Dogmasmático – Número 112 – 09/2013 – [159-161]

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Sem título [René Magritte] – 1967.

“O Homem sabe que ele está no tempo por saber de antemão que irá morrer. A morte é a saída do tempo, como se somente á distância o conhecimento fosse possível”.

Georg Picht in Hier und Jetzt, Philosophieren nach Auschwitz und Hiroshima, Tomo I, Stuttgart 1980, p. 14

“Se víssemos bem o que vimos, seria sempre igualmente conhecido; mas o vemos de maneira totalmente diversa do que é. Assim, os verdadeiros filósofos passam a vida a não acreditar no que vêem, e a tentar adivinhar o que não vêem, condição esta, a meu ver, não muito invejável”.

Bernard de Fontenelle in “Diálogos sobre a pluralidade dos mundos”, p. 48

Roçava o indicador nos lábios, de cima a baixo, de um lado para outro, como se aquilo desse algum prazer secreto. A maciez do pomar, para ele, era a mesma quando deslizava sobre as teclas redondas da máquina de escrever ou os botões da camisa. Era uma mania descaracterizada e ausente, na qual nem as extremidades lhe bajulavam o ego. Faltava aquele fazer crer simplificado, aquela aspereza típica da sujeira – não o negrume denso, carregado, mas a sutileza que proporciona deslizamentos, espécie de atrito reduzido entre as partes. Era assim e não de outra forma que se punha a escrever pensamentos, chamuscações de um coração febril de produção por decantação – um modo complexo de uma mesma e única bajulação.

De quando em quando, exasperava um desespero por preenchimento, tal qual uma falta de ar, um corpo em chamas atravessado pelos vieses do tempo a se debater, em ânsia, por um minuto de esquecimento. Reprimia o grito como se fosse uma questão de atribuir à vontade, a legítima superação e crescimento de si, que a este momento ficava inchado em ulcerações pavorosas. Somente quando se lançava por dentro de algo dele mesmo, num ele mais ele ainda, cujo fundo parecia jamais ceder é que a paz dos altos povos voltava a figurar na linha miúda do seu ser. Adoecia lentamente como um porco chauvinista.

Quando aquilo nele passava, ele se acreditava livre de qualquer mal, imbatível como uma rocha a proferir memórias e saberes cultivados em seu interior, com ímpeto de marechal de campo, até o sono vir e derrubá-lo acordado, nos pensamentos cíclicos que os povoava. Quase não falava. Retornava àquela sensação das extremidades ásperas, latejantes à simplicidade e satisfação, como se houvesse pisado pela primeira vez em solo, como se tudo fosse senão um conjunto de solos amarrados um no outro, um começo outro precedido pela alegria de se lembrar o certo e o errado. “Un homme, un géant qui naviguent à travers le fleuve” Un Fleuve. E ele a sentir a atenção de uma pedra porosa em pleno fluir do tempo nele. Era no papel que o tempo o absolvia. Era no papel, inclusive, onde o tempo o punia, sob o aspecto de uma insuficiência letal. Encanto e desencanto num só nó.

Por fim, ele era aquele ponto descrito e não descritível, nomeado e inominável: Augusto, aquele que contempla e é frágil e feio e bobo. Mas que no último instante consegue sentir-se vencedor, sem a qual nada daquilo faria sentido. Os confortos morais e materiais proporcionados pela vida em comum não respondiam pela sensação triunfante, naquele travar de olhos tão secretos com a morte, o inteiro Ocidente que o fazia odiar aquilo que não o agradava e existia para ameaçá-lo de extinção. Talvez daí decorra a estranha sensação de incerteza a cada vez que estava diante de alguém que como ele poderia desestabilizar a serenidade encontrada. Que mais precisava, senão de um espelho e muitos cabides (e algumas malas)? Isso repercutia numa persistência irrefreável a que custo fosse, das olheiras ou fígado, pois se não estava impecável, era sinal de recomeçar outra vez. Comedido, seguia o hábito, na segurança que tinha um endereço e um nome: o silêncio. Por que aquelas tantas pessoas ali estavam para quebrar o veludo azul de seu pacífico oceano?

Augusto não gostava de se firmar como alguém diferente daquilo que estava acostumado e que jurava de pés juntos ser. Sua ilha particular o protegia, fazendo-o um grande esquivador de encontros que o punham em perigo. Ele já tão em perigo perigoso…temia não mais aguentar a responsabilidade das consequências, o destino o condenando a ser algo pelo qual não saberia responder, pelo qual nunca mais regressaria. Por conta disso, quando ia às lojas, optava pelo mais durável possível. Juntava tudo para sofrer de uma vez só, esperando voltar ao intemporal de sua caverna com as sacolas cheias. Em meio ao estado de sítio diário fora disciplinado a resguardar e aguardar o tempero que reagisse melhor, de maneira superior aos demais,para depois poder consentir a sua escolha para o retorno, tal qual pudesse com isso pôr uma baliza no cosmo. Pensamento e comportamento: dois componentes mortíferos do seu laboratório, por onde a razão insurgia colocando-o no caminho do prazer científico a fim de melhor preparar-se para o que verdadeiramente agradava: o belo e o eterno. Endereços de um mapa carcomido, cujo dono luta pela não-dissolução com uma garra de se ver sangue, medo e morte. Podemos vê-lo apavorado tentando aperfeiçoar o laço que o agradasse, com o nebuloso receio de que um laço deste tipo pudesse não ser mais feito, por mera falta de capacidade em suas mãos ou ao abandono dele pela memória. A necessidade de resguardar “o antes que” das coisas. Às últimas consequências: a pureza do visível defendida pelo profeta. Passos firmes, botas de couro: o polegar apontando os lábios, o corte de fazer doer qualquer sonho. Tolinho.

(Inspirado livremente no filme ” Der Philosoph” (1989) de Rudolf Thome.)

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Filippi Fernandes

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.