i- Introdução:
As escolas filosóficas do período helenístico foram, infelizmente e durante muito tempo, olvidadas por pesquisadores e acadêmicos. Elas tiveram sua importância diminuída em detrimento das filosofias do período clássico e, em casos extremos, chegaram mesmo a ser chamadas de ‘pós-Aristotélicas’, termo que, segundo Sedley[1], apesar de cronologicamente impecável, nutre a impressão de que Aristóteles marca a acme da filosofia grega e que depois dele nada foi feito que não fosse expressão de decadência[2].
Contudo, lentamente o panorama vem se modificando e mais e mais pesquisadores vêm se interessando pelas filosofias helenísticas, seja por causa de suas idiossincrasias, por serem originadas em um contexto de debates vigorosos como nunca antes ocorrido, ou por permitirem aos historiadores uma melhor compreensão do pensamento que vigorava na época, bem como aos lingüistas um contato com os primeiros pensadores de língua grega ou latina a refletirem sistematicamente sobre o papel da linguagem. De todo modo, as possibilidades são muitas.
Especificamente quanto ao ceticismo, há um crescente interesse por ele em língua alemã a partir de meados do século XIX com o trabalho dos compiladores Franz Bücheler (1869), Hermann Diels (1879), e com os artigos de Wilhelm Gottlieb Tennemann (1825), Eugen Pappenheim (1874), Eduard Zeller (1875), Rudolf Hirzel (1883) e Paul Gerhard Natorp (1884). Seguindo os estudos germanófonos, vieram os francófonos, o mais notável deles: ‘Les Sceptiques Grecs’ de 1887 escrito por Victor Brochard[3] e que influenciou vários pesquisadores franceses e também anglófonos, notadamente Richard Popkin (1960)[4] cujos escritos, por sua vez, são responsáveis por uma enorme profusão de artigos que viriam a ser escritos, e até hoje o impacto dos estudos de Popkin sobre a importância do ceticismo na filosofia Moderna é sentido.
Mesmo assim, em língua portuguesa a bibliografia é escassa e parece que os estudos sobre o ceticismo antigo ainda não desabrocharam e, ao passo que os escritos de Epicuro bem como o poema de Lucrécio possuem traduções para o português, e também boa parte das fontes do Estoicismo (notadamente na fase conhecida como ‘imperial’), a lusofonia não dispõe de nenhuma obra traduzida de Sexto Empírico (o principal representante do ceticismo de modalidade pirrônica), daí a idéia de traduzir ‘Contra os Lógicos’, que comentaremos abaixo, porém antes, cabe uma ressalva técnica.
A tradução que se segue é, em grande medida, devedora da versão de Richard Bett (‘EMPIRICUS, S. Against the Logicians. Traduzido por BETT, R. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.’) que considero oferecer melhores soluções sintáticas quando comparada com o original em grego. Por sua vez, para comparar com a versão em grego, utilizei a edição bilíngüe com a tradução espelhada de R. G. Bury (‘EMPIRICUS, S. Against the Logicians. Traduzido por BURY, R.G. In: Loeb Classical Library n° 291. Londres: Havard University Press, 2006.’) que serviu sempre como cotejo juntamente com a versão francesa (‘EMPIRICUS, S. Contre les professeurs. Introdução por PELLEGRIN, P.; texto grego e tradução francesa por DALIMIER, C.; D. DELATTRE, D.; DELATTRE, J.; PÉREZ, B. Paris: Seuil. 2002.’). Os passos argumentativos de Sexto Empírico aos quais me refirirei são apontados entre parênteses.
ii- Comentários:
Sexto Empírico começa ‘Contra os Lógicos’ (1-2) relatando que seu objetivo é explicar como a habilidade cética de opor argumentos — e, conseqüentemente, extrair a conclusão de que sobre todos os assuntos se deve suspender o juízo (ou reter o assentimento = epoché) — deve ser aplicada às diferentes divisões da filosofia, mas para isso ele antes comentará as tais divisões (2-4), um tópico bastante corriqueiro nas filosofias helenísticas para as quais física, lógica e ética eram partes de um sistema filosófico tripartido. A conclusão provisória de Sexto é que não há um consenso entre filósofos mesmo sobre um assunto tão preliminar, de modo que nas seções seguintes (5-23) há o recurso a um rico arsenal doxográfico para demonstrações da diaphonía existente entre filósofos acerca das partições da filosofia.
Temos de um lado os que defenderam que a filosofia consiste tão-somente em uma parte, primeiramente a física: Tales; Anaxímenes; Anaximandro; Empédocles; Parmênides; e Heráclito (5), com a ressalva de que havia quem considerasse os três últimos como sendo, respectivamente, um retórico e dialético; um dialético; e um ético (5-7). Temos também os que postularam que a filosofia consiste em ética, são eles: Sócrates; os Cirenáicos; e Aristón de Quios, mas também aqui há controvérsias que são exibidas (8-13) e que se remetem a doxografia acerca de Sócrates e Platão, através de fragmentos do satirista Timão. Finalmente, havia os que consideravam a filosofia como sendo lógica: Pantóides; Alexino; Eubulides; Bríson; Dionisodoro; e Eutidemo (13).
Em seguida, Sexto nos fala sobre os filósofos para os quais a filosofia era composta por duas partes (14-15): Xenófanes; Arquelau de Atenas; Epicuro; e os Cirenáicos (que apareceram anteriormente entre os que consideravam a filosofia somente como ética e, portanto, o ressurgimento deles aqui só faz reforçar as contradições entre os filósofos).
Finalmente, há os que consideravam a filosofia como tripartida (16-19): Platão; Xenócrates; os Peripatéticos; e os Estóicos que:
de maneira implausível, comparam a filosofia com um jardim coberto de frutas, de modo que a parte física pode ser ligada ao cume das árvores, a parte ética à suculência dos frutos, e a parte lógica à força dos muros. Outros dizem que é como um ovo; ora, a ética é como a gema, que algumas pessoas dizem que é o frango, a física é como a clara, que é comida para a gema, e a lógica é como a casca externa. (EMPIRICUS, S. Contra os Lógicos I, 17-18).
Contra os que dividem a filosofia em três partes, e mais freqüentemente contra os Estóicos, é que Sexto Empírico discursará de agora em diante (20), e, não obstante a concordância ou discordância dos filósofos dogmáticos sobre qual parte da filosofia tem precedência sobre as outras (20-23), Sexto decide começar pela lógica (24), porque é justamente na lógica que há reflexões sobre critérios e demonstrações e faz, em seguida, maliciosas considerações metodológicas (25-28). Ele nos diz que:
coisas comuns[5] são pensadas como vindo a ser conhecidas totalmente por si mesmas através de algum critério, enquanto que coisas não-evidentes[6] são pensadas como sendo rastreáveis através de signos e demonstrações, por vias de uma transição para coisas comuns, investiguemos em primeiro lugar se há qualquer critério nas coisas que nos arrebatam por si mesmas via percepção sensível ou pensamento, e então, depois disto, sobre se há um processo capaz de significar ou demonstrar coisas não-evidentes. (EMPIRICUS, S. Contra os Lógicos I, 25).
A idéia de Sexto é demonstrar que não há um critério que permita que as coisas comuns sejam conhecidas por si mesmas. Por outro lado, as coisas não-evidentes (como, por exemplo, a arch? pré-socrática), que não podem ser conhecidas por si mesmas, devem ser rastreadas através de signos e demonstrações para o âmbito das coisas evidentes (comuns e sensíveis) para poderem ser conhecidas, mas as coisas evidentes, por sua vez, só podem ser conhecidas através de um critério, portanto, demonstrar a ineficiência de todos os tipos de critério é demonstrar a impossibilidade de conhecer as coisas evidentes e também as não-evidentes. E
uma vez tendo isso sido feito, não haverá nada que reste para ser investigado acerca da nossa necessidade de suspender o juízo, tendo em vista que nada verdadeiro é encontrado tanto nas coisas no ponto de vista comum tanto nas coisas que são não-evidentes. Então, deixemos que a discussão sobre o critério seja nosso ponto de partida, tendo em vista que é de fato pensado para incluir todo o processo de apreensão. (EMPIRICUS, S. Contra os Lógicos I, 26).
***
Rodrigo Pinto de Brito
[1] Ver: ‘SEDLEY, D. Os Protagonistas; traduzido por Brito, R. P. In: Revista Índice [www.revistaindice.com.br], vol. 02, n. 01, 2010/1.
[2] Por exemplo: ‘Após Aristóteles nós temos as cartas de Epicuro, e, portanto, não há um único escrito de um pensador original do primeiro escalão, até chegarmos a Plotino. Há uma grande quantidade de fragmentos, mas de valor muito inferior; por que os oito séculos consecutivos produziram muitos poucos homens que mereçam ser elevados àquela constelação dos homens de gênio, os pré-socráticos. Se os escavadores de Herculano pudessem trazer à luz os 750 livros de Crisipo – que os céus esqueceram – qualquer estudante alegremente os trocaria por um único pergaminho de Heráclito.’ (CORNFORD, F. M. The Unwritten Philosophy’. In: The Unwritten Philosophy and Other Essays,1950.)
[3] Há uma tradução do livro de Brochard para o português publicada pela editora Odysseus em São Paulo, 2009.
[4] Ver: ‘POPKIN, R. História do Ceticismo de Erasmo a Spinoza; traduzido por Marcondes, D. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000.’
[5] Ou ‘evidentes’, são chamadas de na passagem de enarge.
[6] ‘Não-evidentes’, ‘não claras’ ou ‘obscuras’ são as coisas ádela.