As mobilizações de junho, o público e seus problemas – Número 107 – 07/2013 – [121-124]

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Em livro publicado no final dos anos 1920, intitulado O Público e seus Problemas, o filósofo pragmatista americano John Dewey destacava o quanto a ideia de público havia se tornado central no mundo contemporâneo por sua conexão direta com o debate democrático. Afinal, em um contexto marcado pelo predomínio da sociedade industrial – chamada por ele de “Grande Sociedade” –, com seus públicos cada vez mais complexos e plurais, as problemáticas da deliberação e da comunicação pública se convertiam em elementos essenciais para pensar a questão democrática, que não podia mais se reduzir única e exclusivamente à dimensão do voto.

Em uma formulação crítica ao elitismo da tradição liberal que desconfiava da participação das massas nas decisões públicas, Dewey evidenciava a necessidade de uma deliberação pública contínua na busca pela construção do bem comum. Nesse sentido, refletir sobre o público e seus problemas se colocava como a tarefa premente para os analistas e para os diversos segmentos sociais interessados em compreender e enfrentar os embates que se apresentavam naquela quadratura histórica específica.

A tomar pelas manifestações que ocuparam as ruas do Brasil no mês de junho – e que, aparentemente, se estenderão julho adentro –, o diagnóstico de Dewey acerca dos embates em torno da questão do público e de seus problemas como elementos centrais da vida contemporânea permanece atual. Se analisarmos as mobilizações que eclodiram pelo país em diferentes momentos – desde seu início com as lutas contra o aumento das passagens de ônibus em algumas cidades específicas, com destaque para São Paulo, passando pela sua expansão para outros contextos, até alcançar uma dimensão nacional, levando os executivos e legislativos a se posicionarem frente às demandas colocadas pela população –, veremos que a questão do público esteve fortemente presente, manifestando-se de distintas maneiras. Se não, vejamos.

Os atos contra o aumento das passagens de ônibus organizados pelo Movimento Passe Livre (MPL) em São Paulo, que deram início às mobilizações, tinham como bandeira principal, em grande medida, a questão do transporte público. As reivindicações do movimento diziam respeito não somente à questão do passe livre, mas à própria forma de se pensar a questão da mobilidade urbana nas grandes metrópoles e nas cidades médias. O que estava em jogo para os manifestantes que iniciaram as mobilizações de junho era a problematização de um determinado modelo de cidade, que tem nos carros particulares sua forma capital de circulação, em detrimento do transporte público. Esta demanda foi claramente resumida em um dos cartazes empunhados pelos manifestantes: “país rico não é aquele que pobre anda de carro, mas aquele em que rico anda de transporte público”. A questão de fundo no primeiro momento dos protestos, portanto, se vinculava à defesa do transporte público, gratuito e de qualidade como condição fundamental a garantir o direito à cidade, concebida como bem público.

Muitos especialistas têm sido unânimes ao diagnosticarem que as mobilizações de junho ganharam novos contornos e magnitude como decorrência da repressão brutal da polícia militar paulista sobre os manifestantes e jornalistas. Após este acontecimento – que foi, inclusive, objeto de críticas da mesma imprensa que anteriormente estimulara a coerção –, novas manifestações eclodiram pelo país, impulsionadas, pelo menos no primeiro momento, em solidariedade àqueles que sofreram com as balas de borracha, as bombas de efeito moral e o gás lacrimogêneo lançado pelas forças da ordem. Nesse segundo momento, a questão do público se manifestou a partir de outra perspectiva, qual seja: se tratava agora de garantir o direito à fala pública. A repressão de uma polícia despreparada e violenta contra aqueles que desejavam manifestar pacificamente mobilizou as pessoas a lutarem pelo direito a discursar no espaço público, condição sine qua non da vida democrática. Tratava-se da reinvindicação pelo direito de ocupar o espaço público, concebido como local por excelência de produção de imaginação e construção de reivindicações pela defesa e expansão de direitos.

Um aspecto interessante a ser destacado é que o sucesso do movimento nas diferentes cidades no sentido da obtenção de sua agenda de reivindicação – a redução das passagens – contribuiu para evidenciar como que decisões relacionadas às políticas públicas – ao contrário do que quer fazer crer o discurso tecnocrático – não são apenas técnicas e guiada pela lógica das planilhas elaboradas por especialistas, mas são, acima de tudo, decisões políticas. Por serem decisões políticas e não somente técnicas, elas não podem ser tomadas de “cima para baixo” por um corpo de tecnocratas portadores de um discurso aparentemente neutro, cabendo aos cidadãos somente acatá-las. Pelo contrário, elas devem pressupor a publicização das planilhas e das decisões, bem como um debate público com a população para que esta possa, a partir de um diálogo democrático, estabelecer as prioridades das políticas públicas, que beneficiem o máximo possível de pessoas.

Após a repressão da polícia, as manifestações entraram em um terceiro momento, marcado pela expansão das pautas de reivindicação para além da questão da redução do aumento das passagens. A experiência para muitos, diga-se de passagem, inédita da ocupação do espaço público como lugar de encontro coletivo para a reivindicação estimulou a proliferação de vozes polifônicas portadoras de discursos fragmentários, que ocuparam as ruas da cidade empunhando cartazes com toda sorte de palavras de ordem. Muitas dessas vozes eram progressistas, algumas conservadoras, poucas reacionárias. Todas elas travando disputas nas ruas e promovendo a modificação do imaginário político e social, assim como das estruturas da sociedade que pareciam até então bem estabilizadas e legitimadas após mais de duas décadas de vida democrática no país. O que importa ressaltar é que, a despeito das divergências dos gritos que ecoaram pelas ruas, é possível dizer que a grande maioria reivindicava a melhoria dos bens públicos – como saúde, educação e transporte –, que permanecem, a despeito de avanços substancias ao longo dos últimos anos, em situação precária.

Se não restam dúvidas quanto ao fato de que a vida da população melhorou significativamente ao longo das últimas décadas, também não restam suspeitas de que os bens públicos não acompanharam este caminhar. Fruto da mobilização popular e da pressão de diversos movimentos sociais, a Constituição de 1988 foi pródiga não apenas em efetivar esses bens públicos, mas em fornecer um programa e uma agenda para o fortalecimento e expansão dos mesmos. Contudo, e isso é importante perceber, eles se viram afrontados, de diferentes maneiras, na década de 1990, frente à ofensiva das políticas neoliberais. Nos anos 2000, este quadro começou a se alterar, embora valha ressaltar que esse movimento venha se dando de maneira muito tímida para dar conta de superar as diversas mazelas relacionadas aos bens públicos. Nesse sentido é que se pode dizer que as vozes que gritavam neste terceiro momento pela melhoria dos bens públicos pressionavam para que o processo de melhoria material que se verificou com o aumento do poder de consumo das diversas fatias da população na última década se somasse à interrupção do processo de precarização e, em alguns casos, de privatização, desses bens públicos, entendidos como elementos fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa e democrática.

Mesmo os gritos contra a corrupção, que ganharam força neste terceiro momento das mobilizações, podem ser lidos na chave do público e de seus problemas. Ainda que muitos dos reclames relacionados à corrupção sejam abstratos e, em certo sentido, inócuos – por não trazerem como corolário o necessário enfrentamento ao sistema de financiamento de campanhas por empresas, principal fonte da corrupção que assola o país –, é um erro considerar a agenda da ética na política como conservadora per se. Ao se vincular diretamente com a questão do público, a luta contra a corrupção não apenas pode, mas deve entrar na agenda da esquerda, configurando-se como um dos elementos fundamentais para a formulação de uma agenda democrática e republicana. Dessa maneira, a demanda pela publicidade junto à gestão pública é progressista, na medida em que ela contribui sobremaneira para o fortalecimento do interesse público e, consequentemente, para o robustecimento da própria vida democrática.

Outro aspecto relevante a ser mencionado é o de que as manifestações que tomaram as ruas do país no mês de junho podem trazer contribuições significativas no sentido de pensarmos a democracia a partir de uma embocadura teórica e prática próxima àquela sugerida por Dewey, no livro acima mencionado, O Público e seus Problemas. Trata-se, em grande medida, de pensar este sistema não somente pela lógica das eleições e da representação, mas também a partir de uma dimensão participativa, que tenha como cerne as ideias de deliberação, cooperação social, comunicação e vontade pública. A Carta de 1988, ao trazer em seu núcleo as noções de representação e participação como dimensões complementares e não antagônicas da democracia, já fornece um programa propício para que possamos avançar no fortalecimento dessa ideia de vida democrática que tenha como horizonte normativo uma dinâmica institucional que combine eleições para os cargos representativos entremeadas da participação constante da população na deliberação e na resolução conjunta e dialógica dos problemas públicos de suas localidades e do país.

À guisa de conclusão, importa destacar que as mobilizações de junho que tomaram as ruas do Brasil não foram restritas ao país, fazendo parte de um movimento mais amplo, em escala global. A tomar as manifestações que ocuparam o Zuccotti Park, em Nova York, a Praça Tahrir, no Cairo, a Praça Taskim, em Istambul, entre outros parques e praças pelo mundo, testemunhamos um movimento cosmopolita, ainda que fortemente ancorado nas realidades nacionais, voltado para a construção de novas agendas em torno do público e de seus problemas. Olhando de uma visão panorâmica, o Brasil, tendo como referência a Constituição de 1988 e impulsionado por esta onda de mobilizações, parece estar bem situado neste movimento transnacional, com todas as potencialidades para se inscrever nesta agenda global de defesa e ampliação do público.

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Fernando Perlatto

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.