Mill, breve biografia sentimental e intelectual – Número 125 – 09/2014 – [68-73]

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Infância

John Stuart Mill e utilitarismo são dois nomes dificilmente separáveis na história do pensamento ocidental. Considerado o maior nome da filosofia utilitarista durante o século XIX, comumente é apontado como melhor gênio filosófico produzido pela Inglaterra naquele período. Mas o posto de campeão filosófico não chega à sua vida por acaso, pelo sabor dos acontecimentos ou devido à inspiração de uma musa – minto, há uma musa sim nessa história – mas como fruto do planejamento levado a cabo por seu pai, que pretendia criar uma perfeita mente filosófica. Stuart Mill é um projeto. Embora a educação familiar lhe indica-se a razão como destino, os sentimentos em sua vida o conduziram a uma filosofia original, ao mesmo tempo dissidente e arejadora do utilitarismo.

Nascido em 20 de maio de 1806, na cidade de Londres, o pequeno John era filho de Harriet Burrow e do escocês James Mill, filósofo, historiador e economista, amigo e parceiro intelectual do também economista David Ricardo – estes dois responsáveis pela criação da escola de economia clássica. Sendo o mais velho de nove irmãos, o pequeno Mill passou por relativa pobreza e instabilidade financeira até quatorze anos, quando finalmente seu pai teve sucesso nas letras através da publicação da História das Índias Britânicas, em 1818. Graças a isso seu pai foi galardoado com um posto de trabalho no escritório da sede da Companhia das Índias Orientais. Antes disso, a família dependeu muitas vezes da ajuda financeira de amigos, como o filósofo Jeremy Bentham e do já citado David Ricardo. No que diz respeito à vida pública, o velho Mill e seus amigos eram identificados como “radicais filosóficos”, membros de uma corrente de pensamento que invadiu a cena política inglesa no início do século XIX, defendendo práticas utilitaristas como a adoção do sufrágio universal, reformas no sistema político e na legislação, uso da teoria econômica racional ricardiana em decisões políticas, na contramão do conservadorismo agrário da aristocracia e deixando de lado o jusnaturalismo – que consideravam uma ideia risível. Na política, o utilitário busca como fim último a felicidade geral da sociedade.

A educação do pequeno John foi orquestrada com rigor pela batuta de seu pai, com o objetivo de criar uma mente poderosa e defensora do utilitarismo. Na infância, seu quotidiano era isolado da convivência com crianças de sua idade, visando livrá-lo de distrações; a totalidade de seu tempo era dedicada a seguir o programa de estudos formulado pelo pai. Aos três anos, iniciou-se nas letras gregas, recitando junto ao pai longas listas de palavras e seus correspondentes em inglês. Aos oito anos foi vez do latim. Mill nos informa em sua autobiografia que por essa idade já havia lido as Fábulas, de Ésopo, Anábase, de Xenofonte, a obra completa de Heródoto, bem como já tinha proximidade com os textos de Luciano de Samósata, Diógenes Laércio, Isócrates e alguns diálogos de Platão. Também já havia frequentado variadas obras sobre a história da Inglaterra, aritmética e astronomia, tendo igualmente atacado os trabalhos de Euclides e a álgebra. Seu tempo livre era fruído com leitura de Dom Quixote, Robinson Crusoe e outros romances populares de seu tempo, além de trabalhos de ciências naturais. Aos doze anos iniciou seus estudos de lógica, ao mesmo tempo em que realizava a leitura da obra de Aristóteles no original grego. Finalmente, aos treze foi apresentado à economia política, introduzindo-se na leitura de Adam Smith e David Ricardo. Aliás, este último, amigo da família, convidava-o frequentemente para caminhadas, onde entabulava diálogos sobre tópicos de economia política com o jovem.

Quando o jovem Mill adquiriu certa maturidade, Jeremy Bentham responsabilizou-se por sua educação integral. Com quatorze anos completos, Stuart foi para a França, onde viveu um ano na casa da família do irmão de Bentham, Samuel, em Montpellier, no sul. Lá adquiriu fluência no idioma francês e um imenso interesse pelo pensamento filosófico produzido no país, além de uma preferência íntima por paisagens montanhosas, como os Alpes. Teve oportunidade de travar contato com diversos pensadores, como Henri Saint-Simon. Na Faculdade de Ciências local, assistiu também a disciplinas focadas nas ciências naturais. Em sua autobiografia, Stuart Mill afirma que esse foi o período mais feliz de sua vida: converteu-se num inglês francófilo e sempre que podia passava temporadas daquele lado do Canal da Mancha, tão próximo do sul quanto pudesse.

Entretanto, apesar da rígida educação formal, não podemos dizer que Stuart Mill foi sempre um jovem enclausurado num gabinete de estudos, nem que toda sua energia esteve amarrada sob o cabresto da educação paterna. Muito diferente da ideia que se tem de uma calculadora filosófica com formato de homem, suas convicções intelectuais estavam afinadas, vá lá, com seus atos de delinquência juvenil: além de posições radicalmente progressistas como apoio ao sufrágio feminino, abolicionismo e extensão do voto para os trabalhadores, Stuart Mill foi interrogado pelas autoridades inglesas por lecionar árabe com o perigo de insuflar nativos potencialmente rebeldes – numa Inglaterra em franca expansão imperialista – colaborou em processos de libertação de acusados de terrorismo e aos dezessete anos foi preso por ajudar pessoas pobres a obter métodos contraceptivos, alegando o direito de controle de natalidade e planejamento familiar para todos.

Nos anos seguintes, foi editor do Westminster Review, periódico fundado por Jeremy Bentham. Fundou e participou de diversas sociedades intelectuais e grupos de estudos, além de exercer intensa atividade periodista. Atuar em jornais e revistas foi o meio encontrado pelo jovem Stuart Mill para divulgar suas ideias filosóficas e ganhar a atenção da sociedade da época. Sobre isso nos diz, “O jornalismo é para a Europa o que a oratória política foi para as antigas Roma e Grécia.” Era o campo do debate e do combate.

Juventude

Se máquinas programadas estão sujeitas a pifarem, provavelmente homens programados estão mais sujeitos ainda a padecer desse mal. Em 1826, ao completar vinte anos, John Stuart Mill padece de um severo colapso nervoso, graças à estafante rotina de estudo e trabalho à qual seu corpo foi submetido durante quase duas décadas. Era esperado que algo dessa natureza ocorresse com alguém que aos treze anos já possuía uma formação equivalente ao nível universitário de sua época. Praticamente todas as explicações para tal desarranjo mental giram em torno do relacionamento paterno pautado numa cobrança obsessiva em cima dos estudos e na falta de emoções no âmbito familiar.

Em sua autobiografia Stuart Mill alega que encontrou a saída para esse quadro de depressão na poesia e, posteriormente, no contato com o romantismo e outras correntes filosóficas europeias, negadoras de qualquer concepção naturalista, secular e material da natureza humana. Segundo o próprio, isso o ajudou a desenvolver seu lado sensível, posto tacitamente de lado pela educação racional e analítica à qual foi submetido. Com o tempo, avançou para o estudo de assuntos que o interessavam, como urbanização e industrialização, questões que afetaram violentamente a Inglaterra daquele momento. Na medida em que se liberta da depressão, o filósofo volta a trabalho com mais fôlego. Stuart Mill manteve uma cabeça mais aberta e travou contato com várias correntes de pensamento diversas da sua; com o intelecto mais arejado, passou a revisar os muitos pontos do utilitarismo paterno que o deixavam insatisfeito, pondo em cheque a matriz dogmática do racionalismo radical dessa filosofia.

Apesar desse movimento de releitura e revisão, Stuart Mill foi um utilitarista durante toda a sua vida. Segundo o acadêmico brasileiro Ari Tank Brito, o jovem filósofo não foi um apóstata de sua filosofia, mas um herege. Longe de negar o utilitarismo por completo, Mill procurou corroê-lo por dentro, em seus veios e raízes racionalistas e frias, distantes de qualquer emoção ou apelo sensível, invocando demônios e pecados internos que considerava serem as fraquezas do utilitarismo. Sua postura intelectual assumiu, a partir de então, uma rota de colisão com a de seu padrinho filosófico, Jeremy Bentham. Iniciou a leitura de autores julgados até então como malditos por seus predecessores utilitaristas. Alexis de Tocqueville, Thomas Carlyle, Auguste Comte, Herbert Spencer, entre outros, foram os responsáveis pela busca de Stuart Mill por outras fontes de conhecimento; por vezes trocou com eles volumosa correspondência, como foi o caso de Auguste Comte, com quem construiu uma amizade epistolar.

Stuart Mill não pode estudar nas Universidades de Cambridge e Oxford por não concordar com os preceitos da Igreja Anglicana. Ateu determinado, embora em diversos discursos tenha citado Jesus Cristo como exemplo de homem de virtudes. Sua primeira passagem pelo mundo universitário foi como assistente de leitura no University College London, nas classes de jurisprudência de John Austin.

O ano de 1826 é também o ano em que se torna, assim como seu pai, funcionário da Companhia das Índias Orientais, trabalho no qual permanecerá até aposentar-se em 1858. O gabinete lhe consumia poucas horas diárias e junto a uma confortável situação financeira, permitiu a Mill continuar com seus estudos e a elaboração de seu pensamento filosófico.

Harriet

É impossível qualquer ensaio biográfico sobre Stuart Mill que ignore a importância do ano de 1830. Num certo jantar de domingo, com presença de vários membros do partido liberal e outras figuras eminentes, a vida do jovem utilitarista choca-se com a de Harriet Taylor, uma jovem casada e mãe de dois filhos. Harriet imediatamente apaixona-se por Mill por ter sido ele o primeiro homem a trata-la como intelectualmente igual. Eles manterão um longuíssimo relacionamento de amor platônico e intelectual, com o estabelecimento de um constante diálogo filosófico e amoroso entre os dois, travado discretamente por meio de cartas, mas também em encontros no zoológico de Londres – especificamente atrás da jaula de um rinoceronte – ou em viagens à França, na qual Harriet oscilava entre a companhia de Mill e a de seu marido, Taylor. Esse romance intelectual se estenderá por 21 anos, com Stuart Mill submetendo vários de seus trabalhos à leitura e revisão de Harriet Taylor e estabelecendo um diálogo constante no qual ambos se influenciarão. Em 1833, Harriet separou-se de seu marido e foi morar em uma casa separada, embora continuassem oficialmente casados; ela encarregou-se da educação da filha do casal enquanto John Taylor ficou com os outros dois filhos. Apesar da formalidade mantida por Harriet e Stuart, o relacionamento era um pequeno escândalo para a sociedade da época, mesmo entre círculos intelectualizados. Certa vez, ao conversar com o editor de uma revista sobre a submissão de um artigo, Harriet recebeu uma carta em sua casa do mesmo editor inquirindo, formalmente, se quem o escreveria seria ela ou Mill.

Os escritos de Harriet são muito esparsos, consistindo a maior parte de seu trabalho de resenhas e revisões bibliográficas, poemas e textos críticos publicados em jornais; parece que a maior parte de sua vida foi dedicada mais à militância política do que à formulação de um pensamento filosófico sistematizado. A temática de suas reflexões gira em torno da questão do papel da mulher na sociedade e da degradação proporcionada pela sujeição econômica das mulheres em relação aos homens. É evidente a influência de Harriet Taylor sobre o pensamento de Stuart, chegando-se ao ponto de em alguns momentos não podermos demarcar uma linha divisória e afirmar o quanto das questões atacadas por Mill são fruto do pensamento de Taylor; amor intelectual. É dessa época inclusive a publicação de “Primeiros Ensaios sobre o Casamento e o Divórcio”, primeiro trabalho conjunto do par, lançado em 1832.

Maturidade

Entre 1826 e 1836, Stuart Mill continua atuando intensamente no periodismo, editando junto com o pai e o sócio Charles Molesworth um novo jornal, o London Review. Aliás, num claro ato de competição predatória, o antigo Westminster Review, de Bentham, foi comprado por Molesworth em 1834, deixando o London sem oposição e o radicalismo filosófico sem mais um canal de expressão.

A morte de Jeremy Bentham em 1832 e de James Mill em 1836 finalmente dará a Stuart Mill liberdade suficiente para levar adiante seu projeto de reformar o utilitarismo.

Em 1843 lança o seu Um Sistema de Lógica, indicando os cinco princípios do raciocínio indutivo, também conhecido como Método de Mill.

Em 1849, o marido de Harriet Taylor falece. Entretanto, Mill e Taylor casam-se apenas em 1851, pois Harriet tinha receio em criar um escândalo maior ainda do que o que havia vivido em seu relacionamento anterior. É na vivência desse casamento que Stuart Mill escreve Sobre a Liberdade. Além da apaixonada e honrosa dedicatória que Mill faz a sua esposa na abertura de Sobre a Liberdade, o autor fez questão de deixar claro que, além de revisora da obra, ela foi uma grande influenciadora de suas ideias. O livro é lançado apenas em 1859, um ano após o falecimento de Harriet em Avinhão, na França, graças a um quadro de tuberculose.

Por essa altura, a reputação de Mill como intelectual já era altíssima. Em 1856, Stuart Mill foi eleito membro estrangeiro honorário da Academia Americana de Ciências e Artes. Entre 1865 e 1868 ocupou o cargo de Senhor Reitor da Universidade de St. Andrews.

A obra fundamental para a compreensão de sua visão sobre o utilitarismo é lançada em 1863, sob o nome de Utilitarismo. De fato, o volume é a organização e revisão de alguns artigos que Mill havia escrito para a Fraser’s Magazine, em 1861.

Sua carreira política institucional será marcada por um breve período de três anos (1865 a 1868) como Membro do Parlamento pela cidade de Westminster. Seu posicionamento e suas propostas o identificaram frequentemente com o Partido Liberal, muito embora Mill não se deixasse reduzir a isso. Seus pronunciamentos foram marcados pela racionalidade utilitarista e pela constante pregação da necessidade de expansão do sufrágio às mulheres e à classe trabalhadora. Todavia, com a dissolução do parlamento, Mill perde seu cargo e não é mais eleito.

A partir de 1868, o velho Mill se retira para a cidade francesa de Avinhão, na companhia de Helen Taylor, filha de sua falecida esposa, inclusive sendo eleito para a câmara local. Lá, redige e revisa seus trabalhos finais, além de publicar “A Sujeição das Mulheres”, em 1869. Stuart Mill credita a co-autoria deste texto à falecida Harriet Taylor Mill – e de fato, os acadêmicos alegam que os argumentos encontrados neste texto são muito parecidos com os de outro de autoria exclusiva de Harriet, A Libertação das Mulheres, publicado uma década antes, em 1859.

Em 1873, John Stuart Mill morre graças por complicações de erisipela. Foi enterrado no cemitério de St. Verán, ao lado de sua esposa, amiga e companheira intelectual, Harriet.

Stuart Mill morreu sem ver nenhuma medida legal de apoio às mulheres ser posta em prática. Apenas em 1882, nove anos após a morte do filósofo, é que o Ato de Propriedade da Mulher Casada foi aprovado pelo Parlamento. O sufrágio feminino foi aprovado décadas depois, em 1918.

Legado

Stuart Mill era reputado como grande pensador ainda em vida, considerado o mais influente de língua inglesa durante todo o século XIX. Seus principais escritos tornaram-se leitura obrigatória em universidades anglófonas dos dois lados do Atlântico. Porém, sua popularidade caiu profundamente na primeira metade do século XX, sendo seu tom conciliatório identificado com um liberalismo que as novas ideologias ansiaram por suplantar e destruir. Exatamente o contrário do que o velho Mill defendia: um mundo mais pautado na igualdade e no diálogo, visando o progresso geral da liberdade para todos os homens e, é claro, mulheres.

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Daniel Felismino

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.