, a fim de conscientizar para a liberdade. Estão aí as raízes do que será a Bildung alemã no século XIX refletidas nas viagens de Goethe à Itália e Grécia, no encontro com o Estrangeiro, entre a pele de Dionísio e de Apolo, formação cultural radicalmente contestada por Nietzsche e outros filósofos pelo senso progressista, cinqüenta anos depois.

“Os defensores da superioridade dos modernos aludiam à escassa liberdade que desfrutavam os antigos”, salienta Antonio Rodrigues. “A essência do Eu é liberdade” defendia Schelling[19]. Para Hölderlin, a liberdade não deve se subordinar a nenhum molde identitário e sim constituir um fator permanente de desequilíbrio informe, “um espetáculo infinitamente mais interessante do que aquele da tranquilidade e da ordenação privadas de liberdade”.

Para os hipéricos o que há de mais significativo nos gregos é o senso de destinação ofertada pelo universo das tragédias. Édipo é interpretado como aquele que mais corresponde à valoração trágico-dramática, pois através de sua culpa, aceitou voluntariamente o castigo de sua errância, manifestado pela vontade a destreza da liberdade diante da própria perda dela mesma, na auto-afirmação do eu contra o destino inevitável do mundo objetivo. Isso significa que os personagens não possuem adversários físicos senão eles próprios no embate contra deus que “é apenas tempo”. A liberdade negando legitima a autonomia e originalidade de categorias abstratas como arte e cultura; o que – repetimos – não significava anular o passado e a filosofia antiga. “A originalidade (da liberdade dos modernos) era o modo novo de perceber o lugar dos valores antigos, garantindo a eficácia do novo incondicionado” [20]. Um novo que esquece-se no momento, imerso em seu presente. Deus e homem se acasalam agonicamente. Somente na Modernidade podemos ter uma tragédia da tragédia.

Em linhas gerais, os antigos devem ser primeiro desterritorializados para serem a seguir reterritorializados, como já dizia Schiller contrariamente a Aristóteles: “o entendimento tudo dissocia”. O moderno no reconhecimento de si, reconhece o vazio do sentido e estica o braço desesperadamente para alcançar o destino que jaz distante, pois perdido. Por sua vez, o braço esticado é a própria atividade destinatária, a criação na falta de um criador. Isso altera em demasia as representações sociais, já que os gregos nunca se questionaram sobre tais autenticidades sob ameaça da hybris[21].

A nossa arte poética deve guardar, portanto, o caráter pátrio de forma que a sua matéria seja escolhida de acordo com a nossa visão de mundo e suas representações devem ser no modo do pátrio. As representações gregas se distinguem por sua tendência principal de poder apreender a si mesmas porque isso constitui a sua fraqueza, enquanto que a tendência principal de nosso tempo é poder atingir uma outra coisa, é ter destinação, já que ser sem destino é a nossa fraqueza.[22]

Preservar a “nossa arte poética”, “o caráter pátrio”, admite um questionamento mais específico: Quem são os gregos? Quem somos nós? Como falar destes que existiram antes da consciência dos modernos existirem? Não há outra solução senão hipotecar a razão em função da elaboração imaginativa. Assim sendo, acreditar na possibilidade de que o criador possa criar seus precursores ao invés de ser criado por eles, não parece aqui um impropério maior; ademais, o exercício da releitura implicará tanto na alteração de concepção do passado, como na do futuro. A crítica à normatização sóbria dos gregos ocorre a partir da proposição de que a voz de quem pergunta se faz sempre presente em retorno àquele que pergunta. Reconhecer o eco de sua própria voz é reconhecer seu mundo, sua terra ou nação, a essência do que é nativo, obtido por intermédio do afastamento do mundo dos mortos. Reconhecimento que, “segundo Hölderlin, os gregos não fizeram e teria sido a razão do desaparecimento da Grécia”. (MACHADO, 2006. pág: 164)

A relação entre gregos e os modernos, entre o presente e o passado, deve ser uma relação de intimidade mediada pela estranheza diante de algo inacabado por excelência. Somente a tradução ou transposição das ressonâncias da tragédia antiga possibilitaria a edificação da tragédia moderna. É possível, portanto, fazer os gregos falar? Esta questão incide no desafio da tradução, pois a capacidade de fazer o mundo retornar a si é uma experiência predisposta à existência que necessariamente precisa acatar a possibilidade do erro, do esquecimento, na proposta criativa renovatória posto que na posição de quem indaga, interpreta e cria,haverá algo nem sempre entendível e aceitável pelos demais.

Hölderlin diante da cisão traumática entre homem e mundo aberta pela aceleração do tempo na modernidade emite uma proposta para reescrita da tragédia grega em “Morte de Empédocles”. A preocupação com a origem da obra de arte auto-referendada e a singularidade do processo criativo essencializador admitirá a composição de pensamentos dissonantes que, autônomos, se auto-explicam e auto-certificam, mesmo estando à deriva de um mistério insondável. A contraposição harmônica ao passado hierarquizado valoriza o exercício ressonante como forma de expandir o potencial interpretativo e transpor seus próprios limites de estabelecimento de significado. Os portões permanecerão abertos e os labirintos subseqüentes à mercê do fantástico. A perspectivização da representação pelos modernos causará uma espécie de ambição prometaica onde o vazio se revela como espaço para a criação. A perda do destino,mas o ganho da destinação[23].

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Filippi Fernandes

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[1] Denn nirgends, bleibt er / Es fesselt / Kein Zeichen / Nicht immer / Ein Gefäss ihn zu fassen. Fragmento 38 de Hölderlin apud COURTINE, Jean-François. A tragédia e o tempo da história. Rio de Janeiro, Editora 34, 2006. Pág: 166

[2] NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História 10: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/Departamento de História, 1993, p.7-28.

[3] De modo similar ao que se assucedeu no século XVII quando alguns filósofos contrapuseram a dialética do cogito (Descartes) ou da percepção (Hume) à retórica do Renascimento.

[4] PUENTE, Fernando Rey; VIEIRA, Leonardo Alves. As Filosofias de Schelling. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. Pág: 218.

[5] Ibid. pág:35

[6] WEHLING, Arno. A invenção da História: Estudos sobre o historicismo. Pág: 55-57.

[7] COURTINE, Jean-François. A tragédia e o tempo da história. Rio de Janeiro, Editora 34, 2006. págs. 203-204

[8] REIS, José Carlos. História & Teoria: Historicismo,Modernidade, Temporalidade e Verdade. FGV, 2002 págs:201-205

[9] SÜSSEKIND, Pedro Prefácio apud SZONDI, Peter Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro: Editora Zahar p.16-17

[10] FERRIS, David S. The Recall of Thought: Hölderlin apud Silent urns:romantism, Hellenism,modernity. Stanford, California: Stanford University Press, 2000. Pág:158

[11] MACHADO, Roberto. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro. Pág: 10

[12] Tradução minha de FERRIS, David S. Silent urns: romanticism, Hellenism, modernity. Stanford, California: Stanford University Press, 2000. Pág: 39

[13] A superioridade da tragédia será levada em consideração apenas no bojo do idealismo alemão por Schelling,Hegel, Hölderlin,apesar de Schiller ter salientado antes do idealismo absoluto sobre a importância do antagonismo presente na tragédia. Goethe, por sua vez partidário do classicismo, posicionaria a favor da poesia épica pois receoso de que a verdadeira tragédia pudesse destruí-lo. MACHADO, Roberto. op.cit. págs: 18;164.

[14] RODRIGUES, Antonio E. Tempo Modernos – Ensaios de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000 pág. 275.

[15] COURTINE, Jean-François. A tragédia e o tempo da história. Rio de Janeiro, Editora 34, 2006. pág.: 155

[16] Vide definição de aórgico e as aplicações nas tragédias de Édipo e Antígona em “Hölderlin e o afastamento do divino” apud MACHADO, Roberto. op. cit. Pág: 142 e148-158.

[17] Ibid. pág. 164

[18] Ibid. pág. 92

[19] COURTINE, Jean-François. A tragédia e o tempo da história. Rio de Janeiro, Editora 34, 2006. págs. 176

[20] RODRIGUES, Antonio E. Tempo Modernos – Ensaios de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000 pág. 274.

[21] Hölderlin encara a desmedia e o conseguinte castigo dos deuses como “insolência sublime” ou “loucura sagrada” ao qual não deve-se conter ou evitar. Hölderlin e o afastamento do divino op. cit. Pág: 152

[22] FELIPPE, Eduardo Ferraz. Tradução e mediação poética: Hölderlin e a ressonância grega. Revista Eletrônica Cadernos de História, Ano II, nº1, março de 2007 pág. 5 e Hölderlin e o afastamento do divino op. cit. Pág:165.

[23] FELIPPE, Eduardo Ferraz. op. cit. Pág: 9

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Bibliografia

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Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.