Resenha de João Goulart: Uma Biografia, de Jorge Ferreira.
Após o golpe militar, uma versão dos fatos – e de João Goulart – se consolidou. Estrategicamente, os militares e seus aliados civis passaram a afirmar que tudo antes de 1964 era corrupção, demagogia, caos econômico e subversão da ordem. Mas não só João Goulart foi desqualificado. Concomitantemente, as esquerdas revolucionárias interpretaram o apoio dos trabalhadores e do movimento sindical a Jango como peleguismo, paternalismo ou inconsciência acerca de seus verdadeiros interesses. Assim como a memória política de Jango, as lutas operárias, camponesas e populares também foram varridas da história.
Àquele que vai estudar o passado político ou a história intelectual do Brasil se impõe a tarefa, por vezes bastante antipática, de ter que reconhecer o lugar de acontecimentos e de homens que, não obstante os seus méritos, nos custaram caríssimo. Parte do empreendimento realizado pelo historiador Jorge Ferreira em João Goulart: uma biografia repousa sobre a identificação de que uma parcela considerável bibliografia que tratou de João Goulart e de seu tempo não teve este cuidado. Certa abordagem desqualificadora colaborou para que, pelo fato de ter sido protagonista num momento de grave crise política, somado a características de natureza pessoal, a vida política de João Goulart fosse encapsulada nos dois dias do golpe.
A biografia de João Goulart que hoje nos traz Jorge Ferreira guarda, portanto, um duplo questionamento, que a define como que por oposição, mas que ela imediatamente ultrapassa. De seus incômodos o autor não faz mistério: já na introdução, nos indica que o estado da reflexão sobre João Goulart com o qual é forçado a dialogar caracteriza-se pelo estudo da história política e intelectual brasileira marcado pela estranha pretensão de que é possível apreender a vida e as ideias dos homens da política segundo algo que bem pode ser classificado de psicobiografismo reducionista. O psicobiografismo leva a análises selvagens de homens a partir de suas obras, mas também das obras, escritas ou não, a partir dos homens. Ignora o fato de que, para conhece-los, convém perguntar o que problematizam e como. Sob esta orientação, Jango já foi descrito como um latifundiário com preocupações sociais, um pacato vacilante, despreparado para ser governante. Com frequência, os argumentos sustentam-se sobre certo determinismo contextual, em que João Goulart é visto como alguém que, como que por espasmos, responde improvisadamente ao contexto, tomando decisões ineficazes ou covardes, orientadas por condicionantes de classe que interfeririam na conduta dos homens públicos. Diante do golpe, por exemplo, tais condicionantes o teriam levado decidir por não decidir. E ao fazê-lo, teria ele mesmo escolhido o seu não lugar na história.
O autor ilustra a análise deste ponto com um pedido feito por Glauber Rocha a Darcy Ribeiro de que este entrasse na alma de Jango para interpretar seus desígnios passados e futuros, para avaliar suas convicções e para captar sua visão de mundo. O exemplo de um pedido de Glauber Rocha é exagerado, mas talvez marque o estranhamento do autor face a trabalhos que, embora inscritos em campos determinados pela objetividade, ignoram a prudência que levou Darcy Ribeiro a recusá-lo. A expressão mais evidente da imprudência é a forma sumária com que as descrições de Jango são elaboradas.
A biografia de Jango está repleta de ações orientadas para o aprimoramento e de muitos êxitos. Desde muito cedo, Jango empreendeu a modernização ousada da produção e a subsequente multiplicação do patrimônio da família. Suas ações foram, posteriormente, encomendadas por diversos governantes latino-americanos, interessados nos resultados rápidos logrados pelo jovem empreendedor. Desde muito cedo, a proximidade do povo foi uma marca da sua forma de conduzir a vida. Jango era querido pelo povo de São Borja, que o tinha como o jovem generoso com quem era possível falar de muito perto. Após o contato com a política, nascido do convívio com um Vargas derrotado, essa característica verter-se-ia no nacionalismo e na preocupação pública que em muitos momentos da biografia Jorge Ferriera é feliz ao apontar. Herdeiro da tradição conciliatória que Vargas já havia continuado, foram muitos os momentos em que João Goulart mostrou habilidade na negociação, atento a um só tempo aos interesses dos trabalhadores, à necessidade de que a produção continuasse em movimento e àquilo que o memento político exigia. Como vice-presidente eleito com glória, causou a inveja de Jucelino, trabalhou diuturnamente pelos direitos dos trabalhadores, para atualizar o projeto do PTB e para minimizar os efeitos da falta de compreensão sobre o que o momento político exigia – que, já há pouco tempo do golpe, pode-se dizer que era geral. Em nada é possível dizer impunemente que se trata de uma biografia raquítica, de um homem despreparado, contrário aos valores republicanos. Mesmo quando as análises tocam em pontos interessantes, como o da orientação conciliatória, fazem-no sumariamente e se dissolvem em seguida na pressa desqualificadora.
Há, portanto, forte impregnação na análise dos fenômenos e das ideias dos resultados dos argumentos produzidos no embate político sobre o senso comum. As desqualificações dirigidas a Jango permitiram que seu esquecimento fosse promovido. O esquecimento pode ser compreendido na leitura da obra de Jorge Ferreira como consequência do fato de que as análises elaboradas sobre Jango se misturaram com os argumentos mobilizados por seus contemporâneos para desqualifica-lo politicamente. Tomada em seu momento político, uma omissão é ativa. Retrospectivamente, ela é, como o autor nos diz, polidamente, imprudente. Ao desqualificar João Goulart, a bibliografia sobre o período colaborou para que diversas nuances não só da vida de Jango, como de um intervalo importante da história política brasileira restassem mal conhecidas. Assim, o psicobiografismo que foi para a psicanálise um primeiro passo, reproduziu-se nos estudos sobre o período como modelo analítico.
Talvez seja possível, após a leitura da obra de Jorge Ferreira, imaginar que o esquecimento se deva também a certo desprendimento que marca a lida de Jango com o poder. Desprendimento que de forma alguma quer indicar pouco envolvimento. Jango foi dedicadíssimo em sua vida pública e se envolveu com ela com a mesma intensidade com que esteve envolvido com os demais âmbitos de sua vida, onde foi sempre muito bem sucedido. Entretanto, ele parece ter conduzido a sua vida política de maneira firme, mas desinteressada. Suas causas não teriam sido causas próprias, mas as do Brasil. Haveria, assim, mais neutralidade que despreparo. Mas neutralidade não ganha eleição, não suscita a impressão de força e já ninguém acredita mais nessas coisas. Assim, Jango foi esquecido, os anos 1950 continuaram cheios de lacunas e a conciliação, seja entre os diferentes interesses em conflito, seja com as práticas políticas que, atualizadas, podem verter-se em sabedoria prática, permaneceu mal interpretada.
Não por acaso, Jango voltou ao debate político no início do governo Lula. A indicação de Jorge Ferreira aponta para a reanimação nas oposições das alusões negativas a Jango e de comparações igualmente pejorativas com o atual presidente. Ambos bebem, são despreparados e seus respectivos sucessos se devem ao populismo e à imaturidade política de seus eleitores. Para Jorge Ferreira, esta é a melodia elitista da persistência na sociedade brasileira da impressão de que qualquer governante que mantenha relações com os trabalhadores é incompetente, o que, por seu turno, só é superado pelas práticas populistas. É essa música de fundo que impede que os problemas econômicos, políticos, sociais e culturais atuais, bem como os dilemas e as contradições das esquerdas no presente gozem da possibilidade de compreensão que esse passado político oferece. É também para esse objetivo que o autor diz querer contribuir.
Um dever profissional impõe uma mudança de atitude e orienta o trabalho de Jorge Ferreira: ao historiador cabe diferenciar a história da memória. Da última muitas coisas são descartadas, ou lembradas apenas de determinada maneira. As razões contextuais para manter a sociedade brasileira sob desmemoriamento com relação a João Goulart já não existem mais. E, embora isto em nada atenue a situação de trabalhos anteriores que foram omissos ou demasiado inscritos nos preconceitos de seus respectivos tempos, o fato é que a biografia de Jorge Ferreira chega em boa hora.
Para realiza-la, o autor se valeu de tendências teóricas que operam outra distinção. Se por uma lado a história deve se livrar das seleções da memória, por outro depende dela para rememoriar. Disso decorre o seu interessante uso das fontes, no que conta com depoimentos de personalidades políticas concedidos a terceiros na mesma medida em que recorre a História Oral, tendo produzido ele mesmo um grande número de fontes a partir de entrevistas concedidas por familiares, amigos e pessoas próximas ao biografado. Nessas conversas são relatadas as lembranças que os próprios entrevistados têm de Jango, mas também aquilo que, de memória, afirmam tê-lo ouvido dizer. É verdade que quem escreve faz sempre escolhas e é o autor mesmo quem nos afirma que ao historiador foi negada a neutralidade. Mas, de maneira muito astuta, o que Jorge Ferreira promove é a compreensão de que tais memórias não são menos reais do que os relatos e análises produzidos por quem foi distante do biografado ou de seu tempo.
Ninguém sabe quando alguma coisa aconteceu pela primeira vez. É, entretanto, possível afirmar que o debate que será recuperado pela sociologia em termos da contraposição entre indivíduo e sociedade se define a partir da crítica de Leibniz a Locke, ou, de maneira sintética, da oposição intuição vs. o sentido. Ferreira se valeu de uma forma de estudo de geração, indicando que houve nos 1950 uma geração de homens e mulheres que sentiu-se contemporânea dos mesmos problemas, comungou de certas ideias e que, a partir delas, vislumbrou para si a missão do desenvolvimento e do bem-estar da sociedade. Não obstante, o trabalho biográfico traz consigo uma articulação necessária entre a temporalidade de uma trajetória individual e o registro temporal da socioistória. Isto impede que a questão reste negligenciada ou diminuída, como se fosse um problema de método. O estudo da trajetória política de João Goulart não pretende revelar mais do que pode. Mas demonstra que o autor está atento ao que homens e mulheres põem no mundo. De fato, poder-se-ia acrescentar, é isto que torna os homens necessários. Se João Goulart não existisse, a história política brasileira continuaria a existir. Uma vez que existiu, nos termos em que nos traz Jorge Ferreira, tornou-se absolutamente indispensável. E sem conhecimento dele, para o autor, resta comprometida a possibilidade de caminhar entre o individual e o coletivo.
A par dessas intenções e preocupações, ao longo da biografia, Jorge Ferreira nos mostra muitas coisas sobre João Goulart. Narra a sua história, localizando-a entre o seu passado e suas projeções para o futuro. E descreve a sua personalidade sempre no contexto correspondente: a simplicidade é da fazenda, a política é de todo lugar e o exílio é de lugar nenhum. Trata-se do relato informado de uma história bonita. Da leitura leve do texto, o leitor sai muito próximo de Jango. Do homem de empreendimentos, com um lugar na terra e muitos vôos com amigos e moças. Sobretudo, marca a obra a descrição detalhada da dedicação e da habilidade de Jango em momentos de inflexão da vida política brasileira. Muitos deles recortados pela história de amor com a jovem esposa.
O problema com Jango foi existir. O conflito político tem isso – que acontece também em outros campos – da necessidade de fazer com que o outro, suas idéias e ações cessem de existir. Se não foi morto, nos diz Ferreira, Jango certamente não tardaria a sê-lo. Mas não é mais possível continuar a tratar a sua história, e seu lugar na história do Brasil, à moda de seus opositores. Mais do que isso, é inadmissível que a reflexão que reivindica objetividade siga se deixando assombrar pelos fantasmas que ela só existe para combater. Jorge Ferreira afirma que esse é um movimento que já havia começado. Nada deve ser esquecido, sobretudo as tentativas de promover esquecimento. Se até agora Jango foi inexpressivo, na obra de Ferreira ele é um homem fundamental para nossa história. O que está posto nesta biografia é o contraditório.
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Paula Pimenta Velloso