Eu estou inventando mulheres ou, talvez, outra forma de ser mulher.
José Saramago
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Há dois instantes singulares na obra de José Saramago em que uma personagem feminina irrompe a malha textual e passa a ocupar o estágio de ponto cardeal no desenvolvimento da narrativa: em Memorial do convento, com Blimunda e em Ensaio sobre a cegueira, com a mulher do médico. Foi nesse último romance que, movido em saber o porquê uma mulher em meio a uma epidemia que vai solapando um a um com uma estranha cegueira não cega, fui à cata de pensar, em primeiro lugar, que as personagens femininas saramaguianas eram dotadas de uma característica que as faziam singulares na sua obra [1]. O contato com outros trabalhos acadêmicos de pequena extensão sobre essa singularidade deu suporte para observar que a constatação já havia perdido seu ineditismo. E é possível mesmo que outros tenham lido melhor sobre esse tema, mas ainda assim, respeitando as particularidades já sondadas pela crítica, me pareceu ainda necessário cumprir um estudo de acurado fôlego que pudesse servir, se não de preenchimento de uma lacuna bibliográfica em torno da obra do Prêmio Nobel da Literatura Portuguesa, de ponto de partida para se pensar outros trajetos de uma trama tão bem urdida por ele – uma trama sobre o feminino.
Antes da mulher do médico e de Blimunda também já havia notado a singularidade do feminino em O conto da ilha desconhecida, um conto curto e de uma beleza metafórica sem limites que me serviu para a escrita do trabalho de conclusão do curso de Letras, em 2008: a mulher da limpeza. E a galeria se avoluma, porque se estas são singulares, singulares também são Leonor e Benedita, em Terra do pecado, o primeiro romance, de fato, de José Saramago, Adelina e M. em Manual de Pintura e caligrafia, Sara da Conceição, Joana Canastra, Faustina Mau-Tempo, Maria Adelaide e outra leva de mulheres em Levantado do chão, Marcenda e Lídia em O ano da morte de Ricardo Reis, Maria de Madalena em O evangelho segundo Jesus Cristo, Maria Sara e Ouroana em História do cerco de Lisboa, Joana Carda e Maria Guavaria em A jangada de pedra, Maria da Paz e Helena em O homem duplicado, Maria Isasca, Marta Algor e Conceição Madruga em A caverna, o ícone feminino em Todos os nomes, a Morte em As intermitências da morte, Lilith e Eva, em Caim. E, entre tantas outras saramaguianas, também as mulheres nos principais textos escritos para o teatro: Divara em In nomine Dei, Clara em A segunda vida de Francisco de Assis.
Por esse curto recorte, já é possível notar que a obra de José Saramago está amparada no feminino. Também é o suficiente para dizer que o escritor esteve empenhado na construção de um imaginário sobre a mulher; imaginário que não se guia pelas formações discursivas já creditadas a elas. Esse trabalho buscou, numa dimensão mais ampla que os contextos históricos evocados pelos seus romances, propor uma nova forma no entendimento do papel desempenhado por elas na elaboração da ordem social. Ou ainda a luz para a refiguração das órbitas de uma sociedade por vir – não como apelo utópico, mas como realidade possível tendo por base a participação e atuação da mulher, construídas sempre à base da revelia masculina e dominante.
Essas saramaguianas são representações subjetivas que promovem a ruptura com os modelos tradicionais. Elas não são sexos frágeis, resignados, nem estão acima dos homens, sendo-lhes uma oposição masculinizada, mas sujeitos em constantes vias de ser, sem que para isso abram mão de uma razão reflexiva pautada pelos aspectos afetivos e completamente aberta para o andamento das diversas movimentações nos contextos com os quais interagem. São, na verdade, intersubjetividades, restaurando o outro do abismo a que foi lançado desde o fechamento dos indivíduos em seus próprios mundos, isso pela capacidade que têm em compreenderem a si mesmas e os que estão à sua volta, sem que tenham de ser mais do que a situação lhe pede. Isto é, estão integradas a um modelo que não objetiva o bem individual, ou se posicionam como um poder sobre outro, mas têm um senso aguçado de coletividade e alteridade.
Não são raros os momentos em que tais saramaguianas estão procurando questionar os estereótipos sociais ou as verdades históricas com o interesse em propor uma nova maneira de reinventar o papel que a elas foi, desde a aurora da humanidade, ditado pelo homem. Para isso, não necessitam apartar-se do masculino ou colocar-se face oposta a ele. São, sim, opositoras da razão, das atitudes castradoras e cerceadoras das liberdades individuais. Para isso não carecem de dizer a que vieram, já que, são figuras que se guiam pelo movimento da ação; talvez porque estejam devidamente assentes à ideia de que o futuro utópico é somente utopia e o estágio social em que se encontram está saturado desse depositar num tempo indeterminado o que é para ser feito, elas estão na urgência de ser feito. E, por tudo isso elas são elementos paradigmáticos para, no instante em que propõe novos modelos de ser, propor também novas bases sociais. Reinventar a si quer dizer reinventar o mundo, afinal, o que é mundo, senão um amontoado de fatores históricos construídos pelo trabalho humano?
Mas, atenção: toda essa peculiaridade conferida às mulheres não as fazem seres angelicais ou demoníacos. Elas se inserem na escritura saramaguiana pela proposta multifacetada que têm assumido ao longo da história. São produções literárias em constante dissonância com as eticidades, as historicidades e os modelos sociais unilateralistas vigentes. Do seu caráter questionador atribuído à mulher desde o mito de formação da humanidade no Gênesis, Saramago produz retratos simbólicos de questionamento das práticas sociais que enformam a cultura ocidental. E, o mais belo de tudo: essas saramaguianas são da gente simples do povo, pondo em xeque pelo menos três modelos condicionados historicamente, a razão individual, o patriarcado e o sobrepujamento das classes abastadas como guias-mestras dos fatos. Por esta natureza são potentes símbolos de libertação, que em muitos casos partem de si mesmas, mas quer, pelo exemplo, condicionar uma ação externa.
2
Claraboia, o segundo romance na tábua bibliográfica do escritor português, e o último a ser publicado, o romance que de certo modo é ponto de partida e ponto de chegada de sua obra, não está alheio a essa galeria de mulheres que enumerei no primeiro momento deste texto e nem foge das considerações aqui já desenvolvidas e das que já persegui no estudo Retratos para a construção do feminino na prosa de José Saramago. É que nesse romance, as mulheres estão por toda a parte e são marcadas por traços indeléveis de atuação e personalidade central no espaço social que ocupam ou no núcleo familiar a que pertencem. A partir dessa constatação, é que busquei redigir este texto que analisa em linhas gerais a composição e as ações significativas que as legitimam enquanto mulheres e o duplo papel assumido por elas na narrativa, uma vez que a primeira leitura do romance logo revela ora figuras ativas ora passivas no seu universo de atuação. De certo modo, estas observações são elementos para uma revisão ou atualização da pesquisa gestada para a publicação de Retratos.
Se voltar ao que observei em 2012 quando afirmei sobre uma ausência de voz própria ou ação das mulheres no romance Terra do pecado e em Manual de pintura e caligrafia chegarei à compreensão de que Claraboia se apresenta como uma ilha entre os esses dois momentos: é que aqui se elas não desempenham ações significativas que as legitimem enquanto mulheres porque grande parte desses perfis se constituem mais em tipos sociais do tempo a que se refere as ações da narrativa, diferentes, portanto das outras personagens, também integram a dupla face apresentada nos romances a partir de Levantado do chão, isto é, estamos diante de figuras que incorporam o lado oposto daquelas que são ativas no universo em que estão situadas. Nessa dupla via, encontro Isaura, Adriana, Amélia e Cândida, numa mesma casa, só de mulheres que são únicas e responsáveis pelo bom do romance (depois retorno a este lugar para dizer melhor o porquê dessa constatação); depois, Lídia, a que vive sozinha e ganha a vida com uso do próprio corpo; Justina e Carmem, as que são corresponsáveis pela harmonia do espaço em que vivem; e, por fim, Maria Cláudia e Isaura são representativas da nova geração – tem formação literária, escrita e buscam sua independência no mercado de trabalho. Todas vivem num pequeno prédio numa daquelas estreitas ruas de Lisboa e constituem-se núcleos das várias narrativas que enformam o romance.
Quando digo que a família composta de mulheres é responsável pelo bom de Claraboia, digo revendo que suas ações envolvidas na vivência pelas artes. Elas não são atrizes, musicistas, escritoras ou qualquer outra profissão que lide diretamente com o universo artístico. Não. Elas estão no mesmo nível de simplicidade daquelas outras saramaguianas que apresentei na primeira parte deste texto. Mas encontram uma pluralidade de sentidos que nem mesmo conseguem explicar para si ou para as outras, nesse universo da arte: Adriana, por exemplo, adora as sinfonias de Beethoven e vez ou outra o leitor encontrará com ela sozinha ou em grupo a catar as faixas do rádio em que tocam composições do músico alemão e num gesto digno de nota, empregará seu dinheiro juntado à custa para aquisição de uma escultura que é uma réplica da máscara mortuária do compositor. Depois, a irmã Isaura, tomada por um modo intimista de ver o mundo – tem sua predileção pelos dias enevoados – e pela leitura de romances: lê Os Maias, de Eça de Queiroz, A religiosa, de Diderot, A dança dos mortos, de Jean-Louis Barrault entre outros; as experiências pelo contato com esses trabalhos têm uma intervenção significativa na formação de sua identidade, no descobrimento das coisas, do próprio mundo em que vive, do corpo e da sexualidade, e sobre as primeiras ilusões amorosas, ressaltando nesses desdobramentos não apenas uma antecipação para o leitor sobre o desenvolvimento da personagem e sua trama ao longo do romance, mas o caráter emancipador da leitura, razão que, mesmo não tendo sido admitida pelo escritor português, foi de grande perquirição para a construção de sua obra.
Algumas conseguirão ensaiar passos mais amplos para sua emancipação, outras nem tanto. Lídia, por exemplo, a personagem sobre qual dizíamos ser a que vive de uma relação capital a partir do seu próprio corpo, tomará, já em meados da história, a decisão por não se render aos caprichos armados pelo amante para reduzi-la ao papel de submissa ao ser masculino, fazendo valer o que diz sobre seu modo de vida, logo no início da narrativa: “Saio quando quero e faço o que quero. O mal ou bem que eu faço são à minha conta.” (2011, p.76)[1]. Ainda que os outros lhe olhem pelo avesso – “há mulheres cuja existência é uma nódoa alastrando no meio das pessoas honestas, há mulheres que deveriam desaparecer da face da terra” (p.332) – pensam Rosália e Anselmo – as decisões alheias não lhe são inoportunas aos seus modos de vida.
Vale ressaltar que Lídia é uma mulher que renega não apenas a ordem masculina como tem rejeição por outros limites ditados ou autoimpostos que atinjam as fronteiras de sua liberdade, como a ordem castradora do capital, da qual sua mãe, por exemplo, é vítima. Entregue ao luxo e à vaidade, mantidos à custa do dinheiro de Lídia, sua mãe exerce o seu lado oposto: tem zelo e respeito exacerbados pelo homem que sustém a filha e quando aponta a primeira crise de ciúmes e Lídia já logo se decide pelo fim do relacionamento é do lado de Paulino que a mãe, mesmo tendo suas desavenças com ele, permanecerá; como se isso lhe servisse de alguma garantia para em caso de Lídia redimir-se ela ser duplamente recompensada. A mãe de Lídia age não apenas como uma submissa aos desígnios do homem como em torno dos seus próprios interesses.
Em termos de não submissão ao homem, cumpre citar também a atitude de Maria Cláudia: depois de ser assediada pelo chefe e manter o silêncio para os pais sobre o ocorrido toma a séria decisão de contar a verdade: que Paulino, largado dos prazeres com Lídia, logo foi jogar com a aparente ingenuidade da menina. Estas talvez sejam as atitudes mais significativas ao longo do romance ao lado da aparente fuga estrategicamente pensada de Carmem para sua terra natal, libertando-se, em definitivo, do casamento desgostoso que se arrastava há anos. Digo aparente, porque há nessa situação uma série de elementos que não concluem a situação: primeiro, parece que seu marido, feliz ao extremo pela liberdade que representou a viagem de Carmem, cai na vida fácil para depois se arrepender das atitudes que põe em risco sua segurança mais simples, a de ter um teto onde morar. É insuficiente para Emílio, as andanças como caixeiro-viajante e vendo-se solteiro entrega-se ao mundo, como se ser livre estivesse condicionado a não dispor de fronteiras; o retorno para o vazio de casa, para a total ausência das regalias comuns da mulher, são elementos que apontam para uma espécie de arrependimento de ter permitido sua partida. Do lado de Carmem, o ódio pelo marido, se tornará em campo de perscrutação para uma reabilitação de suas origens – ela é espanhola e foi para Portugal meio que contra a vontade, sem nunca se adaptar ao país, e agora tem a chance de rever isso, mesmo que clandestinamente – mas, como o seu marido, estará de fato preparada para cuidar sozinha do filho e lidar com a condenação da mulher separada? Esse impasse conduz o leitor para, ao menos duas interpretações: primeiro, os dois se reconhecem como sujeitos interdependentes e se reconciliam; segundo, Carmem dá total forma ao seu sonho de mulher solteira e liberta-se da leva de desaforos de Emílio.
Se Lídia e Maria Cláudia são apresentadas como tipos cuja emancipação de sua condição feminina coloca as duas personagens em situação de libertação bem acabada, constituindo-se, desde já, em perfis de uma nova identidade da mulher em meados do século XX, Carmem é situação em intermédio. Isto é, aquela que permaneceu privada da igualdade civil e jurídica, da participação individual nos trâmites sociais, presa ao pequeno mundo doméstico da família, como espécie de representação do contingente humano assujeitado e adaptado a essa situação, como são Rosália, Amélia e Cândida, por exemplo, personagens que comentarei um pouco mais adiante. Pior que toda essa condição em que vive é ver-se, depois de sua partida, na dependência da condição de submissa quando lhe bate arrepios de arrependimento pela atitude tomada.
Esse diagnóstico da situação enfrentada por ela é também o caso das mulheres que não saem do destino imposto a elas: Justina, por exemplo, até ensaia um ato de emancipação do seu corpo feio, magro, caquético, mas se num primeiro momento ela afugenta o homem e se mostra determinada a não ser seu objeto de manipulação, numa segunda ocasião não lhe resiste e, movida mais pelos anseios carnais, há muito adormecidos e agora postos em tentação pelo assalto dos desejos sexuais do marido, entrega-se aos deleites da dominação sexual. Justina encarna o tipo mais dramático do romance – não apenas porque se sente intimidada pela decadência do próprio corpo, mas pela incapacidade de ser mãe, desde quando perdeu, levada pelas bexigas, sua única filha, Matilde. Casada com Caetano, ela é obrigada a conviver diariamente com essa situação revivida no desprezo que seu marido nutre por ela: “Quando ela, na cama, no acaso dos movimentos, lhe tocava, afastava-se com repugnância, incomodado pela sua magreza, pelos seus ossos agudos, pela pele excessivamente seca, quase pergaminhada. ‘Isto não é uma mulher, é uma múmia’, pensava.” (p.162); “Justina via-lhe o desprezo nos olhos e calava-se. Dentro de si, o fogo do desejo apagara-se. Retribuía o desprezo do marido com um desprezo maior.” (p.162); “Caetano, levado pelo seu temperamento exuberante e colérico, a tratava mal por palavras e comparações, fazia-o calar com uma simples frase.” (p.162); “entre ambos, o silencia era a regra e a palavra a exceção. Por isso, nada mais que sentimentos gelados e olhos distantes preenchiam o vácuo das horas passadas em comum.” (p.163).
Rosália, Amélia e Cândida são tipos da mulher de família; Cândida, entretanto, será retirada dessas observações, mas depois comento sobre ela noutro grupo desenhado por Saramago em Claraboia. Amélia, por exemplo, até possui um status financeiro que lhe faz independente de ser submissa a qualquer homem, tem uma vida social dedicada a um negócio semi-industrial, mas está igualmente a Rosália – e por que não a Carmem e Justina – presa no seu reduto familiar. Mais que isso: por sentir-se a responsável direta pela casa, ela incorpora o perfil da mulher independente que tomou para si alguns dos estereótipos masculinos ou o que de mais desagradável é patente na identidade feminina. Da primeira característica, mantém uma vigilância vigorosa sobre as duas sobrinhas, sendo capaz, do tipo mais estapafúrdio de atitude em fazer valer suas suspeitas de que as meninas deram um passo fora da retidão de moças. Castrada sexualmente e de certo modo entregue a uma ociosidade por sua posição semiburguesa, Amélia é condicionada aos males mais perniciosos de seu tempo: a alcovitice e um poder de vigilância e dominação sobre os corpos em libertação. E aqui está o pior de sua condição feminina. Amélia aparece totalmente presa a tradicionalíssima visão binária das atribuições concedidas ao homem e à mulher: a ele, está a força decisória e sua capacidade de agir em liberdade sem quaisquer subterfúgios, a ela a obediência, a reclusão, a submissão e incapacidade de ter sua liberdade estando esta condicionada sempre ao outro de maior vivência, de maior saber.
Bem, entre esses dois polos ensaiados pelo autor – o das mulheres em emancipação e das submissas – apresenta-se uma terceira via, que vai vigorar na caracterização de outras personagens femininas, por exemplo, depois de Levantado do chão: a das mulheres conformadas – o termo é utilizado aqui não no sentido de passividade decorrente da submissão, mas no de conformidade com um ideal de novo feminino. E aqui, recupero Cândida e a mulher de Silvestre; a primeira tenta a todo custo convencer a irmã Amélia sobre o ridículo papel de vigilância sobre as sobrinhas. Tem convicção de que a liberdade individual é uma condição que deve ser integralmente respeitada; que o pior preconceito sobre o ser fêmea é quando a própria mulher fere essa legitimidade pela qual todas elas tanto anseiam. Ela e a mulher do sapateiro nunca são vistas envolvidas em luta ou armada por voz ou espaço. No caso de Mariana, ela tem igual participação nas decisões tomadas para a ordem de casa; notemos, quando surge o interesse do marido em dispor de um dos quartos da sua residência para aluguel – é esta uma ideia pensada conjuntamente guiando-se pelo lema “uma mão ajuda a outra” que será recorrente em personagens mais desenvolvidas na literatura saramaguiana, e aqui estou pensando em nomes como Blimunda em Memorial do convento ou a mulher do médico em Ensaio sobre a cegueira, para citarmos duas das mais significativas mulheres criadas pelo autor. Mariana não é espelho do marido – os dois têm suas diferenças acentuadas ao longo do romance, às vezes até pela ponta de uma discussão mais acalorada. Isso equivale dizer que ela não pactua da ideologia dominante, ela dispõe do seu lugar e não abdica; assim como não está submetida ao marido, também não está submetida a outros domínios castradores, como a beleza e a culpa por não ser mãe, por exemplo. Ela reforça o perfil feminino idealizado em Saramago, aquele que compreende ser pela cordialidade, pelo diálogo, pela posição igualitária, a saída para qualquer cerco ou submissão; sequer chegar a se privar de suas liberdades em detrimento das escolhas de alguém situado acima de si.
De igual modo, não podemos deixar aqui de notar que aquelas mulheres que ocupam no romance um estágio gerúndio estão no limite de alcançar esse lugar onde já chegaram Cândida e Mariana. Isaura segue essa busca através leitura: lê livros que ensaiam outras possibilidades de libertação e compreensão do corpo feminino como notei acima. Mas, ao contrário da viúva de Terra do pecado, que também é leitora instruída, a personagem de Claraboia vai encontrar-se como mulher na libertação do seu corpo, libertação essa concretizada na relação homoafetiva que experiencia com a irmã Adriana, a que busca também uma descoberta de si através de outro plano, o da escrita. O ato de encontro dos corpos intermediado pela citação direta da cena de lesbianismo em Diderot tem um desenho estético bem elaborado, embora a ingenuidade do narrador não lhe permita construí-la a ponto de alcançar o momento ímpar que atinge em O ano da morte de Ricardo Reis ou O evangelho segundo Jesus Cristo, dois romances cujo projeto intertextual é bem acabado – e aqui, evidentemente, estamos pensando na cena de amor entre Lídia e Ricardo Reis construída pela poesia do próprio heterônimo de Fernando Pessoa e a cena entre Maria de Magdala e Jesus permeada do sensualismo erótico do livro bíblico Cântico dos Cânticos.
A leitura e a escrita desempenham no romance o papel elementar no processo de construção da emancipação das mulheres. O gesto de fechamento da introspecção, representado nas duas atitudes é propício ao encontro do corpo pelo corpo, à mulher reconhecer-se como sujeito liberto. Essa constatação tem um sentido que ultrapassa o limite do romanesco. Se perscrutarmos a história das mulheres reencontraremos esses dois gestos como fundamentais para a construção de suas identidades; territórios eminentemente construídos pelos homens, a elas sempre foi negado o direito aos livros e à escrita. É por debaixo da proibição que ela comporá suas próprias formas de aproximação a esses dois lugares – seja na leitura às escondidas, seja na composição de uma escritura fajuta, porque em grande parte as mulheres tiveram de escrever como homens para serem publicadas. De certo modo é nesse instante da história que se constitui, enfim, os primeiros traços de sua formação identitária. Construção discursiva, a identidade feminina bem como uma história da mulher e sobre a mulher só foi possível graças à leitura e à escrita – dois gestos que foram para elas os propiciadores de uma revolução quanto às maneiras de ser e estar no mundo.
No caso das duas personagens de Claraboia, a leitura e a escrita ao permitirem esse ato de revisão de si e do mundo à sua volta conjuga na formação de um dos temas mais perscrutados pelo escritor português: a necessidade de olhos quando todos parecem estar tomados de uma cegueira coletiva que os impede de ver as coisas. Claraboia: o significado para o ato da visão. Novamente as personagens Blimunda e a mulher do médico são representações únicas nesse processo de ver para reparar, rememorando aqui o texto que epigrafa a abertura de Ensaio sobre a cegueira. Desse modo, assim como no esquecido romance de estreia de José Saramago, este também situado no instante de formação da sua escrita já antecipa, ou faz desde sempre, determinadas questões que serão perquiridas ao longo de sua literatura. De maneira que não é de se estranhar que a voz emissora deste Claraboia, assim como em Terra do pecado, não trai a tonalidade ficcional do escritor. O ato de exposição em favor das mulheres fragilizadas por uma sociedade perversa e a tentativa de captar pelos seus gestos e pelos seus dramas o fundo de suas existências no intuito de arriscar a decifração dos seus enigmas e do interdito são ações comuns a todos os narradores saramaguianos que circulam em íntimo trânsito, de um para outro romance, com a mesma naturalidade e certeza: a necessidade de fazer delas uma via de acesso a uma nova possibilidade de existência.
No caso específico de Claraboia, o romancista é ainda fortemente influenciado pelos gestos realistas e espera pela atenção para com as mulheres, expor seus reveses, de compreendê-las na sua raiz. Não se contenta no retrato de um tipo específico, mas quer todas as possibilidades, como se dissesse que o processo de elaboração identitária não é fixo nem regular, mas móvel e irregular. As mulheres desse romance constituem em tipos de aprendizagem do romancista português acerca das formas ficcionais, isto é, estão nelas a base que se revelará nas personagens dos romances seguintes. Mas, não se restringe a isso; quer o escritor dá a conhecer um período desse longo processo de emancipação da mulher e, para isso, as mulheres aqui também se constituem em circunstâncias muito plurais da condição feminina em determinado momento da história portuguesa. Já procura, José Saramago, captar nas malhas da história, os matizes ideológicos disseminados imperceptivelmente sobre a mulher.
Referências
OLIVEIRA NETO, Pedro Fernandes de. Retratos para a construção do feminino na prosa de José Saramago. Curitiba: Editora Appris, 2012.
SARAMAGO, José. Claraboia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
______. Memorial do convento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
______. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
______. Terra do pecado. Lisboa: Caminho, 1997.
______. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
______. O ano da morte de Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
[1] Este texto foi apresentado como comunicação durante o XV Seminário Nacional/ VI Seminário Internacional Mulher e Literatura realizado em Fortaleza, Ceará, entre os dias 12 e 14 de agosto e marca um retorno ao estudo publicado em Retratos para a construção do feminino na prosa de José Saramago em vias de uma segunda edição do texto.
[2] Como as citações referentes ao romance foram todas retiradas de uma mesma edição da obra, preferi numerá-las daqui para diante apenas pelo número da página em que se encontram.