O Direito Constitucional como Ordem Política – Número 43 – 12/2011 – [166-170]

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Em 1967, Luiz Sanches Agesta publica o seu Curso de Derecho Internacional comparado, onde afirma que não há mais se avaliar os problemas políticos por seus discursos locais, porque “todas as nações estão compreendidas em uma mesma história universal e disso resulta que os problemas políticos adquiriram dimensão planetária”. Assim, para este autor, a história contemporânea e, portanto, o lugar atual do Direito, só podem ser compreendidos à luz do fato da unidade do mundo.

Uma assertiva assim remonta quase que imediatamente à crítica de Koselleck à vocação para a dissimulação da filosofia da história: o iluminismo burguês, através de um auto-entendimento histórico-filosófico utópico – no sentido de relação indireta com apolítica -, a um só tempo unificou o mundo e lançou sobre a crise nascida de sua crítica um véu que determinou a sua radicalização e a sua permanência. A partir de então, substituiu-se o topos ciceroniano da história mestre da vida, que comportava histórias como exemplos morais de lugares, de homens, de direitos, de liberdades, pelos coletivos singularizados da História, da Humanidade, do Direito, da Liberdade. A história européia expandiu-se em história mundial.

Reside aí, para Agesta, o fato de que o conhecimento do Direito Constitucional comparado deixou de ser um domínio reservado a especialistas, para converte-se no saber cultural humano responsável por colocar o homem à altura de seu tempo. O conhecimento do Direito Constitucional, informado pelo Direito Constitucional de outros Estados, passou a ser uma exigência para o homem dissolvido na humanidade.

Agesta foi um jurista muito interessante. Foi titular da cátedra de Direito Político – ou do Estado, como diríamos por aqui – e não foi, portanto, resistente a combinar a reflexão política com aquela propriamente jurídica. Este não é um percurso trivial, entretanto, seja porque o raciocínio é o caminho tradicional do pensamento jurídico, não a reflexão, seja porque, por força do ofício, o jurista está, freqüente e salutarmente, próximo da realidade. Esta proximidade que a prática do pensamento jurídico impõe é salutar na medida em que revela rapidamente ao jurista verdades do processo de decantação de idéias sobre a realidade que, com freqüência, fogem dos olhos dos analistas políticos no momento em que estão acontecendo. Mas, ao mesmo tempo, é esta mesma proximidade que impõe ao jurista limites analíticos que impedem a apreciação de um quadro mais amplo. Neste caso, impediu Agesta de ver, por exemplo, o papel do Direito Constitucional Comparado na operacionalização da dissimulação do processo de universalização do Direito.

Para Agesta, a universalização da história e, portanto, do Direito foi uma realidade. Dela foi evidência o processo de integração que vivenciavam os países europeus, para os quais, por este motivo, o conhecimento do Direito Constitucional Comparado era uma exigência ainda mais premente. De fato, aprendemos com Koselleck, que a integração internacional nasce, assim como o autoentendimento filosófico utópico da crítica do XVIII, da utopia imposta pela a supra-religiosidade da ordem jurídica do Absolutismo. Esta resultou não somente na pacificação de cada um dos Estados nacionais, mas marcou ainda, talvez mais profundamente, as relações internacionais. O direito internacional europeu se tornou eficiente porque criou um novo tipo de obrigatoriedade que se colocava acima da pluralidade de regiões.Isto decorre do fato de que com o fim das guerras religiosas pôs-se a soberania absoluta no interior do território dos Estados, rigorosamente delimitado face aos demais. Tal como a consciência individual do homem free in secret, a consciência do soberano era, internamente ao Estado que a regia, absolutamente livre, pelo que o próprio Estado tornou-se persona moralis e, igualmente, os demais Estados tornaram-se personae morales. Isto fez com que se desenvolvesse, no exterior, um sistema internacional e coletivo. A conseqüência final deste processo é o incremento da ficção de unidade, operacionalizada pelo direito supra-estatal.

Naturalmente, nada disso foi evidente para Agesta. Não obstante, seu objetivo educacional relativo ao Direito Constitucional Comparado representou um enorme passo à frente da abordagem que era então vigente. Nele, seguia a excelente pista de que a valoração empírica das constituições para deduzir delas uma constituição modelo, a análise comparativa que induz elementos comuns como princípios de uma teoria, o contraste das peculiaridades das ordens constitucionais concretas ou a descrição da evolução das instituições e das ordens políticas não são mais caminhos suficientes para uma exposição do Direito Constitucional comparado. Para ele, era preciso que o jurista, o sociólogo e o político tivessem consciência da variedade do mundo contemporâneo em sua unidade.

Definir a importância do conhecimento de Direito Constitucional Comparado e os parâmetros para a produção de conhecimento neste campo foi, portanto, um importante objetivo de Agesta. Sem renunciar, em nome da necessidade de integração de perspectivas, aos objetivos científicos tradicionais, Agesta redefiniu a ciência do Direito Constitucional Comparado a partir da metodologia tradicional (escolas formalista, institucionalista, inglesa e a da prescrição da estrutura social como um fator dominante para o entendimento das ordens constitucionais). Seu objetivo foi apontar, entretanto, que o Direito Constitucional Comparado deveria deixar de ser puro método, para ter uma nova missão própria, a saber, informar sobre o que é análogo e o que varia na organização política dos diversos povos e no processo histórico em que estão compreendidos para a colaborar na formação da consciência do mundo contemporâneo e do entendimento dos reflexos da unidade da história política mundial sobre cada povo. Por este motivo, mais do que um passo á frete, a abordagem de Agesta abre caminho para o conhecimento de perto do que é verdadeiro e do que e falso sobre o processo de universalização.

Colocou-se, para o autor, o problema de realizar uma síntese das ordens constitucionais de povos membros da comunidade internacional. Esta síntese só se realizaria sob a perspectiva combinada de uma consideração teórica das possibilidades de classificação e uma consideração histórica, que partisse das causas concretas das analogias.

Uma consideração teórica das possibilidades de classificação das ordens constitucionais se tornou possível em virtude do fato de que as estruturas políticas têm certa constância e universalidade. Isto, por seu turno, se deve ao fato de que as estruturas políticas repousam sobre (1) constantes da natureza humana, modelada pela história, e (2) sobre realizações de idéias em um meio social. Isto permite compreendê-las em conceitos, em tipos. Estes correspondem à fórmula que o autor deduz de Heller, isto é, à extração de um conjunto de características comuns ou análogos entre as diferentes ordens políticas, esboçando uma figura unitária que se projeta como uma idéia ou um princípio, idealizado e generalizado. Neste percurso, chega-se a um conceito que é cânon sem se distanciar da individualidade da realidade histórica. Os conceitos tipos, quanto mais se distanciam da realidade mais se aproximam do conceito de lei e, ao mesmo tempo, são menos capazes de servir à realidade histórica. Entretanto, o que se obtém com os conceitos tipo é a síntese da pluralidade de formas históricas, pelo que o conceito realiza em si mesmo a função comparativa.

Agesta mobiliza a forma de Heller com apenas uma, mas importantíssima, retificação: de que os tipos de possibilidade lógica oferecidos pelos conceitos tipo serão compreendidos em função da possibilidade histórica. É dizer que, compreender as individualidades históricas é o objetivo final da ciência do Direito Constitucional Comparado, pelo que, os conceitos tipo não podem ser considerados senão instrumento de aproximação dessa realidade. Isto porque, além da (1) identidade substancial da natureza humana, modelada pela história, e (2) das idéias sobre as quais repousa toda instituição política, outras duas razões determinam a homogeneidade constitucional: a imitação, ou o mimetismo que determina a expansão de certas formas de ordem constitucional e a própria força expansiva ou a universalidade natural de certas idéias morais e princípios ou ideologias políticas. A difusão de uma ideologia e o mimetismo técnico operam como elementos unificadores de tipificação. As raízes históricas e o substrato social de cada povo são os elementos individualizantes que singularizam cada ordem.

Nada obstante à inegável preocupação do autor com a realidade histórica e as peculiaridades da realidade social de cada povo, o estudo comparativo pela via de constituições tipo implica certo despregar-se da história. As idéias subjacentes a esta decisão são as de revolução e de racionalização. Orienta-se a interpretação histórica das constituições pela identificação da progressiva intensidade da ação racional do poder na configuração das ordens constitucionais. As constituições são obra de um poder político que quer transformar a ordem existente em função de idéias morais e princípios políticos. Esta transformação não se limita, entretanto, à organização do poder, mas a toda a estrutura da ordem social. Por este motivo, embora seja resultado do processo de racionalização o fenômeno característico do panorama constitucional, que se manifesta desde a Revolução francesa, da tensão e inadequação entre o meio social e os poderes relativamente artificiais, observa-se que esta relação de incoerência se alterou até a inversão. Assim, o fio condutor da investigação de Agesta é dar destaque às constituições que desenvolveram seus planos de organização racional da vida política com penetração eficiente e duradoura nas entranhas da ordem social e que, além disso, mantiveram força expansiva de suas instituições sobre outros povos.

Para o estudo do Direito constitucional como ordem política, o autor indica a necessidade de uma perspectiva que combine o estudo da história, dos princípios, das instituições políticas, do Direito positivo e das estruturas sociais como fatores que devem confluir por força da natureza mesma de uma ordem política que, implica a ação histórica ordenadora de uma realidade social concreta, cristalizando idéias políticas e princípios em um ordenamento jurídico.

Porque se propõe a um estudo teórico, que parte da realidade histórica para chegar a categorias generalizantes, o autor se impôs o enfrentamento dos problemas que concernem a todas as constituições, chegando, finalmente, aos conceitos de constituição, aos elementos do regime constitucional, à legitimação do poder, à determinação teleológica do regime, à estrutura do pode, à ação do poder político, às forças institucionais sócias e aos direitos e liberdades.

Assim, temos que, para Koselleck, a racionalidade que inventa Absolutismo para dar fim à guerra civil religiosa teve como resultado um movimento crítico de idéias que dissimula a qualidade da ação que ele mesmo impõe (o que fez, por exemplo, com que escapasse aos contemporâneos à revolução o seu caráter de guerra civil, ou, após a estabilização operada pelo Estado absolutista, o deslocamento da guerra para o âmbito entre Estados). Esse movimento, tem pretensões universais e cria, em âmbito international, a necessidade de uma ordem supra estatal (como o Absolutismo fora supra teológico) gerando um movimento no sentido da expansão de idéias e integração dos Estados pelo alto. Para Agesta, o movimento que redunda num cenário em que os problemas políticos são planetários e impõe o estudo do Direito constitucional comparado através da forma sintética que ele sugere, nasce de uma racionalização para a transformação que é verdadeira. Sua perspectiva estaria limitada pela ilusão de que o Iluminismo é dotado de real competência transformadora, se não mantivesse como orientação metodológica a obsessiva observação da realidade. É ela que viabiliza a permanência de uma crítica lúcida capaz de identificar os lugares em que os discursos da universalização e da integração são falsos. É a metodologia realista que libera a reflexão jurídica de sua filiação à aparência e de sua função de operacionalizá-la. Mais do que isto, é nesta metodologia, defendida por Agesta, que a vantagem analítica do pensamento jurídico se realiza plenamente.

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Paula Pimenta Velloso

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.