Humanismo e Literatura em Burke e Marx – Número 94 – 04/2013 – [31-35]

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Pode-se dizer que as filosofias políticas de Edmund Burke e Karl Marx, em linhas muito gerais, simbolizam ideias antagônicas – conservação e progresso. A escolha de autores tão distintos, porém, não é mero capricho, serve a um propósito bem definido: realçar, no interior do contraste entre ambos, aquilo que chamarei de “concepção literária da política”. Existem notáveis exemplos de interpretações políticas cujas fontes são poetas e escritores tout court, sendo o inverso também verdadeiro, mas a ideia principal deste ensaio consiste em considerar a possibilidade de as autorias política e literária se apresentarem de forma indissociável. Creio haver, em Burke e Marx, elementos de composição literária na raiz de suas obras políticas. Certa sensibilidade aguda de narrativa, com tons pessoais, impressões e juízos típicos da escrita literária e, mais especificamente, do Romantismo. Preocupações de ordem estética e de manipulação sintática e semântica figuram, em suas obras, não como ornamentos textuais, mas como estruturas textuais. Deterei-me um pouco nas particularidades de cada um, para que essa proposição não soe por demais generalista. Ao final do ensaio, tratarei de expor essas características, comuns ao estilo de ambos os autores, e que papel ela parece representar no panorama mais amplo da filosofia política.

Burke

Edmund Burke, o “famoso sofista e sicofanta[1]”, como o definiu Marx, reagiu, em suas Reflexões sobre a Revolução em França a um movimento pródigo em significados e características, mas fundamentalmente sustentado por raízes abstratas, isto é, fundado em uma fuga do curso vital, da trilha da natureza. Burke ataca a fantasmagoria dos conceitos puros, especulativos, saídos da Revolução – Igualdade, Liberdade, Fraternidade, os Direitos do Homem e do Cidadão, e tantos mais. Volta-se contra uma ontologia a-histórica e desumanizada, construída pela filosofia política do continente. Pelo Iluminismo do continente.

Burke considera que “Esses direitos metafísicos, ao penetrarem na vida prática como raios de luz atravessando um meio denso, são desviados, pelas leis da natureza, de sua linha reta”[2][i]. Os “direitos” dos filósofos revolucionários são elementos de intervenção no mundo, e no contato com a história, no momento da interação, assumem sua real significância, que para Burke, é sempre deformada e deformadora. Não são ferramentas de interpretação histórica, como em Weber, mas fazem História, ou melhor, intervêm, insidiosamente, no curso dos acontecimentos. Embora os conceitos políticos sejam concebidos como plenos de significado, eles não se encerram em si, não permanecem  retidos na abstração. No choque entre o conceito e o “mundo das coisas”, sua significância reabre-se, ele é transfigurado.  Quando o “tipo ideal” é hipostasiado pela engenhosidade filosófica, e deixa de ser somente uma ferramenta de interpretação histórica ou apreciação estética, tem-se a suspensão do processo histórico linear, e as consequências dessa interrupção são sentidas nas irrupções violentas das revoluções, em descompasso com o tempo natural e seu rastro de valores e institutos.

O uso da figura de linguagem da comparação, na citação acima, indica o caminho percorrido por Burke em sua crítica: o da palavra literária, conotativa, como instrumento de desconstrução. A palavra, em sua obra, é quase sempre referencial, simbólica, imagética. Como na passagem em que o autor acusa, alegoricamente, a França de “ter comprado miséria com crime(, p.73)”, ou na advertência hiperbólica de que “se a monarquia vier um dia a ser restaurada na França (…) será (…) o poder mais arbitrário já visto no mundo”[3]. Frans de Bruyns[4] chamou atenção, recentemente, para a influência central da obra de Shakespeare sobre o pensamento de Burke, mais especificamente de Macbeth, a tragédia da ambição corruptora, imediatamente associável, em Burke, à ambição revolucionária de Paris .

Mais do que recurso de convencimento típico da panfletagem ideológica, creio, como Bruyns, que o estilo literário é parte constitutiva da filosofia política burkeana. Nesse sentido, não haveria um núcleo de ideias, em cuja órbita gravitaria a lira. Não há fronteira nitidamente traçada entre estilo e homem, retomando o célebre aforismo do Conde de Buffon.  O espírito que anima a pena de Burke é exigente de janelas abertas entre vida e pensamento. Mal se afina com o conceitualismo puro, vazio de realidade, mas pleno de pseudo-significação. A letra conceitual é pretensamente soberana, a letra literária, discursiva. A polissemia da última é salutar, pois imediatamente correspondente ao curso vital – a maleabilidade da palavra como expressão direta do mundo sensível e suas contingências. O filósofo Nelson Goodman[5],  em oposição aos exageros puristas da crítica analítica, observou que as obras de arte não se esgotam  em si. Como atividade simbólica, ela é fraterna, no sentido de possuir, como função, a realização expressiva do homem, entendida aqui como suprimento de uma carência. Marx[6] caracteriza o homem como um padecedor, um ser dependente de objetos externos, e que por meio deles manifesta sua vida. O texto, assim, pode ser compreendido como realização e redenção, – catarse – e nessa perspectiva, o humanismo do estilo literário se distancia de uma filosofia que subjuga a história, e que se apresenta não como necessidade, mas como premissa da humanidade.

A ironia, as perguntas retóricas e frases de efeito em Burke manifestam sua Filosofia “orgânica”, por assim dizer. Se não criam, simulam uma intimidade, que não é exatamente entre autor e leitor, mas entre autor e mundo. Não há humanidade fora dos pactos. Entre vivos e mortos. Entre habilidade  e propriedade. Pactos de fidelidade entre o ser e aquilo que de fora o realiza. No interior dessa intimidade, surge uma Filosofia Política que não admite traições (“Mas a idade do cavalheirismo já passou[7]” eis o lamento de Burke) – e aí está seu conservadorismo.  Seu grande temor é a quebra, é a fenda nessa delicada xícara de chá, nessa intimidade, neste pacto, que pode levar ao pior dos mundos:  o do solipsismo.

Marx 

Há em Marx um progressivo desenvolvimento conceitual, envolvendo o sistema  hegeliano e sua crítica, no jovem Marx, e o conceitualismo de sua maturidade, d´o Capital. Muito já se escreveu sobre Marx como economista e filósofo e muito pouco como literato, o que é compreensível, levando-se em consideração seu acervo conceitual , seu sistema – mais-valia, infraestrutura, superestrutura, etc…É notável a distância em relação à estilística literária burkeana, e o predomínio da denotação em parte considerável de sua obra.

A letra estética, em Marx, encontra-se, pois, cercada pela herança hegeliana, de um lado, e pelas construções do Marx maduro de outro, e constitui o eixo de transição entre esses momentos. Na raíz, assim, nas fundações do sistema marxista, há a literatura, e a obra em que estão expostas essas raízes são os Manuscritos-Filosóficos-Econômicos, não apenas de forma alusiva, como nas citações a Shakespeare e Goethe. A própria composição do texto é atravessada por imagens de efeito catártico: “ o trabalhador (…)é, portanto, corpórea e espiritualmente reduzido à máquina – e de um homem [é reduzido] a uma atividade abstrata e a uma barriga”[8], “Na relação com a mulher como presa e criada da volúpia comunitária está expressa a degradação infinita”[9]. “Este encurtamento de duração de vida é uma circunstância favorável para a classe trabalhadora em geral”[10]. Tragédia, hipérbole e paradoxo.

Há como que duas camadas em sobreposição variante, a depender do momento, na argumentação de Marx, uma que critica a filosofia hegeliana de dentro, partindo de suas premissas e invertendo-as. Concentra-se na parte do caderno terceiro dedicada à crítica da dialética e filosofia hegelianas, mas atravessa, discretamente todo o texto. A outra camada é, por natureza, dispersa, e consiste no fundo lírico da crítica. No drama.  Nas cores vivas de sua representação.

Na primeira camada, Marx critica o positivismo do sistema hegeliano e sua condição acrítica, uma vez que nele a essência estranhada de si é confirmada, não em sua independência, mas enquanto integrante do sujeito, dependente dele. O mundo efetivo – moral, família, Estado, etc..-  é confirmado como “momento do movimento[11], sendo a verdadeira existência, portanto, a filosófica. O niilismo e a inviabilidade existencial do pensamento abstrato são reveladas, em razão de sua unilateralidade. As categorias hegelianas são usadas, engenhosamente, como Cavalos de Tróia, e é nesse sentido que a abstração passa a saber-se, como consciência, vazia, nula,  e por necessidade, renuncia a si e ao enfado eterno. A ideia faz-se natureza. A ideia sofre.

Na outra camada, entretanto, é que repousa o segredo da única fonte possível de ruptura radical com um sistema filosófico, uma ruptura de fora, proporcionada pelo lirismo de seu estilo. A forma de expressão que, pelas possibilidades elásticas da mimesis, serve de veículo à indignação imediata, orgânica, selvagem. Que simboliza sentimentos irredutíveis à formulação racional-filosófica, como observara Hume[12], e às condições matérias de existência, como observaria Marx. Sentimentos que animam a denúncia de Marx, de que “O animal se torna humano, e o humano, animal”[13] Ao abrir seu domínio à natureza, a literatura faz as vezes de mediadora  do compromisso entre filósofo  e mundo – entre Burke e a tradição, e entre Marx e o humanismo, ou naturalismo realizado.

A função simbólica da escrita marxista, entretanto, não poderia por si só, aproximá-la da função artística. Goodman reconhece que “to function as a symbol […] is not in itself to function as a work of art”[14]. Uma placa, por exemplo, de certo pode simbolizar muitas coisas, o que não a torna um objeto artístico. É necessária a aproximação a um ou mais estilos para que a simbolização deságue em obra de arte, e em ambos os autores, pelas características aqui descritas – remetimento aos sentimentos, nostalgia, hipérbole, entre outros – creio que não seria inadequado situá-los no raio de influência do Romantismo europeu dos séculos XVIII e IX.

Conclusão

M. H. Abrams[15], ao comentar as transformações ocorridas nos cursos de Letras americanos a partir dos anos 1940, observa que a literatura tornou-se um campo de saber defensivo, reativo aos ataques do pós-estruturalismo, no sentido de recusar a ideia de autoria. É, assim, como trincheira do humanismo – ou de seu simulacro – que ela se manifesta no interior da filosofia conceitualista.  É certo que o gradiente entre a literariedade e o conceitualismo abstrato é vastamente habitado. A ação, no entanto, orientada para um extremo gera reações extremas, o que explica, em parte, a polarização das posições aqui discutidas. Como que para reestabelecer certo equilíbrio perdido, evitando a entropia dos sistemas, Burke e Marx entregam-se, a certa altura de seu pensamento, à melodia encarnada da lira.

A literatura, em si, por bem dizer, não é sempre disruptiva, e pode mesmo apresentar traços pálidos e servis. Sobreposta, porém, ao fundo conceitual dos sistemas filosóficos, seus contornos humanísticos sobressaem, por mais inocente que se pretenda. Daí, a destruição de Genets, Flauberts, Dickens e Baudelaires, à temperatura de 451 graus Fahrenheit, na célebre distopia de François Truffaut, bem como em Huxley, Orwell, Burgess e outros ficcionistas. Daí o medo, nem sempre manifesto, mas sempre presente, como um dos fundamentos da literatura.

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Daniel Mano

Bibliografia

BENDER, Thomas; SCHORSKE, Carl (orgs.). American Academic Culture in Transformation. Princeton: Princeton University Press, 1997
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução em França. Brasília: Ed. UnB, 1982, p.90

GOODMAN, Nelson. Ways of Worldmaking. Indiana, EUA: Hackett Publishing Co., 1978

HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. São Paulo: Ed. Unesp, 2003
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Ed. Boitempo, 2004

DE BRUYNS, Frans. William Shakespeare and Edmund Burke: literary allusion in 18th-century British political rhetoric. In : SABOR, Peter, YACHNIN, Paul (eds.). Shakespeare and The Eighteenth Century. Aldershot, UK: Ed. Ashgate, 2008


[1] MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1983, p. 257

[2] BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução em França. Brasília: Ed. UnB, 1982, p.90

[3] Idem, op. cit., p. 178

[4] DE BRUYNS, Frans. William Shakespeare and Edmund Burke: literary allusion in 18th-century British political rhetoric. In : Shakespeare and The Eighteenth Century (Peter Sabor and Paul Yachnin (eds.). Aldershot, UK: Ed. Ashgate, 2008

[5] GOODMAN, Nelson. Ways of Worldmaking. Indiana, EUA: Hackett Publishing Co., 1978

[6] MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Ed. Boitempo, 2004

[7] BURKE, op. cit., p. 100

[8] MARX, Karl, op. cit., p. 26

[9] Ibid., p. 104

[10] Ibid.. p. 26

[11] Ibid., p. 130

[12] HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral. São Paulo: Ed. Unesp, 2003

[13] MARX, op. cit. , p. 83

[14] GOODMAN, op. cit. p. 67

[15] ABRAMS, M. H. The Transformation of English Studies. In: BENDER, Thomas; SCHORSKE, Carl (orgs.). American Academic Culture in Transformation. Princeton: Princeton University Press, 1997

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.