A gruta – Número 55 – 04/2012 – [71-73]

A

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Querida irmã,

se o seu coração estiver cheio a tal ponto de não conseguir se expressar verbalmente, então escreva! Todos aprendem a escrever a fim de confiar seus pensamentos no papel. Você poderia escrever cartas. Cartas são bons e verdadeiros livros.

Escrever não é inventar algo que nunca tenha ocorrido. Escrever é contar algo sobre a sua vida. Mas não meramente como quem adiciona eventos em sequência. Você deve ter algo a dizer que lance luz sobre um aspecto da vida. A arte da escrita consiste em ordenar impressões, memórias e experiências, em deixar de lado as coisas sem importância, enfatizando as mais importantes. Você sabe o segredo que há entre a minha vida e a sua? Nós fomos apenas uma das muitas crianças de nossos pais. Nós não fomos bem quistos por sermos supérfluos. (…)

Nós colocamos pessoas em hospitais psiquiátricos para não nos preocuparmos com o que temos dentro de nós. Esse é o nosso destino, o destino de quem escreve: expor a alma aos poderes que existem. (…) Sua vida é rica de experiências e só você pode revelá-las. A vida tem três períodos: infância, juventude e as experiências no mundo. Cada um é um livro em si mesmo. Não tente revelar seus problemas aos amigos pois eles somente irão falar sobre eles mesmos. Acredite apenas no papel e na escrita.

Seu amigo,
August”

Carta de Strindberg à Elizabeth em 1882.

A Gruta

“O assobio do trem irrompe no equinócio dos mundos, espalhando um grito estridente, como a de um gato quando pisamos em seu rabo. Desperta a paisagem sossegada nas sombras desconhecidas que algum homem revela, para seu melhor conforto, através de uma lamparina à óleo sustentada por um par de dedos sobranceiros. Ela parece oscilar a lentidão de um tempo primitivo.

“Como está escuro isso aqui”, pensou enquanto deslocava-se por entre enormes caixas de madeira. As arcadas de luz emanadas descortinavam detalhes como se fossem iluminuras: traços rabiscados em profundidade sobre a base de uma montanha com forte tonalidade marrom em contraponto à brancura asseada, quase clínica, de um guarda-sol de tiras vermelhas, num quadro emoldurado na parede, típico bucolismo suiço; um desenho envolvendo formas geométricas no centro da caixa de madeira, por onde as letras “P” e “K” entrelaçavam-se à letra “I” – as farpas ao redor declamando a existência – ; um afinalado banquinho escuro trazendo um telefone preto como se constitutivo. Não havia exatamente cor naquele substrato mudo. Toda a cor era um mero capricho quando a luz se aproximava, acentuada até a concentração máxima: quando há a sensação de algo por dentro, de uma ferida clara.

Retrato fotográfico de Strindberg por John Lundgren

Era um espaço sedento por luz. Por cima e através, havia poeira e, no chão, grãos de areia que reluziam como pepitas, só acháveis na mais absoluta escuridão. Garrafas deitadas ao chão palpitavam vazias; duas folhas de jornal amassadas encobriam algo – penugens angariavam a superfície-; um vaso pequeno de planta recém-nascida e há muito ressequida, de terra escura e buraco abissal no meio; um botão perdido repleto de marcas navalhadas pelo uso; um pedaço de unha cortada, como um substrato de um ovo oco aberto; pelos, fios diversos enrodilhados em coisa qualquer. O homem encarnava a figura de Prometeu em meio a tamanho abandono, como se fosse o próprio solstício daquele lugar. Ainda que procurasse arrancar dali o máximo de certeza possível sobre as coisas, surpreendia-se a cada instante com o que sentia e com o que achava que sentia, a começar pelo ruído de vidro moído ou pedra de pequeno porte que o acompanhou no primeiro minuto em que pôs os pés naquele recinto – provavelmente encavado na sola de um dos sapatos. Mas estaria a pequena coisa lá há mais tempo?

Seu coração acelera ao descobrir que aquele silêncio dissimula, pondo à prova o próprio estatuto de segurança que os objetos possuem quando não são vistos, quando não estão sendo algo. Pernas compridas e articuladas tomam vida própria e desatam a subir, fluindo, aumentadas na parede pela lupa das distâncias, para alguma reentrância erma do telhado engolir e desaparecer. Algo como uma barata é facilmente confundida com um acúmulo de sujeira. A lógica matemática do equilíbrio harmônico ilude e alucina. Elefantes, cabeças humanas, faunos, o mundo como potência numa caixinha insignificante: sonho e pesadelo, ao molde goyano.

Ele permanece atento, incólume naquele não mais que virar de página.

Quando um chiado se espicha alto à esquerda, o barulho se faz claro e real, sem eco que recorra aos espaços da imaginação. Eleva a lamparina à altura da cabeça, confiando na sua percepção. A sombra de uma teia emerge graúda e sem aranha. Pode tanto estar em qualquer parte como não estar em parte alguma. Um objeto cai atrás de si. Ele vira. Remotos sons de engrenagem à todo vapor. A luz reflete o vidro da janela. Ele aparece invertido: o chapéu de aba larga na cabeça mais parece um capacete; as roupas, uma armadura de ferro. Os olhos fundos a girar magia por toda a parte. O suor desce pela têmpora, a boca alarga, aberta.

Julga ver uma cruz diminuta no vidro. Uma mosca cheirando a percevejo percorre a ponta de um de seus dedos. A parede enfestada delas com as respectivas asinhas transparentes, tronco verde-escuro que lembrava a coloração da caveira flutuante do absinto, e globos oculares a atearem chamas. Repentinamente um forte odor lhe arrebenta as narinas e passa a ocupar seu pulmões, como pó de silica.

Ele sente uma vontade irresistível de correr, no entanto ele não corre. Para, estica os braços e as pernas ao máximo como se espreguiçasse o fluxo de sangue dentro de si, fechando os lábios fortemente como quem aguça as pupilas de certezas. As palavras rolam pela boca que é nesse momento uma fresta diminuta: “são apenas grãos que se movem!”. Sai cortando com o corpo a atmosfera, isento de si e do mundo, inconsequente, até chegar à janela, arregaçando-a de uma só vez, ferozmente. Seus pulmões abocanham, renovados, grandes quantidades de ar puro do descampado à sua frente que corre. O sorriso vitorioso estampa no rosto. Negras florestas na linha do horizonte decalcam fronteiras infindas com as montanhas, por onde o céu faz aparecer, enluvado de esmeros noturnos. Observa com a sombra nos olhos, a constelação de Andrômeda, de Orion, aquele pedregulho ao qual deram o nome de satélite natural, tão esburacado quanto um rosto humano avistado na rua, pela manhã. Olha para trás. Não há nada além da fragilidade no que observa. Pega um bloco em um dos bolsos e traceja algumas retas oblíquas, com as inicias “P.K=?”, “I=iodo”, “quartzo puro”. Ao lado: “olhar biblioteca”.

A trinca da porta balança ao som de um baque. Novamente olha para trás. “Bah, amanhã eu procuro”. Cerra a janela e retoma o mesmo percurso, os dedos agarrando a alça da lamparina, como se dependurasse um pouco mais esclarecido sobre as forças ocultas que regem o universo.”

***
Filippi Fernandes

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.