O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, assumiu, há algum tempo, posição de destaque na vida política nacional. É um dos protagonistas do crescente processo de judicialização da política no país, que compreende, entre outros efeitos, a cada vez mais recorrente e generalizada intervenção do STF nos demais Poderes. Muito já se criticou sua superexposição midiática e também é alvo de queixas o modo desrespeitoso com que confronta seus colegas do Supremo. Trajado com a fantasia de paladino da moralidade e algoz de políticos governistas, tornou-se ídolo da grande imprensa e de boa parte da classe média e alta conservadora, sendo apontado, inclusive, como o seu presidenciável dos sonhos.
Este artigo, no entanto, não visa a traçar uma biografia do jurista, que, por não ter origem nas camadas mais ricas da sociedade e por ser negro, ao menos em termos sociológicos se trata de uma louvável exceção nessa elitizada carreira. Tampouco se tem aqui a pretensão de aprofundar a discussão sobre a judicialização da política, ou sobre o desequilíbrio de poderes dela decorrente, com a agravante da falta de legitimidade eleitoral e de accountability, de controles externos.
Enfim, esta análise não se propõe a criticar medidas do Judiciário a partir de um olhar da ciência política, mas sim, de certo modo, a fazer a crítica do inverso. Nas fundamentações de seus julgamentos ou em declarações para a imprensa, Joaquim Barbosa se pronuncia recorrentemente sobre o funcionamento da política brasileira em geral com forte carga de preconceito e intensa reprodução de lugares comuns já freqüentemente reverberados pela grande mídia. Recentemente, expôs sua visão em detalhes durante evento acadêmico. É uma crítica a ela, a partir da ciência política, que se desenvolve no presente texto.
O evento em questão foi uma palestra a estudantes de direito no Instituto de Educação Superior (IESB), em Brasília, em 20 de maio de 2013. Na ocasião, Joaquim Barbosa defendeu o “voto distrital”[1], afirmou que os partidos no Brasil são “de mentirinha” e que o Congresso é submisso e não é representativo. Cada um desses pontos será refutado ou qualificado à luz dos conhecimentos acumulados pela ciência política, principalmente pela política comparada.
O ponto mais central é o tratamento pejorativo que Barbosa destina à política, sempre apresentada como prática impura, carregada de vícios e distante do desejável. A condenação da política, em vez de útil para aprimorá-la, é despolitizadora, pois direciona a mobilização e a atenção para uma crítica moralista externa a um debate ideológico e programático sério, justamente evitando-o. Além disso, há aí uma boa dose de “complexo de vira-lata”, em que a política nacional é culpabilizada como inferior, sem que seja realizado o procedimento óbvio para se chegar a tal conclusão: a realização de uma comparação séria com outros casos, com outros países.
Ao se apresentar os representantes do povo como não representativos e a política democrática como antro de podridão, legitima-se que o Judiciário, não eleito pela população e virtualmente imune a mecanismos de controle externo e de limitação sobre sua ação, assuma funções que não cabem a ele, e sim aos atores ora criticados. Além de uma óbvia ameaça à democracia, tal procedimento se embasa em uma crença problemática, que não resiste à análise empírica.
Ainda que não seja uma posição unânime, há relativo consenso de que partidos fortes são desejáveis em uma democracia representativa moderna, servindo como atalho informacional dos eleitores e como ator coletivo relevante para a mobilização dos cidadãos e para a elaboração de uma plataforma programática. Em outro “Breviário” (http://estudoshumeanos.com/wp-content/uploads/2012/10/2-263-273.pdf), foi tratada a importância dos partidos políticos para a democracia. No Brasil, o caráter consideravelmente personalista das campanhas e o grande número de partidos concorrentes reforça a imagem de sistema partidário subdesenvolvido e particularmente insatisfatório. O fato de a realidade estar distante do ideal, no entanto, não significa que os partidos brasileiros se destaquem, comparativamente, por não cumprirem bem suas funções.
A ciência política brasileira repetiu por muito tempo – eram quase um consenso até meados da década de 1990 – os lugares comuns hoje repercutidos na mídia e por Joaquim Barbosa. Acreditava-se que o fato de se adotar o sistema proporcional de lista aberta para a escolha dos deputados automaticamente levaria a uma política personalista de atores que buscariam individualmente o melhor para si mesmos, caótica e atomizadamente. Os partidos seriam pouco enraizados no eleitorado, incapaz de reconhecer diferenças entre eles.
A redução da identificação partidária do eleitorado (medida em termos de filiação, de preferência nas pesquisas, e de volatilidade eleitoral) não é um fenômeno especificamente brasileiro, e tampouco é algo restrito à América Latina. É, recorrendo-se à abordagem de Bernard Manin (1995), uma marca da mais recente metamorfose da representação política em todo o mundo. É vasta a literatura especializada que identifica e analisa o fenômeno nas mais variadas localidades do planeta. Para se restringir à menção a uma publicação, vale citar o volume editado por Russell Dalton e Martin Wattenberg (2000), “Parties without partisans”, cujo diagnóstico se aplica especificamente às denominadas “democracias industriais avançadas”, ou seja, àquelas nações onde, supostamente, na interpretação exclusivista de Joaquim Barbosa, não ocorreria tal depravação intrinsecamente brasileira.
Ora, mas o jurista não se limitou a constatar a perda de identificação partidária. Ele afirmou ainda que os partidos no Brasil seriam “de mentirinha”, sem preocupação programática, tratando-se de meros veículos para que seus líderes obtivessem poder. Igualmente numerosa, no entanto, é a literatura sobre uma diluição programática dos partidos em todo o mundo e submissão aos objetivos de poder de suas lideranças. Percebe-se, portanto, que se trata de outra acusação inconsistente de Joaquim Barbosa a uma peculiaridade brasileira que não existe.
São muitas as teorias sobre as transformações dos partidos, podendo-se mencionar entre as mais influentes a dos partidos catch-all (Kirchheimer, 1966), a dos partidos-cartel (Katz & Mair, 1995) e a dos partidos eleitorais-profissionais (Panebianco, 2005). As três apontam para uma diluição programática, com distintas ênfases no aspecto midiático, na estrutura social, na natureza simbiótica da relação com o Estado e no caráter instrumental para o sucesso do líder político.
Essa homogeneização entre os partidos, no entanto, não é consensual, como fica claro pela posição de outros estudiosos, que inclusive sustentam a permanência da diferença entre direita e esquerda, como é o caso, por exemplo, de Geoffrey Garrett (1998) e Carles Boix (1998). Pois os estudos mais consistentes no Brasil indicam, justamente, que os partidos atuam de modo disciplinado e coerente em sua atuação parlamentar no país, contrariamente à crença preconceituosa persistentemente disseminada. Esse foi o diagnóstico da clássica obra “Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional”, de Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi (1999), que inclusive perceberam, na análise empírica das votações na Câmara dos Deputados, coerência ideológica dentro do continuum espacial da esquerda à direita. Antes que se julguem os dados desatualizados, Timothy Power e Cesar Zucco (2009) chegaram a conclusão semelhante, uma década depois, já incorporando o governo Lula à análise.
Ao pretender impor uma supremacia do Judiciário como meio de contornar um suposto mau funcionamento do Executivo e do Legislativo, Joaquim Barbosa incorpora o governante-filósofo platônico e, como um alienígena vindo de Krypton, tenta salvar o país da assimétrica relação entre os dois Poderes. Barbosa, na palestra ministrada na capital federal, observou alarmado que menos de 15% das leis apreciadas pelo Congresso Nacional foram propostas por deputados ou senadores. No Parlamento, “inteiramente dominado pelo Poder Executivo”, as lideranças governistas fazem com que a maior parte do que é deliberado seja de interesse do governo e que poucas leis sejam de iniciativa dos próprios parlamentares, segundo ele denuncia, como se tratasse de grande novidade.
Desta vez, ele está correto, pois há sim esse predomínio do Executivo. A colocação da questão como se fosse um sinal de degradação da democracia ou de autoritarismo da Presidência, no entanto, requer uma qualificação. Fernando Limongi (2006) calcula que a taxa de dominância do Executivo no país desde a promulgação da constituição de 1988, isto é, a proporção do total de leis aprovadas cuja iniciativa é desse Poder e não do Legislativo, é de 85,6%. Há, portanto, plena convergência entre os dados apresentados por Limongi e por Barbosa.
Qual é, então, o reparo a ser feito no posicionamento do jurista? O equívoco é o de que ele ignora que não se trata de especificidade brasileira, e sim de algo também típico da maioria dos regimes parlamentares europeus. Limongi cita o trabalho de Loewenberg & Petterson (1979), que mencionam a chamada “regra dos 90%”: tanto a taxa de sucesso (o percentual de projetos de autoria do Executivo que é aprovado, o qual era de 70,7% no Brasil no período mencionado) como a taxa de dominância tendem a se concentrar em torno dos 90% na Europa parlamentarista. O que Joaquim Barbosa aponta como um problema brasileiro, portanto, é mais significativo nas democracias europeias do que no Brasil.
Pior do que o diagnóstico fornecido pelo presidente do STF, no entanto, é o remédio que ele prescreve. De acordo com Barbosa, as distorções do modelo político brasileiro – que neste artigo se buscou demonstrar serem inexistentes – requereriam urgente reforma institucional. Sua proposta começa pelo fim da obrigatoriedade do voto. Sem se estender sobre essa questão, vale mencionar que o voto facultativo não é o paraíso que pode aparentar: se tem a óbvia virtude de ampliar a liberdade de decisão do eleitor (incluindo a opção de ficar na praia em vez de contribuir para decidir os rumos do país), traz também riscos, como o da exclusão de eleitores sem preferências políticas intensas (fragilizando ainda mais o eleitor desorganizado e aumentando o peso de questões imediatistas com grande exposição midiática), e o de simultaneamente excluir a maior parte do eleitorado mais pobre e dependente do Estado e reduzir o custo da compra de votos (devido à redução do número de votos necessários para se eleger).
A outra faceta da reforma política advogada por Joaquim Barbosa, a defesa do sistema majoritário uninominal, por um lado, põe em cheque sua arrogada neutralidade (é, coincidentemente, o mesmo sistema eleitoral já defendido publicamente pela revista “Veja” e pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso) e, por outro, demonstra sua incompreensão do funcionamento das instituições.
O ministro havia apontado como um dos problemas centrais da democracia brasileira a falta de preocupação programática dos partidos e, como solução, aponta um sistema eleitoral em que candidatos personalistas com muitos votos localizados (inclusive por meio de clientelismo, que é facilitado pela redução da área de disputa por votos) sejam eleitos independentemente da votação dos demais candidatos do seu partido. No sistema proporcional, como o adotado no Brasil, há a agregação dos votos, isto é, os eleitos não são os candidatos individualmente mais votados e sim aqueles com maior votação dentro dos partidos que conseguirem – somando-se os votos de todas as suas candidaturas no distrito – percentual de votos suficiente para obter cadeiras parlamentares. Assim, no sistema eleitoral brasileiro, os candidatos dependem de uma boa votação dos colegas de legenda, o que incentiva maior coordenação partidária e convergência programática. No sistema eleitoral proposto por Joaquim Barbosa, por outro lado, os candidatos, uma vez lançados, só dependem de si mesmos, e podem adotar plataforma completamente distinta daquela do restante do seu partido, pois suas candidaturas são totalmente independentes umas das outras para efeito de possibilidade de vitória.
Joaquim Barbosa argumenta que, se adotado o sistema majoritário uninominal, os parlamentares teriam “mais representatividade”, com uma “representação clara e legítima”. Passados dois anos, segundo ele, no sistema proporcional, o eleitor se esquece de quem recebeu seu voto, enquanto que no outro sistema, se o país fosse dividido em 513 distritos, cada cidadão votaria em quem conhece. Este último ponto é uma falácia facilmente observável: além de os eleitores também se esquecerem de qual foi seu candidato a deputado em países que adotam tal sistema nas eleições parlamentares, como os Estados Unidos, é falso que o eleitorado brasileiro se lembre com precisão em quem votou para prefeito, governador ou senador – e nessas votações é usado exatamente um sistema eleitoral majoritário, tal como o proposto pelo ministro do STF para ser adotado também na votação para a Câmara.
Além disso, cabe perguntar ao jurista o que ele chama de “mais representatividade” e “representação legítima”. Sistemas proporcionais, como aquele adotado no Brasil e que ele pretende ver abandonado, são caracterizados por representar as diferentes correntes de opinião da sociedade e por não excluírem nem sub-representarem minorias. Sistemas majoritários, por outro lado, tendem a aumentar a personalização e por despolitizar as disputas eleitorais, como bem observa Domenico Losurdo (2004), além de induzirem a maior homogeneização entre os partidos e à concentração da disputa entre duas forças de caráter centrista. Seria isso mais legítimo ou representativo? Joaquim Barbosa deseja que o sistema político brasileiro se torne mais excludente e que os eleitores tenham menos opções? É preferível acreditar que ele, simplesmente, não sabe como funcionam as instituições que critica ou defende.
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Guilherme Simões Reis
Referências
BOIX, Carles (1998). Political Parties, Growth and Equality: Conservative and Social Democratic Economic Strategies in the World Economy. Cambridge: Cambridge University Press.
DALTON, Russel J. & WATTENBERG, Martin P. (eds.) (2000). Parties without partisans: Political change in advanced industrial democracies. Oxford: Oxford University Press.
FIGUEIREDO, Argelina Cheibub & LIMONGI, Fernando (1999). Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. Rio de Janeiro: FGV.
GARRETT, Geoffrey (1998). Partisan Politics in the Global Economy. Cambridge: Cambridge University Press.
KATZ, Richard S. & MAIR, Peter (1995). “Changing Models of Party Organization and Party Democracy: The Emergence of the Cartel Party.” Party Politics, vol. 1, n. 1, January, p. 5-28.
KIRCHHEIMER, Otto (1966). “The transformation of Western European party systems”. In: LA PALOMBARA, J. & WEINER, M. (eds.). Political Parties and Political Developments. Princeton: Princeton University Press.
LIMONGI, Fernando (2006). “A Democracia no Brasil. Presidencialismo, coalizão partidária e processo decisório”. Novos Estudos, n. 76, p. 17-41.
LOEWENBERG, Gerhard & PATTERSON, Samuel (1999). Comparing legislatures. Boston: Little Brown.
LOSURDO, Domenico (2004). Democracia ou Bonapartismo: Triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro, UFRJ; São Paulo: UNESP.
MANIN, Bernard (1995). “As Metamorfoses do Governo Representativo”. RBCS, vol. 29, outubro.
PANEBIANCO, Angelo (2005). Modelos de partido: Organização e poder nos partidos políticos. São Paulo: Martins Fontes.
POWER, Timothy J. & ZUCCO, Cesar (2009). “Estimating ideology of Brazilian legislative parties, 1990–2005: A Research Communication”. Latin American Research Review, vol. 44, n. 1.
[1] Vulgarmente mencionado aos quatro ventos para se referir ao sistema eleitoral majoritário uninominal, o termo “voto distrital” é inadequado, pois todo sistema eleitoral é distrital, inclusive o sistema proporcional. Afinal, todos os métodos adotados em eleições utilizam distritos eleitorais, isto é, circunscrições onde os votos são computados e convertidos em cargos eletivos.