I
“Só a Morte desperta os nossos sentimentos” (CAMUS, 1956, p.23), e, provavelmente, apenas o falecimento de alguém que muito fez e ainda tinha a oferecer, pode causar algum desconforto em nosso sedentarismo moral e institucional. É assim que funciona com mártires, sejam religiosos ou políticos: uma figura heroica padece na tentativa de alcançar um objetivo maior que si mesma e cujos resultados concernem à determinada coletividade.
Talvez pelas vicissitudes de nossos tempos tenhamos testemunhado uma quantidade ínfima de legítimos mártires, se comparada aos eventos da Antiguidade Tardia, Idade Média ou começo da Idade Moderna – em uma sociedade complexa e pós-metafísica faltam ideais pelos quais “valha a pena morrer”, ou, ainda que estes existam, talvez tenha havido poucos dispostos a levarem a cabo o destino lógico do martírio. Entretanto, eventualmente surge alguma ideia pela qual valha a pena lutar, e, concomitantemente, aparece alguém disposto a por ela morrer.
Todavia, parece ter surgido um possível grande mártir do nosso tempo – Aaron Swartz: o rosto por trás dos principais movimentos de luta por liberdade no ambiente virtual O senhor Swartz fazia parte de uma geração que cresceu com a internet (ele tinha apenas vinte e seis anos), isto é, acompanhou e participou do desenvolvimento da rede mundial de computadores até que ela se tornasse a “internet tal qual a conhecemos”, id est, fácil acessibilidade de todo e qualquer tipo de mídia, conteúdo e informação. Mais do que isso, Aaron não apenas cresceu ao fastidioso som do antigo modem discado, como milhões de jovens de sua geração, mas também contribuiu para o implemento da internet à sua atual configuração – participou da criação e desenvolvimento do agregador, Really Simple Syndication (RSS), esboçou os conceitos de licença de Copy Left e Creative Commons, ajudou a fundar a rede social Reddit, dentre outros feitos técnicos notáveis.
Para além de sua genialidade e inventividade técnica, Aaron se dedicou às causas políticas concernentes à internet, especialmente às lutas por liberdade de tráfego, download e armazenamento de conteúdo alegadamente protegido. Sua luta política, embasada por seu vasto conhecimento profissional e acadêmico, extravasou os limites do discurso e tornou-se prática: Aaron descarregou do sítio eletrônico Jstor mais de quatro milhões de artigos acadêmicos (inclusive alguns do século dezessete) e os disponibilizou gratuitamente para estudantes de todo o mundo.
O heroísmo de Aaron Swartz lhe custaria caro – acusado pelo Procurador Federal Junto ao Estado de Massachusetts, foi preso sob a acusação de fraude digital (dentre outras tipificações), sendo liberado após pagar fiança de aproximadamente cem mil dólares. No decorrer destes eventos, Aaron não se mostrava arrependido, nem assumia culpa, pelo contrário, justificava sua conduta como resistência civil aos padrões draconianos e hipócritas da biblioteca digital Jstor[i] e da Universidade de Harvard – entidades ditas não lucrativas, que cobram altos valores para o acesso ao seu conteúdo acadêmico, não havendo pagamento aos autores dos artigos ali hospedados.
Na luta pela liberdade de acesso a conteúdos que deveriam ser públicos, Aaron caiu em batalha. Sua opção pelo suicídio não deve ser objeto de juízo de valor, ou de moralismos baratos – “muitas pessoas morrem por considerarem que a vida não merece ser vivida. Outros vejo que se fazem paradoxalmente matar pelas ideias ou pelas ilusões que lhes dão uma razão de viver (o que se chama uma razão de viver é ao mesmo tempo uma excelente razão de morrer)” (CAMUS, 1942, p.14). Sua opção foi sua e somente sua, enquanto que os motivos que a fomentaram são resultados da sociedade que criamos e dos governos que elegemos. As causas primeiras do processo enfrentado por Swartz e seu fim trágico não são mera aleatoriedade do cotidiano, mas se revelam como sintoma de patologias de nosso Zeitgeist.
II
O cinismo de nossa época pode nos levar a conjecturar que tudo não passou de questão jurídico-penal ou meramente financeira, sendo o destino do jovem hacker fruto de desequilíbrio emocional ou covardia. Importa lembrar que em outras épocas tentou-se mutilar a experiência humana de sua completude, racionalizou-se a conjuntura em binômio problema/solução, e dessas outras épocas (ainda recentes para muitos) sobraram fornalhas chamuscadas em Dachau, Treblinka e Auschwitz. Nesses outros períodos da história humana, quando as coisas pareciam obscuras, as estrelas brilhavam estranhas, e um pintor fracassado comandou hostes coléricas, tentou-se reduzir o mundo a “questões financeiras. O custo de nossa liberdade é a vigilância, e tal diligência há de ser feita pelo expediente de uma compreensão holística dos fatos e fenômenos, sobretudo quando há de se defender aqueles que lutam por esta mesma liberdade.
Em quê consistia o processo ao qual respondia judicialmente Aaron Swartz? Em poucas linhas, sem adensarmo-nos nas vicissitudes da legislação penal estadunidense, o jovem hacker foi acusado[ii] de violar o Código Legal dos Estados Unidos da América (Code of Laws of the United States of America – abreviado USC) em seu artigo 18, parágrafos 2º, 981, 982, 1030 e 1343[iii]. De acordo com a principal testemunha perita de defesa, Alex Stamos, Diretor Técnico da Artemis Internet[iv], nenhum dos tipos penais atribuídos à conduta de Swartz condiziam com a realidade.
O senhor Stamos afirmou, em testemunho passível de confirmação fática pelas autoridades, que o sistema do M.I.T. (locus das violações) opera de maneira aberta, i. e., com I.P. público e roteável, ademais o ethos (oficial) da instituição universitária mantinha a rede aberta e sem monitoramento, inclusive não alertando seus usuários quanto aos termos de uso ou práticas abusivas. Quanto ao Jstor, a referida testemunha de defesa demonstrou que o sítio eletrônico não foi hackeado, no sentido de ter sido violado, pois aos alunos do M.I.T. inscritos disciplina “18.x Class-A network”(na qual Aaron era discente regularmente matriculado) era permitido um número ilimitado de descarregamentos de conteúdo, valendo-se o jovem acusado apenas de básicos scripts de python[v] para acessar os endereços que já eram públicos. No que concerne ao animus de Swartz, a perícia do senhor Stamos concluiu de maneira clara que o acusado não agiu de maneira dolosa a atingir a universidade ou o a biblioteca virtual, outrossim, não tentou encobrir vestígios de sua atuação, de tal forma que não apagou o histórico do computador utilizado nem trocou o endereço físico associado à interface de comunicação utilizada.
No que concerne às questões financeiras envolvendo o sítio eletrônico Jstor ou a Universidade de Harvard (especialmente o Massachusetts Institute of Technology) não foi comprovado pelas partes autoras (representadas pela Procuradora Federal Carmen Ortiz) qualquer tipo de efeito negativo. Ou seja, a atitude de Aaron disponibilizou ao público obras que deveriam ser (permitam o pleonasmo) públicas sem atentar diretamente contra as referidas instituições ou se encaixar na tipificação penal – nem mens legis, nem mens legislatoris (LARENZ, 1960, P. 1932).
Actore non probante, reus absolvitur, entretanto, o jovem teve de enfrentar um processo kafkaniano. A verdade é que seus atos, ainda que no limiar da legalidade, foram, em última análise, políticos, e a resposta do governo estadunidense foi também política. Entretanto, após todas as desventuras de nossa civilização no último século, será moralmente permitido à maior (alegada) democracia do mundo atentar contra os direitos fundamentais de um dissidente político? Sabe-se que um Estado pode, hobbesianamente, se defender contra detratores políticos quando estes ameaçam sua própria existência ou valores. O heroísmo de Swartz, pode não ter causado uma nova Guerra de Secessão, mas certamente atingiu valores, não necessariamente republicanos, os quais precipitaram a atuação da Longa Manus estatal
III
Por todo o exposto, é possível encontrar evidências de que o processo contra Aaron Swartz transcende a lógica e metodologia jurídicas e encontra justificação apenas na soberania estatal. Assim, buscam-se quais valores (presentes neste caso) o Estado norte-americano protege à custa da vida de um de seus próprios cidadãos, em detrimento dos valores que se esperavam ser protegidos.
É possível enxergar, pelas evidências do caso em comento, dois elementos, ambos inscritos no material “usurpado” dos servidores do Jstor, que parecem estar localizados em loci diametralmente opostos no mapa de objetivos-fins do Estado: a propriedade e o conhecimento,. Este dialoga com a ciência, o saber e dele derivaram, até o presente, nossos paradigmas civilizacionais. Quanto àquele não há consenso acerca de sua premência para a civilização tal qual a conhecemos, embora o tema seja muito discutido por materialistas, liberais, fisiocratas, etc. Depreende-se daí que, justamente pelo entrevero concernente à propriedade e pelo acordo geral à ciência/conhecimento, esperar-se-ia que Estados e governos privilegiassem a proteção deste em detrimento daquele. Mas, o poder do capital não podia ser desfeito[vi]…
O conhecimento historicamente foi sempre gerado precipuamente em universidades, as quais desenvolvem tendência de seguir os impulsos e contradições de determinada sociedade (BURKER, 2003, p.38). A ciência das universidades, que até o final do século XIX se desenvolvia independente da tecnologia, começa a dividir com ela uma estreita relação, tornando-se cada vez mais importante socialmente e cujos resultados passaram a ser demandados pelo setor produtivo, o capital (VELHO, 1996, p. 14). Mas esse conhecimento científico oriundo na universidade, pertence a sociedade ou ao capital que (em tese) permitiu seu florescimento?
Essa questão leva ao binômio “elaboração/uso da ciência” (BLOOR, 1991, passim) posto em paralelo à dicotomia “sociedade/capital”, o que pode levar às equivocadas conclusões que animaram o processo contra Swartz. Tais relações, postas de tal maneira, confundem o ser e dever-ser: ainda que hodiernamente o capital projete sua dominação sobre a universidade, por conseguinte sobre o uso e elaboração de conhecimento, a teleologia social pressupõe o capital como artifício humano, derivado de conhecimento produzido pela mesma sociedade.
Nossa civilização se sustenta em incontáveis milênios de construção científica, do qual derivaram muitos dos demais sustentáculos civilizacionais, inclusive os meios atuais de contenção de conhecimento, verbi gratia, às limitações da biblioteca digital em comento. Assim, percebe-se a inversão dos valores na república estadunidense, isto é, escolheu-se proteger a propriedade privada de determinado sítio eletrônico (de obras exaradas por outrem nos últimos três séculos) à despeito das possibilidades do conhecimento científico livre e irrestrito, e tal proteção inversa foi feita às custas de um nacional.
Se a Justiça e seus critérios de equidade são realmente artifícios humanos (HUME, 2000, p. 524), constructos positivados pela sociedade, ou pelos governos por ela constituídos, o aparelho jurídico estadunidense lamentavelmente inverteu suas prioridades. Conclui-se que, nesta Modernidade aguda e hiperbólica, potencializamos nosso Mal-Estar (Unbehagen); se trocávamos parcelas de felicidade por parcelas de segurança (FREUD, 1997: 72), agora trocamos parcelas de cultura, conhecimento, ciência (e todas as possibilidades daí decorrentes) por parcelas de lucro (dos outros!). O que nos caracterizava enquanto civilização foi privatizado, e já não há certezas do que seremos daqui em diante – há um desarranjo nas próprias categorias que definem a humanidade como tal, pois algo foi tirado de nós.
Swartz lutou para que nós – sociedade – retomássemos o que é nosso, mostrou o caminho da rebelião necessária contra os usurpadores. Se as celeumas acerca de meios de produção ainda inflam debates entre materialistas, a questão sobre a titularidade do conhecimento humano não é controversa, e a isto se resume o sacrifício de Aaron Swartz.
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Daniel Nunes Pereira
Referências Bibliográficas
BLOOR, David. Knowledge and Social Imagery. Chicago: Chicago University Press, 1991.
BURKER, Peter. Uma História Social do Conhecimento: de Gutemberg a Diderot. São Paulo: Jorge Zahar Editora, 2003.
CAMUS, Albert. La Chute. Paris: Galimard. 1956.
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Lisboa: Edição Livros do Brasil. 1942.
FREUD, Sigmund: O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro, Editora Imago, 1997.
HUME, David. A Treatise of Human Nature. Oxford: Oxford University Press, 2000.
LARENZ, K. Methodenlehre der Rechtswissenschaft. Munique: Springer Verlag. 1960.
VELHO, Silvia. Universidade-Empresa: desvelando mitos. Campinas: Autores Associados, 1996.
[i] A biblioteca virtual Jstor, após a má publicidade gerada pela prisão de Aaron Swartz, desistiu das ações civis, e, quando da morte do jovem hacker, publicou a seguinte mensagem: “We are deeply saddened to hear the news about Aaron Swartz. We extend our heartfelt condolences to Aaron’s family, friends, and everyone who loved, knew, and admired him. He was a truly gifted person who made important contributions to the development of the internet and the web from which we all benefit. We have had inquiries about JSTOR’s view of this sad event given the charges against Aaron and the trial scheduled for April. The case is one that we ourselves had regretted being drawn into from the outset, since JSTOR’s mission is to foster widespread access to the world’s body of scholarly knowledge. At the same time, as one of the largest archives of scholarly literature in the world, we must be careful stewards of the information entrusted to us by the owners and creators of that content. To that end, Aaron returned the data he had in his possession and JSTOR settled any civil claims we might have had against him in June 2011. JSTOR is a not-for-profit service and a member of the internet community. We will continue to work to distribute the content under our care as widely as possible while balancing the interests of researchers, students, libraries, and publishers as we pursue our commitment to the long-term preservation of this important scholarly literature. We join those who are mourning this tragic loss.”
[ii] Algumas das principais peças processuais do caso ora comentado restam digitalizadas e disponíveis no seguinte sítio eletrônico: http://www.scribd.com/collections/3151539/United-States-v-Aaron-Swartz-11-cr-10260-MA .
[iii] Optou-se por não traduzir os tipos penais, tendo em vista as idiossincrasias de cada sistema jurídico, o que poderia acarretar equívocos de hermenêutica. Todavia, ipsis literis, as violações elencadas no processo foram as seguintes:wire fraud, computer fraud, unlawfully obtaining information from a protected computer, recklesly damaging a protected computer, aiding and abbetting, criminal forfeiture.
[iv] Empresa subsidiária ao NCC Group (especialista em proteção de tecnologia da informação), criada para solucionar problemas de segurança na internet desenvolvendo um novo e revolucionário Top Level Domain (gTLD) – o .secure .
[v] Python é uma linguagem de programação de alto nível de tipagem dinâmica quee enfatiza a importância do esforço do programador sobre o esforço computacional.
[vi] Paráfrase/adaptação de “(…)mas o poder do anel não podia ser desfeito…” – Tolkien, J. R. R. O Senhor dos Anéis. São Paulo: Editora Martins Fontes.2001