para Sara Ramo Affonso
Acredito que as revoltas de Junho devam ser entendidas como uma forma, bem sucedida em alguns sentidos e frustrada em outros, de ocupação.
Há algum tempo o sentido determinado da ‘ocupação’ havia nos fugido. Digo isso em função do movimento que antecede as revoltas de Junho que é aquele da tomada dos prédios de reitorias de algumas universidade brasileiras, em especial as da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal Fluminense. De certa forma, o que começa lá só se conclui agora. Sim, sabíamos do que se tratava, mas não sentíamos bem, logo a cognição restava incompleta. A ocupação é um fenômeno desagradável, basta que pensemos em um país ocupado por um inimigo. Por mais que se ocupe por amor, e a ambivalência é um dos principais problemas da política, transita-se, nela, pela inimizade e pelo conflito.
O movimento occupy ensaiou nos mostrar o sentido da ocupação, mas falhou. Nele algo prêt-à-porter nos oferecido a sentir, mas sabíamos que o que se fazia em Wall Street era um passeio do parque. Ele serviu para que os vaidosos tivessem suas frases repetidas, mas não era ocupação, foi divertido às revistas de esquerda, às editoras, mas não havia risco, ocupação não era: tratava-se de feira de livros.
Ocupar não é ficar, é sair e retornar. É sair e ficar.
Mas tivemos Junho. Nunca se tratou de um movimento por passagens. Apenas se tornou um movimento por passagens no momento de dizer que havia terminado. Era um movimento, não era sobre nada. Por que se ocupa? Por nada! A questão não é o porquê, mas o que ocupar. Tivemos Junho (que como as festas do mês, faz mais sentido em Julho, pior para os que se apressaram a escrever) e o sentido completo pôde ser sentido. Gostaríamos de dizer que ocupar é a habitação de prédios públicos, ou fazer público o mortificado. No primeiro caso se trata de fazer presente-ausente; restar espectral na Assembléia – por que não ter como objetivo o Palácio da Guanabara? – e de lá não sair mais. Sim, voltar para casa, no caso dos que têm, mas guardando a certeza de que se retornará se for preciso. Não é preciso ficar muito tempo, ou quebrar alguma coisa, necessariamente, mas é o caso de que o mandatário veja fantasmas, que ouça vozes, perceba vultos: este horror é o lá cívico. É isso a ocupação, tendo sido, permanecer lá.
Falar a favor ou contra é irrelevante. Até porque é bem provável que ocupemos pelos piores motivos, podemos nos enganar e tudo concernir a pagar menos pelo carbono, e poderíamos ocupar em virtude da dizimação dos povos indígenas. Mas não se pode falar a favor ou contra o fantasma na Assembléia. Pode-se, no máximo, saber que, para quem mora na casa, dar muita confiança a ele produzirá imobilidade administrativa e não dar nenhuma o fará entregar desagradáveis provas de existência. É imprudente, podemos rapidamente perceber, permitir que um mandatário habite uma casa sem fantasmas, acolhedora e sem modos de expulsão. Da mesma forma, não há ocupação pacífica, se ela for pacífica, exorcizada antes de assombrar, ora, não será nada; o terror faz parte dos fantasmas. Não se teme um fantasma que não possa fazer mal. Mas sabemos que um fantasma digno do nome, persegue objetivos afetivos e ocupa casas de respeito. Não há motivos para se quebrar uma banca de jornal ou nomes de rua: há motivos para quebrar bancos e nomes de ministros. Nada mais bonito do que uma cadeira usada pelo poder voando em chamas pela janela certa.
Mas se pode esperar a troca do molotov pelo moby dick? Que se pudesse perder a voz por ironia ou por amor? Que houvesse duas formas de interpretar as bombas de efeito moral? Que elas se fundariam numa moralidade antiga que se identificaria com o grito? Ou numa moralidade nova em que a oportunidade reflexiva levaria à continuidade do movimento de contestação? De que na primeira seria o caso de não dar atenção ao barulho, porque é tão velho quanto o grito a sua fragilidade? De que na segunda seria o de tomá-la como marca para a escavação? E que nada disso suprimiria o fato de que uma divertida bomba de efeito moral: nos colaria sentados discutindo sobre o que estamos fazendo? De que estaríamos apenas libertos na irreversibilidade que nos assujeita? Ou de que no fim estariam apenas os despojos daqueles que de tanta dor buscavam em algum lugar um ente para obedecer? E de que em não encontrando, por ressentimento, desterro, cansariam apenas quando vingados por sobre o copo d’água? Macerado e molhado? Mesmo que por fogo? E como deveria ser nomeada a salutar e paciente preguiça de desqualificar o pai? Ainda que ele seja mãe. Se de tempos em tempos é preciso tirar o pai de lá: Para que lá? Ainda que ele seja mãe.
A ocupação depende, em alguma sorte, da suspensão do princípio de ordem, e há muito mais coisas do lado de baixo do que sonhamos. Algumas desejamos, sabiamente, que permaneçam contidas. Nem toda assombração é zombeteira. Mas ocupar implica conflito. Uma ocupação vigiada pela polícia, para que mantenha a segurança, não é nada, o nome disso é nada, a ocupação é contrária à polícia é contra a polícia, para poder ocupar, depois não. Como continuar vencendo a polícia? Como continuar ocupando? Eu não faço idéia. Ninguém disse que deveria ser fácil.
***
Cesar Kiraly