Direct your eye right inward, and you’ll find
A thousand regions in your mind
Yet undiscovered. Travel them, and be
Expert in home-cosmography.
Henry David Thoreau – Walden
A história e a literatura dos Estados Unidos têm entre seus elementos constituintes a ideia de movimento; não só como deslocamento, mas também como seu ímpeto em sair de um estado de coisas, potência de fuga diante de qualquer possibilidade fixidez que tolha a liberdade. Identifica-se a experiência do movimento na marcha para o oeste, nas fugas e migrações de negros para regiões mais livres do país, nas febres mineradoras – os americanos sempre vagaram por seu território deliberadamente em busca de melhores condições de vida. Mas também identificamos o movimento nos andarilhos e marginais de William Faulkner, nas migrações de John Steinbeck ou na crônica de viagem de Kerouac.
A concepção de movimento é consagrada há tempos como uma das forças motoras da sociedade americana. Frederick Jackson Turner, um dos historiadores seminais da historiografia dos Estados Unidos nos aponta isso em seu ensaio “O Significado da Fronteira na História Americana”. O sucessivo deslocamento de frações da sociedade americana em direção ao oceano Pacífico, penetrando ao longo de décadas no continente – um caminho pavimentado de morte, guerra e genocídio – é visto como uma vontade de fuga da sociedade, partindo do leste, onde costumes e instituições tornavam-se cada vez mais firmes e estabelecidos, rumo ao oeste, um lugar onde as amarras não estejam presentes e as únicas determinações da vida sejam aquelas de fundo prático, as quais os costumes pragmáticos americanos dão aos indivíduos a sensação de ter a capacidade de resolvê-las.
Essa marcha dos homens em direção à terra do crepúsculo pode ser entendida como uma tentativa de emular novamente uma velha experiência, nunca mortificada na memória e nos hábitos daquela sociedade: os tempos coloniais, com seus territórios vagamente demarcados e a existência de um governo autônomo e pouco constrangedor. A emulação, portanto, negava um mundo que cambiava a cada dia e propunha a construção de um outro detentor das características originas daquele. Esse mundo novo, que emula o velho, ao fim e ao cabo terminará por transmutar-se outra vez numa sociedade de costumes e instituições constritivos; esse ciclo, como uma gigantesca engrenagem social e histórica, provocará o movimento que vai reproduzir a sociedade americana e suas instituições ao longo de seu território, de leste a oeste.
Com alguma facilidade e imaginação associamos esse movimento a um tipo social perene e quase folclórico da história dos Estados Unidos, o homem pragmático, o self-made-man, que trabalha com ímpeto e ardor pela construção e meio de realizar a sua própria vida. Mas há outra figura humana relacionada à ideia de movimento que construímos no início dessa breve exposição. É um indivíduo preocupado com o encontro da vida com a alma, da matéria com o tempo. Fortemente espiritualizado, esse homem apresenta-se como um resquício daqueles peregrinos dos primórdios coloniais e dos pioneiros das treze colônias. Mas não é simplesmente um cristão protestante puritano – vai buscar essa transcendência no contato com a natureza. Um tipo humano que vê no isolamento e relacionamento mais íntimo com o país selvagem uma maneira de superar o divórcio que a civilização moderna provocou entre o material e o espiritual no seio da humanidade. Suas incursões físicas, intelectuais e emocionais abrem caminho para dentro da wilderness – o lado mais indomado da natureza, onde exatamente por não haver resquício de civilização, o indivíduo acaba por encontrar a si mesmo. Essa dimensão sagrada que a wilderness adquire nos Estados Unidos fica patente pela criação de parques nacionais, anualmente visitados por milhares de filhos acompanhados de seus pais, na busca um contato mais íntimo e a rememoração de tradições. Esses caminhantes dos bosques são tão parte da sociedade americana e sua história quanto os pioneiros citados acima.
Thoreau foi expressão viva da faceta menos material e mais sensível desse movimento – permitindo-nos perceber algo que, se era reconhecível nos processos da sociedade americana, também o era na dinâmica de seu pensamento. É o pai fundador de uma longa tradição que, com fluxos e metamorfoses, continuará viva na sociedade americana até o século XX.
Nascido em 1817, Concord, Massachussetts , Henry David Thoreau foi um homem de múltiplas atividades; antes de mais nada, escritor e poeta, mas também filósofo e naturalista; com a morte de seu irmão mais velho, acabou por assumir os negócios junto ao pai, cuidando de uma pequena fábrica de lápis de propriedade de sua família.
Aos dezesseis anos ingressou em Harvard, onde permaneceu até os vinte, obtendo uma formação variada, estudando desde filosofia até matemática, passando pelos clássicos universais. Porém, nenhuma das possibilidades profissionais abertas a um graduado (a medicina, a lei ou a religião) interessou a Thoreau, de maneira que abriu uma escola em Concord em sociedade com seu irmão, introduzindo novos e diferenciados métodos pedagógicos – como aulas de campo e caminhadas. No entanto, com o dramático falecimento do irmão, que morreu em seus braços – por tétano, graças a um corte feito por uma lâmina de barbear – a escola teve que ser fechada.
Thoreau trabalhou como colaborador de periódicos da região, entre eles o The Dial, principal meio de veiculação de uma corrente filosófica que se formou no nordeste dos Estados Unidos, os transcendentalistas. Os preceitos desse grupo eram profundamente idealistas, sendo uma de suas bases intelectuais a filosofia de Imanuel Kant. Entre seu leque de propostas estava uma vida mais espiritualizada e menos pragmática, alternativa diversa da realidade que inundava os Estados Unidos daquela época, um país que se industrializava dia após dia e cujo cotidiano estava dominado pelo pragmatismo e empreendedorismo. Apesar da preocupação com a plenitude da alma humana, Henry diferia muito de seus companheiros por dar à suas indagações um tom de aqui e agora. O encontro com uma vida melhor deveria se dar no presente e não num plano idealizado; os homens deveriam se desligar dos objetivos mesquinhos que os afastavam da vida simples e buscar, por seus próprios meios – não deixando o filósofo de conservar aí uma característica pragmática – uma vida melhor. Assim, Thoreau não se deixou limitar pelas premissas da comunidade intelectual com a qual dialogava.
O pensamento thoreauniano está disperso ao longo de dois livros e uma miríade de ensaios, além de uma série de ensaios, estudos e poemas que totalizam vinte volumes.
A Week on the Concord and Merrimack Rivers (1849) é uma pista do gosto de Thoreau pela experiência de errar pelo país e entregar-se ao sabor do mundo natural. O que num primeiro lance aparenta ser o relato de uma viagem fluvial feita na companhia de seu irmão se revela um conjunto de reflexões sobre história, filosofia, poesia e outros tópicos, mediados pela passagem do tempo e do espaço ao longo dos rios Concord e Merrimack, em Massachussetts. Nesse livro Thoreau também dá tintas fortes à sua decepção quanto às transformações daquela Nova Inglaterra que rapidamente se industrializava.
Walden(1854) é a obra máxima do filósofo. Antes tudo é um experimento filosófico, no qual Henry Thoreau decide viver durante dois anos e dois meses nos bosques que cercam o lado homônimo, em Concord. Construiu uma cabana com seu próprio esforço e empenhou-se em produzir seu próprio alimento, em uma pequena lavoura ou pescando no lago. Dispendia a maior parte de seu tempo livre em longas caminhadas nas matas ou então remando sobre o longo espelho de águas lacustres. É uma longa experiência de imersão no mundo natural e submissão às influências que isto poderia causar no comportamento de seu espírito. Quando na cabana, dedicava-se à leitura e escrita – sendo durante sua estada nas matas que escreve A Week on the Concord and Merrimack Rivers. O biênio vivido nos bosques é um longo momento de reflexão para Henry. O autor escreve sobre variados temas ao longo do texto – uma característica particular sua, já que não possuía uma escrita sistemática, mas que desenvolvia-se como o correr do dias; em meio a pensamentos e meditações sobre ética, religião, moral e crítica social há a narração de aspectos práticos do cotidiano ou elegias à alguma impressão marcante. Alguns anos depois este livro se tornará uma referência na literatura americana.
Dentre seus ensaios vale destacar A desobediência civil (1849), fruto de sua experiência na prisão, por ter se negado a pagar impostos para sustentar uma guerra contra o México, que dentre seus motivos tinha a expansão da escravidão, à qual Thoreau, abolicionista, opunha-se frontalmente. Este pequeno texto político influenciará gerações de eminentes norte-americanos que se movimentaram contra regimes políticos que consideravam injustos, como Martin Luther King – mas também de outros países, como Mahatma Gandhi, na Índia.
Thoreau teve que sair de Walden a pedido de Ralph Waldo Emerson, seu amigo e proprietário daquelas terras. Mesmo tendo retornado à cidade, o filósofo passou o resto de seus dias planejando e executando longos passeios aos campos. Em 1862, acabou por falecer graças à tuberculose.
A filosofia de Thoreau pavimentou uma longa tradição intelectual nos Estados Unidos, uma trilha aberta a ser explorada por outros pensadores. No século XX, entre seus influenciados, temos a literatura do pós-segunda guerra, especificamente os beats. Apesar de que muitas das práticas auto-destrutivas dos beats possivelmente seriam rejeitadas e desprezadas por um naturalista como Thoreau – que cultivava o corpo com uma alimentação austera e natural – é impossível negar o caráter experiencial e a valorização da vitalidade na prática de ambos. Tanto para a geração beat quando para Thoreau, o movimento é para fora da civilização, dos padrões estabelecidos, das prisões que agrilhoam a experiência. Nega-se e rejeita-se tudo o que impeça o homem de conectar-se consigo e o lance na direção de práticas que mortificam a alma e, em última análise, a vida.
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Daniel Felismino