O Moinho da Dúvida Sistemática – Número 93 – 04/2013 – [26-30]

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O verdadeiro filósofo, dizem-nos muitas vezes, duvida de tudo que não se possa provar a partir de premissas absolutamente seguras. A filosofia começa com a dúvida, normalmente sobre certas proposições teológicas ou morais que até então ocuparam o posto de crenças; se for perseguida sistematicamente, levará o devoto a duvidar, por sua vez, da existência da consciência, do espaço, das relações, da lógica, do mundo externo, e da mente de outras pessoas, e este ceticismo pretensamente abriria o caminho para o conhecimento verdadeiro.

Mas, no altar da razão pura, agora tão pura de modo a estar vazia, encontramos uma nova doutrina tão fácil de formar quanto outra; podemos provar para a nossa própria satisfação, de acordo com nossas inclinações, a certeza completa do Espírito, ou da Matéria, ou de Categorias Lógicas, Mônadas, Egos, Essências, Impulsos Vitais, ou do Absoluto; entretanto, a prova mais convincente das nossas realidades não irá prevenir uma próxima pessoa de duvidar de todo o produto, efetuando as mesmas acrobacias mentais do ceticismo e da introspecção e da prova, e chegando a resultados diferentes. Todo pensador deve começar do começo não apenas do seu problema específico, mas do terreno inteiro do conhecimento. E, à medida que o conjunto de entidades estranhas aumenta, a empreitada de abertura de caminho torna-se cada vez mais onerosa, pois há mais e mais coisas cujas existências devem ser refutadas. Tudo que é possível de ser posto em dúvida deve sê-lo; e o pesquisador realmente honesto, percebendo que todos os filósofos antes dele foram lançados ao descrédito por muitas pessoas competentes, torna-se cauteloso, por fim, de acreditar em qualquer coisa, pois, não mais está satisfeito com a “autoevidência” de seus pressupostos. Ele refuta suas próprias ideias, e, finalmente, depara-se com a escolha entre manter crenças dogmáticas cegas, ou crença nenhuma – entre o ceticismo e a fé animal.

A única coisa da qual ele provavelmente nunca duvidou foi da virtude da dúvida sistemática. Que qualquer proposição existencial possa ser falsa é um truísmo. Mas isso não exclui a possibilidade de uma proposição ser necessária em um determinado universo do discurso, a saber, uma proposição que constate os conceitos essenciais, os termos e relações que compõem tal universo. Desses, todas as nossas proposições são compostas; e esses conceitos básicos, bem à parte de quaisquer dogmas a respeito de sua “realidade” ou “existência” metafisica, são as nossas premissas.

Aí reside a força de uma máxima como o “Eu Penso” de Descartes. Ela pressupõe o pensador. Portanto, “Eu não penso” seria uma afirmação abreviada, significando, na verdade, “Eu penso que eu não penso”. A noção de pensamento é inicialmente dada na suposição de “eu, o pensador”. É claro, Descartes não estava ciente dessa pressuposição. Em qualquer sistema, há certas noções que estão sendo usadas e, portanto, não podem ser negadas sem lançar todo o universo do discurso em um caos extremo. Tal noção básica é pensar (cogitare) em Descartes; e sempre que não estamos cientes do fato de que raciocinamos com termos pressupostos (como, é claro, sempre fazemos), proposições que os afirmam aparentam ser “autoevidentes”. Mas, aqui também está a razão pela qual provavelmente não há nenhuma proposição que irá parecer autoevidente para todas as pessoas.

Poderíamos dizer, desse modo, que é impossível duvidar das noções que estamos usando; e que, consequentemente, os filósofos que buscam estabelecer a “verdade” de suas premissas sempre recuam de termos e relações que acabaram de se notar que estão usando, para outros novos, inconfessos, que usam-nas para atacar os antigos. Assim, correm de um lado para o outro – e apenas isso, em última análise, é o processo da dúvida sistemática.

É inútil duvidar das suas premissas. Você pode apenas fazer um gesto de reconhecimento, a não ser que esteja disposto a dispensá-las e recomeçar tudo com um novo conjunto. Pois, quando duvidamos de uma proposição, ainda estamos pensando em seus termos, e quando a proposição é o estabelecimento desses mesmos termos, como o “Cogito” de Descartes, isto nos compromete em um círculo vicioso do tipo ?(?x). Dados os postulados que estabelecem o seu universo de discurso, você pode duvidar de qualquer proposição em seus termos, porque consiste apenas em uma de suas muitas combinações possíveis, e, se as suas premissas forem boas, então, haverá uma formulação correta para cada teorema; mas você não pode duvidar dos seus conceitos – você pode somente mostrar, pelo critério cartesiano da autoevidência, se assim desejar, que eles são os seus conceitos básicos.

Já se caracterizou Descartes como o “pai de todo o mal na filosofia moderna”; essa designação foi provocada principalmente pela sua divisão do mundo entre mente e matéria, mas poderia ter sido igualmente inspirada pela sua metodologia. Pois, o seu dualismo semeou estragos para a metafisica, mas a sua dúvida sistemática fez pior – encheu nossos padrões de conhecimento de confusão. Ela desviou a mente humana de seu desejo pátrio pela inteligibilidade para o anseio pela verdade absoluta. Os escolásticos tinham fé na razão, porque eles exigiam dela meramente que devesse tornar as coisas razoáveis. Não pediam que concedesse sanções especiais às suas premissas. Tais garantias eram contidas na própria linguagem da Igreja. Os pensadores Gregos, da mesma forma, não sustentaram nenhum ideal de conhecimento para além da naturalização da experiência – eles não questionavam os seus conceitos básicos, porque esses eram os pressupostos inconscientes do senso comum. Mas Descartes propõe duvidar de tudo que não traga consigo o selo da Verdade Absoluta.

Esse desafio levou a epistemologias impossíveis, e doutrinas metafisicas que pretendem erguer-se nos próprios ombros; tentativas de ver o mundo de todos os pontos de vista, de nenhum ponto de vista; mas, acima de tudo, originou uma necessidade psicológica que é peculiar à nossa época, e poderia verdadeiramente ser chamada de o Espírito da Filosofia Moderna – a nossa necessidade de convicções pessoais.

Antes de Descartes, as pessoas raciocinavam a partir de proposições as quais ninguém, erudito ou não, enxergava qualquer ocasião de questionar. Suas premissas eram pressupostos habituais, com a estabilidade e dignidade de toda tradição inconsciente – os pilares do seu mundo, e tão certos quanto o mundo mesmo. E os resultados, naturalmente, eram tão convincentes quanto o raciocínio parecesse ser bom. Muito ocasionalmente, um pensador brilhante, defrontado com algum insolubilium, desenraizaria uma premissa falsa do senso comum, como Leonardo e Galileu algumas vezes fizeram, mas ele não iria interferir no senso comum para além das exigências do seu problema. Pôr em dúvida uma velha suposição estava contido na aurora de uma nova; isso dificilmente teria sido considerado como um passo separado no processo lógico. E, naturalmente, era o destino da nova ideia, não o da antiga, que interessava. A ideia descartada automaticamente desaparecia de vista. Ninguém perguntava pela sua saúde depois disso, ninguém que pudesse estimar a nova concepção jamais se lamentava pela antiga.

Mas agora, encontramos pessoas aflitas com o pensamento de que possa haver premissas erradas, e requerendo credenciais antes de aceitar quaisquer noções. Qualquer termo que seja usado deve ser primeiramente considerado “existente”. E, como a maioria de nós já deixou para trás a fé ingênua que aceitava a “autoevidência” de certas proposições como a prova de sua verdade, tivemos que recorrer a tais tristes paliativos, como a “Vontade de Crer”, ou, na sua falta, uma filosofia do “Como Se”. Mas, na verdade, esse tipo de crença é um tipo de atitude psicológica, um sentimento, em vez de uma melhoria no nosso conhecimento. As pessoas podem vincular sentimentos de crença deveras veementes a afirmações que, submetidas à análise, descobre-se possuírem absolutamente nenhum significado. Elas podem acreditar em uma “Primeira Causa”, no “Infinito onde todos os caminhos se encontram”, em mistérios de todo tipo; a duquesa no País das Maravilhas não é a única pessoa que, com um pouco de prática, pode acreditar em tantas quanto seis coisas impossíveis antes do café da manhã. Filósofos e leigos têm se saído igualmente muito bem em acreditar em um sem número de coisas impossíveis, não apenas antes do café da manha, mas o tempo todo!

Em outras investigações da razão humana, por exemplo, na ciência ou na matemática, simplesmente usamos nossos conceitos básicos. Quando não estão em uso, não são postos em dúvida, e sim olvidados; são insignificantes. Mas, na filosofia, estamos eternamente os olhando de cima abaixo para tentar provar que são “verdadeiros”. Isso implica, é claro, que outras entidades, previamente “acreditadas”, devam agora ser consideradas não existentes. Assim começa uma grande disputa de prova e refutação, para o estabelecimento de Universais ou Átomos ou Mônadas ou Sujeitos, e no fim fazemos nossa escolha mais ou menos por predileção pessoal. Se um filósofo lhe disser: “Eu duvido do mundo externo”, você espera que ele refute o realismo, prove que certas coisas em que você havia sempre acreditado não existem realmente, que elas são aparências ilusórias, e que as únicas coisas que são reais são as coisas no interior da sua mente. Mas, se um físico diz “Espaço e tempo e suas modificações são as realidades físicas fundamentais”, você não espera que ele refute a existência de cadeiras e mesas materiais, e sim que torne simplesmente vazia alguma noção mais antiga de matéria. Com efeito, você não é convidado a “duvidar da matéria”, mas convidado meramente a entender a noção de Espaço-tempo.

Isso, dizem-nos às vezes, é tudo muito bom para a investigação científica, mas é contrário ao programa da filosofia; o cientista não se preocupa com os seus princípios lógicos desde que possua boas ideias “operacionais”, que o levam à descoberta de novos fatos, ao passo que o filósofo tem mais interesse nas próprias ideias do que em sua operacionalidade. Há alguma verdade nessa alegação, mas não tanto quanto as pessoas comumente supõem. O cientista é, de fato, interessado primariamente em descobrir mais e mais exemplificações de suas proposições formais; e como as noções genéricas de uma ciência como a física são noções muito poderosas, o trabalho dedutivo e experimental baseado nelas mantém muitas gerações de pesquisadores ocupados; é por isso que, enquanto tudo correr bem, e o campo das combinações e observações possíveis for vasto, há pouco sentido, se algum, em se reconsiderar as premissas. Mas, assim que houver algum fenômeno incompreensível, um teorema que deveria explicar algo e não o faz, o homem da ciência precisa tornar-se filósofo. Ele deve revisar todas as suas concepções fundamentais. É digno de nota que os grandes físicos sejam os mais apaixonados metafísicos. Eles dizem coisas bem mais desconcertantes que qualquer idealista ou realista ou pragmatista ousaria dizer. Eles duvidam da tridimensionalidade do mundo, da conservação da matéria, da infinidade do universo, com uma desconsideração prática (matter-of-fact disregard) pelo senso comum que faz filósofos sentarem-se e arfar. Mas, a característica notável de sua teorização é que eles nunca usam a dúvida sistemática. Eles examinam seus postulados, e talvez digam para si mesmos, “Ah, eis o problema; aqui está a contradição.” E, se reformar os postulados não irá ajudar a situação, eles prosseguem para refletir o caso de se, com termos inteiramente diferentes, um conjunto mais adequado não poderia ser construído. Eles não duvidam de nenhum fato, nem da existência de nenhuma entidade familiar, mas simplesmente fazem uma análise diferente da experiência.

A falácia que, penso eu, vicia quase o todo da filosofia moderna, e à qual devemos em larga medida ao reputado pai daquele tema, é a tendência do metafísico de tratar conceitos como entidades. Não me refiro meramente ao erro sobre o qual fomos suficientemente avisados, de hipostasiar universais; refiro-me à tolice mais sutil de se perguntar pela “existência” de uma coisa que não responde a nenhuma descrição precisa, até mesmo pela “existência de qualquer coisa”, e preocupar-se com a verdade ou falsidade de uma proposição, em vez de perguntar qual é o seu sentido. A pergunta de William James, “A Consciência Existe?” é um bom exemplo disso. O que ele deveria ter perguntado, é, “Podemos falar coerentemente sobre a ‘consciência’?” Pois a consciência não é uma coisa que possa existir, é um conceito, o qual ou pode ou não pode ser usado para descrever determinado tipo de experiência. Se aplicarmos o critério pragmático a conceitos no lugar de proposições, parece-me perfeitamente intocável.

A função da filosofia não é duvidar de tudo, e então provar a existência de coisas, é supor o mínimo possível, e entender o máximo possível. Portanto, o seu interesse está centrado em conceitos, que são os instrumentos do entendimento, e não em entidades; e o seu método próprio não é cartesiano, mas, em um sentido de certa forma alargado, socrático. A filosofia jamais poderá proveitosamente começar com a dúvida, porque a dúvida é uma atitude psicológica complicada, que, como a crença, nada tem a ver com compreensão ou com o conhecimento, mas pode vincular-se a fórmulas sem sentido tanto quanto a proposições reais. A filosofia deve começar não pela negação de algo (quanto mais tudo!), e sim dizendo algo: preferencialmente algo razoavelmente simples e conciso. Nem toda e qualquer proposição arbitrária irá fornecer um bom ponto de partida. Uma formulação metafísica deve ser feita sempre com algum motivo de fundo – não explicar o mundo, pois isso é sem sentido, mas explicar algum aspecto específico da experiência. É inútil introduzir uma concepção de Mente sem nenhuma referência aos seus usos psicológicos, ou falar sobre a Matéria sem pretender esclarecer o campo da física pura. Se quisermos tornar inteligível um conjunto de termos para descrever nosso mundo, devemos ter em conta os detalhes de tal descrição. Então, havendo dito algo que soa promissor, tal como “as modificações de Espaço-tempo são as realidades físicas fundamentais,” podemos refletir sobre o conteúdo conceitual dessa premissa, e interpretar as palavras até que elas façam sentido.  Esse tipo de reflexão pode não ser nem necessária, nem interessante para o cientista, exceto em determinadas épocas cruciais, mas é toda a ocupação do filósofo, porque ele está em busca de significados, não de fatos: a busca de significado é a filosofia.

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Susanne Knauth-Langer

The Treadmill of Systematic Doubt; in: The Journal of Philosophy, Vol. 26, No. 14, July 4, 1929, 379-384.’

Tradução: Alexandre Arantes Pereira Skvirsky
Revisão: Rodrigo Brito e Yama Arruda Ke Te D’Assumpção

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.