Natalia Makarova foi uma exuberante bailarina russa, que fez carreira no nova-iorquino American Ballet Theatre e no londrino Royal Ballet, durante o exílio iniciado anos 1970. Certa vez, Makarova disse que é na sala de aula que o bailarino tem o prazer verdadeiro. Parece contra-intuitivo, já que o que se supõe é que uma bailarina deveria querer o canhão de luz do espetáculo e as flores de reconhecimento ao seu final. Mas o prazer de Natasha, como era tratada pelos amigos, estava em ver o próprio corpo mudar. Ela conhecia o luxo de ter como profissão a possibilidade de presenciar o processo de tornar-se outra pessoa. Para ela, na sala de aula acontecia alguma coisa solitária, mas preciosa.
Há muitas formas de experimentar o aprendizado. Uma muito popular no Rio de Janeiro, herdeira de uma tradição russa cujas origens infelizmente não controlo, adota uma orientação vertical, em que os alunos e alunas são como que massas de modelar. Não muito longe, em Niterói, aconteceu algo completamente distinto. Lá viveu uma bailarina de orientação francesa, Renée Simon, que fundou uma escola onde se praticava com dureza o rigor da técnica mas, ao mesmo tempo, valorizava-se um lugar para bailarinas autoras. Em uma linha, a sala de aula de Renée Simon era a sala da consciência de que, uma vez formado o músculo, só deve haver lugar para a criação.
Não é trivial perceber o espaço que se pretende científico através de uma experiência desse último tipo. Algumas questões se apresentam insuperáveis. Há ou não há autores num ambiente em que o que se quer é a descrição objetiva do que é observado? A forma nos aproxima ou nos afasta da verdade? Temos realmente meios de interpela-la, descrevê-la, ou somos apenas agentes fixadores de verdades provisórias, mas cientificamente despidas de estilo?
Essas questões são muito antigas. E, por hora, talvez nos baste fazer o exercício de supor que uma sala de aula acadêmica deve ser feita da mesma matéria que um bom conservatório de ballet. Um lugar para conhecer a tradição e, com isso, formar musculatura, refinar os olhos. E onde, dados os primeiros passos nesta direção, é hora de dizer, entrar para a tradição ou, com sorte, criar coisa nova.
Quando dizemos, entretanto, o que sai da boca é sempre mais de uma coisa. Pelo menos duas: o que está fora e o que está dentro. Isto é, o que conseguiu ser dito do tanto que foi pensado e o que conseguiu ser ouvido do tanto que foi dito.
Ao ouvir o professor dizer direito pela primeira vez, o que o aluno de primeiro período escuta é completamente diferente do que escutará nas vezes subsequentes em que ouvir o mesmo vocábulo. Isto ocorre por pelo menos um motivo: aos poucos o aluno é exposto a esboços de história de ideias. Esses esboços vão instruir seus edifícios de razões de mais dados para conceber o termo desta ou daquela maneira, conforme o tempo e as aulas vão passando. Isto os aproximará, pois compartilhar referências faz maravilhas pela comunicação. Mas aquela primeira impressão, aquele primeiro sentido dado ao termo direito diz muito. E, talvez, isto que o aluno traz não deva ser ignorado simplesmente porque não partilha do vocabulário trazido pelo tempo e algum estudo.
Pensar na tal primeira impressão pode nos ajudar a valorizar o que o aluno traz consigo para a sala de aula. Algo que só é possível acessar na surpresa. E que já pode revelar pistas do que ele é capaz de depositar no mundo. Pode desvelar as suas afinidades, seus interesses, enfim, coisas que não devem ser desprezadas, pois podem não ser evidentes para o aluno. Estes motivos parecem suficientes para um professor fomentar um aluno a ficar atento às suas próprias intuições, mas talvez possamos mesmo supor que pode estar ali uma intuição preciosa para resolver o problema de um conceito que atormenta teóricos há séculos.
Propus a posição de Natália Makarova pela forma como entende a sala de aula, a qual subscrevo. De início, não me ocorreu o óbvio, que se me apresenta tão claro agora: ela precisou fugir da rigidez para poder criar. Procurou acolhida em lugares em que houvesse liberdade suficiente. Lugares, entretanto, onde uma menina de família pobre, como a de Makarova, provavelmente não se tornaria bailarina. O exemplo dessa bailarina traz em si a tensão que quero sublinhar. Através da imagem da bailarina bem formada e criativa, talvez seja possível conceber a sala de aula como lugar de reprodução e de criação. Necessariamente. Sem a combinação de boa formação e o apreço pelo que mulheres e homens podem pôr no mundo, não teremos nem conhecimento, nem conhecedores novos.
Uma sala de aula é um lugar luxuoso. Embora já utilizado, só me ocorre este termo. Fora dela, o aprendizado só pode ser instrumentalizado, urgente, interessado. Assim, se não por nada, uma sala de aula deve existir porque só nela há lugar para pensar as suas próprias razões. E, por consequência, as nossas.
***
Paula Pimenta Velloso