Políticas de imigração no Brasil: por uma postura coerente e cosmopolita – Número 57 – 04/2012 – [101-106]

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Após algum tempo de calmaria, o tema da migração internacional figura novamente nas páginas de jornais brasileiros desde fevereiro deste ano. A polêmica da vez foi a aplicação da prometida (há tempos, aliás) política de reciprocidade em postos de controle de imigração nos aeroportos do país. Acompanho tal questão com profundo interesse há quatro anos e já li incontáveis relatos acerca dos maus-tratos sofridos por cidadãs e cidadãos da América Latina por autoridades policiais em aeroportos da Europa (sobretudo na Espanha), bem como pronunciamentos de autoridades avaliando o problema e prometendo tomar providências para proteger seus nacionais.

A supracitada informação noticiada pela imprensa explicava que o governo da presidenta Dilma Rousseff oficialmente tomou a decisão de endurecer a entrada de turistas espanhóis e oferecer a eles um tratamento nos mesmo moldes do que nos é oferecido por aquele país. Se antes não lhes era exigido praticamente nada, agora os supostos turistas deverão comprovar a posse de pelo menos 75 euros por dia de permanência em território brasileiro e reserva de hotel ou carta de convite de um residente da cidade de destino registrada em cartório.

Com a aplicação objetiva destas novas regras, estão sendo rejeitados os indivíduos que não atendam aos requisitos para entrar em nosso país, ao contrário do que costuma acontecer na outra mão desta estrada. Não é de hoje que tomamos conhecimento das arbitrariedades sofridas por latino-americanos no aeroporto madrilenho de Barajas. A polícia espanhola já chegou a barrar mais de 18 mil pessoas naquele aeroporto em três meses (primeiro trimestre de 2008). Naquele mesmo período, mil brasileiros foram inadmitidos ao tentarem entrar no país. Foi a Espanha também que, pouco antes disso, anunciou a proposta de pagar 900 euros para imigrantes desempregados retornarem a seus países de origem. Há quase dez anos, o governo já custeia a passagem daqueles que desejam voltar para casa.

Em março de 2008, ao tentar entrar no chamado Espaço Schengen para participar de um congresso em Portugal, fui detida neste mesmo aeroporto pela polícia de fronteira da Espanha, que me acusava injustamente de não preencher os requisitos para entrar no território. A despeito da ação do corpo diplomático brasileiro, fui mantida sob o poder das autoridades espanholas, em um sequestro legitimado pelas regras da União Européia. O caso foi denunciado e obteve reações consideráveis ao passo em que vinha à tona um enxame de outros abusos e arbitrariedades cometidas pelas autoridades europeias em relação a visitantes do Sul motivadas pela xenofobia.

De lá para cá, as arbitrariedades das autoridades espanholas e de outros Estados europeus não cessaram. Muitos outros brasileiros foram submetidos a inexplicáveis maus-tratos, como as religiosas que seguiam para a Alemanha em missão evangelizadora; o músico Guinga, que perdeu dois dentes após ser agredido por um policial do posto da Polícia Nacional Espanhola no aeroporto Barajas; o padre Jeferson Flávio Mengali, que, além de ficar detido, suportou chacotas dos policiais sobre suas roupas religiosas; a física Patrícia Camargo Guimarães, que me antecedeu nesta infeliz aventura e também denunciou o abuso das autoridades que a mantiveram presa por três dias sem qualquer justificativa; a senadora Patrícia Saboya, cuja posição política não a impediu de se tornar mais uma vítima de constrangimentos impostos pela polícia italiana no aeroporto de Roma; entre inúmeros outros brasileiros injustiçados.

Apesar de o Ministério do Interior espanhol argumentar que aplica objetivamente as normas do espaço Schengen, relatos de pessoas rejeitadas e repatriadas apontam discriminação na aplicação de regras. As denúncias giram em torno dos mesmos temas: arbitrariedade nos critérios de ingresso, agressividade dos agentes policiais, acomodações precárias, falta de comida e tratamento humilhante. Em poucas palavra, total ausência de direitos. Zero em hospitalidade.

Foi há mais de dois séculos que Immanuel Kant falou, mas algumas pessoas (entre elas, eu) ainda gostam de acreditar que hospitalidade não é filantropia ou virtude, mas sim direito. Hospitalidade é um direito que pertence a todos os seres humanos como participantes em potencial de uma república mundial, um direito que regula as interações de indivíduos pertencentes a diferentes entidades cívicas, que ocupa o espaço entre direitos humanos e direitos civis e que delimita o espaço cívico ao reger relações entre membros da comunidade e outsiders.

O mesmo Kant, ao observar a forma esférica da Terra, concluiu que estávamos destinados a viver eternamente na companhia uns dos outros e que nossos constantes movimentos reduziriam as distâncias entre os povos. A Natureza, ao nos fazer brotar na superfície de um planeta redondo, teria nos dado como destino a perfeita união da espécie humana por meio de uma cidadania comum. Também seria uma imposição da Natureza a visão recíproca de hospitalidade enquanto preceito supremo da humanidade. Mais cedo ou mais tarde, acabaríamos por terminar nos reconhecendo todos como cidadãos globais.

Infelizmente, as premissas de Kant foram escritas há muito tempo e não foram consideradas diretrizes políticas pelos Estados-nacionais. Na contemporaneidade, as regras de migração são intimamente relacionadas à disciplina dos estrangeiros e à oposição baseada em critérios de identidade. Nos dois séculos que se seguiram aos escritos do filósofo, os Estados se ocuparam em desenvolver invenções de controle como passaporte, visto e polícia de imigração, utilizando mecanismos de identificação individual como formas de burocratização essenciais à consolidação e à centralização dos Estados nacionais modernos. Por meio da criação do passaporte, os Estados garantiram o monopólio do controle sobre a circulação dos cidadãos, processo que teve como consequência o surgimento de distinções entre cidadãos e não cidadãos, explicou John Torpey.

Acerca da negação sistemática de brasileiros em Barajas, o jornal espanhol El Pais publicou recentemente um artigo que tinha como manchete a seguinte frase: “No son inmigrantes, son turistas”. Segundo ele, com o aquecimento da economia brasileira, nosso país não poderia mais ser visto puramente como um mercado emissor de emigrantes. Dados do Instituto de Estudos Turísticos e da Organização Mundial de Turismo teriam apontado que o maior aumento de visitantes à Espanha seria a partir do Chile, Venezuela e Brasil, sendo que os países que mais aumentaram seus gastos com turismo foram China, Brasil e Rússia. Ou seja, apesar de carregarmos estereóticos associados à imigração irregular, somos turistas. TU-RIS-TAS! E bradamos nossa condição com orgulho.

Neste ponto, cito um autor que não é o mais amado nas Ciências Sociais, mas que apresenta uma dicotomia interessante sobre a informação do parágrafo acima. Bauman diz que nosso mundo é dividido entre turistas e vagabundos. A rejeição sistemática de povos do sul pela União Européia representa uma tendência de se exorcizar o medo coletivo gerado com a presença do forasteiro, do estranho, do que simboliza a insegurança dos tempos modernos. Os turistas, que levam o capital ao seu destino e aquecem a economia, são bem-vindos. Já os vagabundos, que usufruem dos recursos do país visitado, não.

Essa lógica cruel de distinção entre turistas e vagabundos, entre os desejáveis e os indesejáveis, exporta para o sistema internacional a lógica de divisão que observamos todos os dias em nossas cidades, entre os que temem e os que são temidos. A solução mais imediata e simples para lidar com o medo gerado pelas diferenças é separar, segregar, impedir que os “socialmente inferiores” ultrapassem os territórios limitados a eles. A construção de condomínios, cada vez mais presentes no Rio de Janeiro e em outras capitais brasileiras, segue essa lógica: garantem proteção contra a presença dos indesejáveis e dos “vagabundos”, por meio da construção de muros e da contratação de serviços de segurança. Assim, pode-se com eficiência separar quem está dentro e quem está fora do espaço e da carga de significado contida nele. Os moradores dos condomínios estão dentro de uma ilha de calma e segurança, fora da vida ameaçadora e desconfortável da cidade.

Nosso governo e nossa população parece se incomodar com a sistemática rejeição em Barajas não porque haja cidadãos brasileiros sendo violentamente repatriados e deportados pela polícia espanhola. Estamos fulos da vida porque as autoridades estrangeiras estão confundindo nossos turistas com vagabundos! Como assim, nossa classe média branca e emergente, partidária do argumento que o Brasil é muito distinto do resto da América Latina, sendo confundida com imigrantes ilegais e pontenciais trabalhadores em situação irregular? Isso é inaceitável e humilhante! Nós pertencemos ao lado de dentro do condomínio, não ao lado de fora!

Sarcasmos à parte, tenho bastante certeza do peso que esta lógica exerce na seleção dos casos que recebem atenção da mídia. Os quinze minutos de fama que meu companheiro de pós-graduação e eu recebemos em 2008 ao sermos rejeitados no aeroporto madrilenho de Barajas somente existiram porque éramos dois jovens estudantes de mestrado brancos e de classe média sendo repatriados apesar de portarem toda a documentação e recursos financeiros exigidos para entrar na União Européia. Teríamos recebido o mesmo tratamento e apoio se fóssemos dois indivíduos empobrecidos buscando uma vida melhor naquele continente sem atender aos requisitos necessários? Bom, segundo o Ministério das Relações Exteriores, sim.

Quando, em junto de 2008, o Parlamento Europeu aprovou a chamada “Normativa de Repatriação”, ou “Diretiva de Retorno”, os chefes de Estado do Mercosul e nações associadas condenaram a política de imigração européia. Ela previa a detenção e expulsão de estrangeiros em situação irregular no espaço Schengen. Os imigrantes ilegais teriam entre sete e 30 dias para abandonar o país em que se encontram e poderiam permanecer presos por até 18 meses sem direito a um processo jurídico, além de passar até cinco anos proibidos de regressar à União Europeia. Além disso, o retorno forçado podria obrigar o detido a voltar ao último país em que esteve antes de ingressar na União Europeia, mesmo que não tivesse quaisquer vínculos com o mesmo. Todos os imigrantes ilegais retidos receberiam tratamento de criminosos. Crianças e adolescentes não gozariam privilégios e também seriam detidos.

O Parlamento do Mercosul aprovou por unanimidade uma moção de repúdio à normativa européia, encaminhando-a em seguida ao Parlamento Europeu, ao Conselho da União Européia, à Organização das Nações Unidas (ONU), à Organização dos Estados Americanos (OEA) e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entre outros organismos internacionais. Parlamentares de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai consideraram que a norma violaria o direito à livre circulação internacional e aos direitos humanos básicos. A moção também expressava a esperança de que o Parlamento Europeu revisse sua decisão que, segundo o documento, era equivocada, estéril e manchava a imagem da Europa. Aparte, reiterava que migração não é crime e rejeitou o uso de conceitos como “migração ilegal”. Segundo o documento, imigrante sem documentação é considerado “irregular” em países latino-americanos, não “criminoso”.

O então presidente eleito do Paraguai, Fernando Lugo, classificou a aprovação da lei de ingratidão por parte dos europeus e também citou que no passado os países sul-americanos receberam bem os imigrantes que fugiam da guerra na Europa.O ex-presidente Lula se declarou preocupado com o vento da xenofobia que “sopra falsas respostas aos desafios da economia e da sociedade”. Segundo a Chancelaria brasileira, o tema deixou de ser um assunto consular e passou a ser político, como afirmou na ocasião o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim.

Tudo muito bom, tudo muito bem. Louvável a postura do Itamaraty. Ao menos quando somos nós, brasileiros, as vítimas do comportamento arbitrário das autoridades de imigração e da xenofobia em países centrais. Mas e quando as posições do jogo se invertem?

No começo deste ano, o governo agiu para controlar o fluxo de imigrantes do Haiti que têm entrado no Brasil pela Amazônia, ao estabelecer um limite de cem vistos de trabalho a haitianos por mês. Paradoxalmente, o país tem atraído cada vez mais imigrantes europeus e americanos que fogem da crise econômica. Sem muito interesse em refugiados de países da Ásia Meridional e da África, bem como imigrantes de outros países latino-americanos, o Ministério do Trabalho concedeu 51.353 autorizações de trabalho a estrangeiros e esboçou planos para facilitar a vinda de europeus.

Voltando aos haitianos, dados do governo mostram que, até agora, entraram no país 4 mil cidadãos desta nacionalidade, número que vem sendo apontado como um intenso fluxo migratório. Chega a ser cômico argumentar que os haitianos estão “invandindo” o território brasileiro quando nem sequem se destaca o fato de que a maioria dos 51.353 estrangeiros que entraram no Brasil em 2011 são portugueses, como lembra Omar Ribeiro Thomaz, professor de Antropologia da Unicamp. Dados do Ministério da Justiça mostram que os maiores incrementos de estrangeiros regulares no país são de nacionalidades portuguesa (de 276 mil para 328 mil, de 2009 para julho de 2011) e espanhola (de 58 mil para 80 mil).

Não se trata, entretando, de argumentar que não devemos permitir a entrada de europeus no país. Pelo contrário! Sou partidária da adoção de uma postura cosmopolita e hospitaleira por parte do governo brasileiro, mas que seja para todos os cidadãos do mundo. Não podemos adotar uma lógica de dois pesos e duas medidas, dificultando a entrada de nacionais de países vizinhos e incentivando a vinda de europeus. Fazendo assim, somente estaremos reproduzindo a política de imigração racista da Espanha, tão criticada por nós, brasileiros. Neste caminho, estaríamos reproduzindo também a recorrente migração seletiva que iniciamos logo após a abolição da escravatura com o objetivo de “embranquecer” nossa população, política evidentemente racista. Este ponto se torna especialmente problemático se observarmos a nada recente existência de grupos de características fascistas que se manifestam contra a presença de migrantes econômicos, sobretudo bolivianos, principalmente na cidade de São Paulo.

Em vez de aceitarmos nossa “natureza” e nosso destino enquanto cidadãos do mundo, preocupamo-nos em controlar os movimentos de pessoas como prerrogativa do poder do Estado, levantando barreiras à entrada dos que desejamos manter longe e colocando nessas barreiras guardas bem treinados, armados e disciplinados para desempenhar bem seu papel. Eis um grande erro, como argumenta Seyla Benhabib, pois o sistema internacional de Estados e povos é caracterizado pela interdependência. Esse movimento deveria nos levar a transcender a perspectiva de territorialidade, não a fechar fronteiras, favorecendo a disposições de um regime de soberania vestifaliano (Estado livres e iguais, com autoridade absoluta sobre todos os assuntos relativos ao seu território, para os quais relações com outros países são contingentes) em vez de uma soberania internacional liberal (interdependência entre Estados, valores, comuns, observância dos direitos humanos e respeito aos princípios democráticos).

O que me preocupa, ademais, é a lógica “gente versus mercadoria”. A ideologia do capitalismo globalizado e dos mercados livres, adotada pela maioria dos Estados, fracassou em estabelecer a livre movimentação de pessoas e da força de trabalho, ao contrário do que aconteceu com as mercadorias. Seria coincidência o fato de a política de reciprocidade e endurecimento das regras de imigração somente agora que o Brasil é reconhecido como sexta maior economia mundial e que a Espanha se encontra em um quadro de depressão econômica?

O governo brasileiro não pode ser incoerente. Não pode defender uma postura humanitária nas questões de emigração e outra conservadora quando trata de fluxos imigratórios. Para além da questão da coerência política, preocupam-me as demonstrações reacionárias. Como cientista social e vítima da xenofobia européia, orgulho-me muito das progressistas manifestações brasileiras acerca da questão. Não gostaria e não suportaria ver meu país adotar em relação aos bolivianos, haitianos e paraguaios a mesma postura que Espanha e Itália adotam perante nós, latino-americanos.

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Patricia Rangel
http://www.barrados.org/

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.