O Abolicionismo de Joaquim Nabuco – Número 69 – 09/2012 – [216-219]

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Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância. O processo natural pelo qual a escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo durou todo o período do crescimento, e enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos.

Joaquim Nabuco

O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco, é mais do que uma propaganda contra o abominável regime escravista. É uma obra que fala do futuro ao falar do presente. Além disso, parece ser o primeiro esforço intelectual e político de peso na história de nosso país a apresentar uma teoria de progresso civilizatório nacional baseado antes no elemento humano do que na suficiência de leis abstratas ou de técnicas burocráticas. Nesse sentido, me parece que a noção de Democracia refere-se mais à necessidade de se alargar o alcance da cidadania do que propriamente o de garantir a participação política, ou seja, se fazia mister a precedência da reforma social ante a reforma política. Liberdade humana como fundamento ontológico da liberdade formal.

Outro aspecto importante e que dota esta obra de caráter especial é o fato de antes de Nabuco ser um grande pensador ou mesmo um grande sociólogo, ele se mostra um grande político. Interessante notar como o exercício de sua função de homem público acaba por se consubstanciar com o conteúdo de sua obra e com a eloquência de sua interpretação do país. Em outras palavras, Nabuco se vê obrigado a sair do conforto da análise fria e técnica de um diagnóstico e a repensá-la sob a luz especulativa de um prognóstico. E é justamente essa releitura do sistema escravista sempre associada aos possíveis desdobramentos desta instituição para o progresso futuro do país que confia à sua obra tão reconhecida genialidade. Por pensar a ação política prognosticamente, Nabuco se faz um grande pensador sendo um grande político.

Justamente por ser um ator político, as ideias defendidas pelo autor não podem ser refutadas como alucinações utópicas desguarnecidas de referência prática, pelo contrário. Mais do que nenhum outro homem público de sua época, Joaquim Nabuco percebeu que política se faz com gente e progresso com o povo. Não é à toa que sua obra de maior envergadura seja justamente sobre a instituição da escravidão.

Muito além das relações entre senhores e escravos, a escravidão aqui é vista como sendo o elemento genético que determina o caráter da nacionalidade brasileira e como fator impeditivo de entrada do Brasil no universo civilizado. Trata-se da história de uma nação violentada sócio e culturalmente pela irascível pedagogia escravista. Todos – absolutamente todos – os elementos da sociedade são determinados e contaminados por esta lógica cruel. O escravo é apenas o elemento mais baixo e brutalizado.

Haja vista estas considerações, acredito que a obra poder ser analisada através de quatro grandes perspectivas e que mesmo assim não esgotam toda a sua riqueza e todos os ângulos de observação possíveis, longe disso.

A primeira e, talvez, mais genial constatação de Nabuco está em enxergar a violência do regime escravista não no elemento escravo ou na relação de mão-dupla entre senhor e escravo, mas na própria instituição enquanto um valor em si – que contamina pedagogicamente toda a engrenagem que fazia rodar a lógica da nacionalidade brasileira até então. O que hoje parece evidente, não o era na época. Nomes importantes delegavam a violência ao negro incivilizado vindo da África e viam na escravidão não apenas a estrutura econômica básica do país, mas também como único meio de inserção possível do negro à sociedade brasileira.[1]

Desta primeira constatação, infere-se uma segunda: a degradação física, moral, cultural, social e mesmo econômica não é privilégio só do escravo, mas também dos senhores e do restante da população. Não menos genial quanto perceber que a violência está mais na instituição do que nos agentes produzidos por ela é a percepção e a descrição que Nabuco tem de seus malefícios. Isso, no que diz respeito ao estabelecimento de um ciclo vicioso que comprometia a toda a população.

Tão grave quanto ser domesticado pela força bruta é ser educado a exercer essa mesma força sobre quem deveria ser considerado cidadão e não servo, pois para o autor um dos maiores absurdos da escravidão é justamente a escravização sistemática de cidadãos brasileiros. Segundo essa linha de pensamento, a escravidão é a expressão da índole e da alma de toda uma nação, é uma instituição que se familiariza e se confunde com todos os aspectos daquela sociedade. Prosseguir com a escravidão seria prejudicar a todos, sem exceção. Logo, extirpá-la do espírito da nação brasileira não seria uma tarefa simples.

Um dos pontos mais marcantes de sua análise se dá no que diz respeito à ausência de preconceito racial no Brasil. Por um lado, o acesso imediato do liberto à cidadania é extremamente positivo, pois prova que no Brasil o negro é aceito como elemento permanente e homogêneo da sociedade. Nabuco diz ser uma benção o fato de não haver rancor na alma do escravo contra o senhor e por consequência de negros contra brancos. Por outro lado, ao negro cidadão era dado o direito de ser também um senhor de escravos. Essa situação – a de um liberto se tornar senhor – parece escancarar a tragédia que significava a escravidão para o futuro do país e para a noção de nacionalidade que vinha se constituindo no Brasil. Isso dificultava a coesão entre os negros enquanto grupo. Não havia um projeto unificado de resistência negra e nesse caso, ausência de agressividade significava uma passividade não saudável. A existência de senhores bons e tolerantes era possibilitada pela resignação dos escravos com sua própria situação e não o contrário, ou seja, os escravos não aceitavam passivamente sua situação e muito menos eram agradecidos por estarem sendo civilizados pela escravidão simplesmente porque existia uma “quantidade infinita” de senhores bondosos no Brasil.

O resultado dessa situação dramática é a sistematização de um ambiente nacional em que vigoram o servilismo, o imobilismo e a imoralidade quando deveria prevalecer a iniciativa individual, a capacidade inventiva e os valores humanos universais. Por isso, a escravidão deveria ser extirpada o mais rápido possível. Deixar que ela acabasse naturalmente, por desgaste próprio significava simplesmente comprometer mais algumas gerações tanto de escravos como de senhores. Como também comprometer a evolução do sistema agrário brasileiro, do desenvolvimento da indústria e a chegada de imigrantes livres para preencher os vazios e as necessidades de uma nova nação que pretendia ser imensa.

Dessa incapacidade de se aderir a valores humanos universais, pude derivar uma terceira perspectiva: a de enxergar o Brasil não como um agente isolado do globo, mas como integrante de uma universalidade civilizacional maior. Nabuco associa o progresso brasileiro à inserção do país em um sistema de valores universais e mesmo subordinado a um sistema de Direitos Internacionais. Contudo, o autor foge daquilo que Oliveira Viana acusa como sendo idealismo constitucional. Nabuco põe o processo civilizador antes como horizonte do que como agente transformador da realidade.

Tanto é assim que, consciente da fragmentação social e do império da insolidariedade – ambos frutos do regime escravista -, Nabuco delega ao Poder Moderador a missão de dar cabo da escravidão. Pois na ausência de agentes políticos fortes o suficiente e na impossibilidade de estes surgirem espontaneamente naquele tipo de sociedade, só aquele que garantia a sustentação do regime é que lhe poderia dar um fim. Essa é a quarta e ultima perspectiva: o único agente capaz de dar fim à escravidão sem com isso dissolver a sociedade é aquele que realmente tinha voz e autoridade política, o Poder Moderador. E foi isso que aconteceu: a sociedade não ruiu, mas o rei não só deixou de governar como deixou de reinar.

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Rodrigo Fampa

[1] Exemplo tão genial quanto Nabuco, mas na direção contrária nos dá José de Alencar. Ver: ALENCAR, José de / Cartas a favor da escravidão – São Paulo: Hedra: 2008.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.