Tradução: Rodrigo Pinto de Brito
O homem é incapaz de imaginar que o tempo poderia, por alguns momentos, parar. Para nós, mesmo se a Terra cessasse de girar sobre seu eixo e de revolver-se em torno do Sol, mesmo que não houvesse mais dias e noites, verões e invernos, o tempo continuaria a fluir eternamente.
Não é fácil, para nós, imaginarmos que, em algum lugar, para além das mais longínquas estrelas nos firmamentos noturnos, há um fim para o espaço, uma borda além da qual “nada” existe. O conceito de “vazio” tem algum significado para nós, porque podemos pelo menos visualizar um espaço que está vazio, mas “nada”, no sentido de “sem espaço”, está além da nossa capacidade de imaginar. Este é o motivo pelo qual, desde o momento em que o homem veio a pôr-se, a sentar-se, e erguer-se sobre esta Terra nossa, para rastejar e andar sobre ela, para navegar, cavalgar e voar acima dela (e agora para além dela), nós temos nos apegado a ilusões – a um mundo futuro, um purgatório, um paraíso e um inferno, um renascimento ou um nirvana, todos existindo eternamente no tempo e sem fim no espaço.
Um compositor, um artista para o qual o tempo é a base sobre a qual ele elabora, já sentiu o desejo de alcançar a eternidade por meio de sons? Eu não sei, mas se sim, imagino que ele achou os métodos à sua disposição inadequados para satisfazer seu desejo. Como poderia um compositor ter sucesso ao evocar a sugestão de algo que não se dirige para um fim? A música não está lá antes de seu começo e depois do seu fim. Ela está presente somente enquanto nossos ouvidos recebem as vibrações sonoras nas quais a música consiste. Um fluxo de sons agradáveis, que continua ininterruptamente ao longo de um dia inteiro, não produz uma sugestão de eternidade, mas somente fadiga e irritação. Nem mesmo o mais obsessivo ouvinte de rádio poderia receber qualquer noção de eternidade deixando seu aparelho de som ligado desde a manhã cedo até tarde à noite, mesmo se ele sintonizar somente elevadíssimas peças clássicas.
Não. Este problema da eternidade é muito mais difícil de resolver de forma dinâmica do que de forma estática. Onde o objetivo é penetrar, de modo estático, imagens visualmente observáveis sobre a superfície de um simples pedaço de papel para desenho conduzem ao mais profundo sem fim.
Parece duvidoso que haja muitos desenhistas, artistas gráficos, pintores e escultores contemporâneos nos quais tal desejo surja. Na nossa época eles são conduzidos mais por impulsos que não podem e não querem definir, por um ímpeto que não pode ser descrito intelectualmente em palavras, mas que pode somente ser sentido inconscientemente ou subconscientemente.
Contudo, pode possivelmente acontecer que alguém, sem muito entendimento correto e com poucas das informações coletadas pelas gerações anteriores em sua mente, que este tal indivíduo, passando seus dias como outros artistas, detido na criação de figuras mais ou menos fantásticas, possa um dia sentir amadurecer em si um desejo consciente de usar suas imagens imaginárias para alcançar o infinito, tão pura e proximamente quanto possíveis.
Profundo, profundo infinito! Quietude. Para sonhar além das tensões da vida cotidiana; para navegar por um calmo oceano na proa de um navio, em direção a um horizonte que sempre recua, para ver as ondas passando e ouvir seu monótono murmúrio suave; para sonhar longe em direção à inconsciência…
Quem quer que submirja no infinito, tanto em tempo quanto em espaço, mais e mais além, sem parar, precisa de pontos fixos, marcos miliários, de outra forma seu movimento seria indistinguível de estar parado. Deve haver estrelas além, para as quais ele se atire, sinalizadores com os quais ele possa medir a distância que atravessou.
Ele deve dividir seu universo em distâncias de uma dada medida, em compartimentos recorrentes em uma série interminável. A cada vez que ele atravessa uma borda entre um compartimento e o próximo, seu relógio dá um tic. Qualquer um que queira criar um universo em uma superfície bidimensional (engana a si mesmo, porque nosso mundo tridimensional não permite uma realidade de duas ou quatro dimensões) nota que o tempo passa enquanto está trabalhando sobre sua criação. Mas quando termina e olha para o quê fez, vê algo que é estático e atemporal; na sua figura nenhum relógio marca, e só há uma superfície imóvel e plana.
Ninguém pode desenhar uma linha que não seja uma linha limite; toda linha divide uma singularidade em uma pluralidade. Todo contorno fechado, não importa sua forma, tanto faz um círculo perfeito ou uma forma irregular a esmo, evoca em adição as noções de “dentro” e “fora” e a sugestão de “perto” e “distante”, de “objeto” e “cenário”.
A dinâmica, a marcação regular do relógio toda vez que passamos uma linha limite na nossa jornada através do espaço, não é mais ouvida, mas podemos substituí-la, no nosso meio estático, pela repetição periódica de figuras com formas semelhantes na superfície do nosso papel, formas parecidas que se limitam umas às outras, determinam o formato umas das outras, e preenchem a superfície em qualquer direção, tão além quanto desejarmos.
Que tipo de figuras? Irregulares, manchas sem forma incapazes de evocar idéias associativas em nós? Ou abstratas, geométricas, figuras lineares, retângulos ou hexágonos sugerindo, no máximo, um tabuleiro de xadrez ou um favo de mel? Não, não somos cegos, surdos ou mudos; nós conscientemente consideramos as formas que nos circundam e, em sua enorme variedade, elas falam-nos em uma distinta e excitante linguagem. Consequentemente, as formas com as quais compomos as divisões da nossa superfície devem ser reconhecidas como signos, como símbolos distintos da matéria viva ou morta ao nosso redor.
Se criarmos um universo, que ele não seja abstrato ou vago, mas antes que represente concretamente coisas reconhecíveis. Construamos um universo bidimensional através de um infinitamente grande número de idênticos, mas distintos componentes reconhecíveis. Este poderia ser um universo de pedras, estrelas, plantas, animais ou pessoas.
O que foi alcançado com Study of Regular Division of the Plane with Reptiles (1939, lápis, tinta Índia, aquarela, 359 x 269 (14 1/8 x 10 5/8”)?
Não o verdadeiro infinito, mas, entretanto, um fragmento dele, uma parte do universo dos répteis. Se a superfície na qual eles se instalam juntos fosse infinitamente grande, um número infinitamente grande deles poderia ser representado. Mas esse não é o tema de um jogo intelectual, estamos conscientes de que vivemos em uma realidade material tridimensional, e somos incapazes, sob todas as formas, de fabricar uma superfície plana que se estenda infinitamente por todos seus lados. O que podemos fazer é curvar o pedaço de papel no qual esse mundo reptiliano é representado fragmentariamente e fazer dele um cilindro de papel, de modo que as figuras animais nessa superfície cilíndrica continuem a encadearem-se sem interrupção, enquanto o tubo revolve em torno do seu eixo longitudinal. Dessa forma, interminavelmente, essa rotação é executada em uma direção, mas não ainda em todas direções, porque não somos mais hábeis em produzir um cilindro infinitamente longo do que de fazer uma superfície infinitamente extensa.
A Sphere with Fish (1940, escultura em madeira tingida, diâmetro 140 (5 1/2”) fornece uma solução mais satisfatória: uma bola de madeira cuja superfície é completamente preenchida por doze figuras congruentes de peixes. Se alguém virar a bola em sua mão, verá peixe após peixe aparecer infinitamente.
Mas, essa solução esférica é realmente completamente satisfatória? Certamente que não, para um artista gráfico que é mais compelido à superfície plana do que um projetista, um pintor ou um escultor. E, totalmente à parte isso, doze peixes idênticos não é o mesmo do que infinitamente muitos.
Contudo, há também outras maneiras de representar um número infinito sem curvar a superfície plana. Smaller and Smaller I (1956, madeira estampada em duas cores, 387 X 387 (15 1/4 X 15 1/4”) é uma primeira tentativa nessa direção.
As figuras com as quais esta madeira é tingida são construídas reduzindo-se a área de sua superfície pela metade constante e radialmente, das bordas para o centro, onde o limite do infinitamente pequeno é sobreposto em um único ponto. Mas essa configuração, também ela, permanece como um fragmento, porque pode ser expandida, pela adição, tão distantemente quanto se desejar, acrescentando-se figuras maiores.
A única maneira de escapar dessa característica fragmentária, e ajustar um infinito em sua completude com uma linha limite lógica, é usar o inverso da abordagem de Smaller and Smaller I. A primeira, ainda canhestra, aplicação desse método é demonstrada por Circle Limit I (1958, xilogravura, diâmetro 418 (16 1/2”), assinada e datada: MCE XI-’58).
As figuras animais maiores são agora colocadas no centro, e o limite do infinitamente muito e do infinitamente pequeno são aproximados do limite circular. O esqueleto desta configuração, à parte as três linhas que passam pelo centro, consiste somente de arcos com raios progressivamente menores quanto mais perto chegam da margem limite. Em adição, todas a seccionam em ângulos retos.
A xilogravura Circle Limit I, sendo a primeira, demonstra muitas deficiências. Tanto o formato dos peixes, ainda toscamente desenvolvidos de abstrações lineares à animais rudimentares, e seu arranjo e atitude quanto uns aos outros, deixa muito a desejar.
Acentuadas por suas colunas vertebrais, que passam por cada um longitudinalmente, séries de peixes podem ser reconhecidas em pares alternados – brancos com cabeças encarando-se uns aos outros, e pretos cujas caudas se tocam. Assim, não há continuidade, não há um direcionamento, não há unidade de cor nessa fila.
Na xilogravura Circle Limit III (1959, xilogravura em cinco cores, diâmetro 415 (16 3/8”) muitos destes defeitos são eliminados.
Há agora somente séries movendo-se em uma direção: todos os peixes das mesmas séries têm a mesma cor e nadam um após o outro, cabeça com cauda, através de um curso circular, de borda a borda. Quanto mais próximos de se aproximarem do centro, maiores se tornam. Quatro cores foram necessárias para fazer com que a totalidade de cada série contrastasse com seu redor.
Todos componentes das séries que do infinitamente distante surgem perpendicularmente do limite, como foguetes, e finalmente se perdem, sempre alcançam a linha limite. Fora disso, contudo, está o “nada absoluto”. Mas, o mundo esférico não pode existir sem o vazio ao redor dele, não só porque “dentro” presume “fora”, mas também porque no “nada” jaz o preciso, geometricamente determinado, pontos médios imateriais dos arcos sobre os quais o esqueleto é construído.
Há algo nessas regras que nos tira o fôlego. Elas não são descobertas ou invenções da mente humana, mas existem independentemente de nós. Num momento de iluminação, alguém pode no máximo descobrir que elas estão lá e levá-las em conta. Muito antes de haver pessoas sobre a Terra, cristais já cresciam na crosta terrestre. Mais dia, menos dia, um primeiro ser humano aproximou-se de tal pedaço cintilante de regularidade estendido no solo, ou bateu em um com sua ferramenta de pedra, e ele se quebrou e caiu a seus pés, e o homem pegou-o e observou-o em sua mão aberta, e ele estava deslumbrado.
Nota do tradutor: no título original ‘Approaches to Infinity’ a palavra ‘approaches’ carrega sentido dúbio, podendo ser entendida tanto como ‘acessos para o infinito’, quanto como ‘abordagens do infinito’. Como veremos, para Escher, à arte, por excelência, cabe a tarefa de colocar a humanidade em contato com coisas inefáveis, como o Infinito. Assim, Escher, por exemplo, em sua criação constrói acessos para o inefável através da abordagem imagética do Infinito.
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M. C. Escher