Ocupar – Número 39 – 11/2011 – [148-150]

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Um dos traços gerais das presentes ocupações ocidentes é a não-violência. O remetimento das ocupações ocidentais àquelas da Primavera Árabe não é evidente. Afinal, ocupar, ocupar mesmo, ocupamos todos. Além do que, a não-violência das “nossas” ocupações é mais uma marca distintiva.

Há várias formas de não-violência. No que concerne às circunstâncias, há a não-violência por ausência de oportunidade e a não-violência sob oportunidade. Em qualquer sociedade os homens estão sujeitos, com maior ou menor intensidade, a esse dilema. “Não serei violento por que não posso, ou por que não quero?” Mas a não-violência também tem o seu sentido alterado em virtude das classes sociais. A não-violência de uma classe de proprietários é diferente daquela de trabalhadores com capacidade de subsistência, ou mesmo de trabalhadores sem capacidade. Até mesmo, a não-violência do miserável – a quem a violência é custosa por razão calórica – caracteriza um tipo todo próprio. Os sentidos da não-violência se imbricam no momento da conclamação social à não-violência. Parece que a conclamação à não-violência é uma via de mão única, ela parte do proprietário ao trabalhador. Não estou preparado para admitir que a não-violência, pura e simples, é ela mesma uma forma de violência.

Existe uma tendência irreflexiva a se associar a violência com a política. Mas se disséssemos que a política começa, quando a violência termina, acredito que não receberíamos muitas objeções. Naquele momento em que pensamos que a atividade parlamentar é violenta, ou que os grupos de deliberação de bairro são violentos em suas disputas verbais, ou que juízes são violentos na leitura de seus votos, não queremos realmente pensar em violência, no mais, queremos pensar em formas mitigadas de violência, como a violência simbólica, que é a preocupação de quem não sofre uma violência. A violência tem que ver com a destruição, do corpo ou das coisas, ou, até mesmo, do corpo enquanto coisa. Mas essa violência mitigada, aquela sofrida por um negro na disputa por um emprego, pelo funcionário público, ou pelo aposentado, numa crise econômica, por uma mulher na disputa por postos “adequados” de trabalho, ou por qualquer trabalhador na disputa judicial com um proprietário, não é bem uma violência, porque muito pior, ou melhor, do que ela, trata-se uma crueldade. Mas por quê? Oras, porque é política. Não se trata mais da violência, mas da quebra por ela realizada, a instituição, que agora é mantida.

O metafísico político sentado na última fila, logo, aborrecidamente, advertiria com os seus etéreos botões: – Mas e a guerra?

Sabemos até onde a guerra irá? Não é violenta, mas cruel. Se os seus efeitos são indeterminados, trata-se não mais de um fenômeno político, mas de algo que preparará bases para instituições, seja por reatividade, ou, como na Segunda Grande Guerra, por horror. Ou seja, a violência é imprevisível em seus efeitos, e esses podem preparar as bases de uma vida nefasta. A crueldade é previsível, mas se esconde. As guerras violentas ou cruéis são péssimas, é melhor passar sem elas. Mas mesmo o sério metafísico assentiria com o fato de que é um paradoxo, para não dizer uma falácia, o momento em que o Estado de Direito diz que a sua crueldade, na verdade, é uma violência legítima. O enfastiado historiador das idéias chegaria a uma mesma conclusão que nós, mas um átimo depois, depois de a tê-la escutado, pois parece que o direito julga que é capaz de, pela polícia, estabelecer as suas próprias condições de existência. Mas crer no Estado de Direito não significa crer no que ele crê. Até porque, alguém precisa zelar pelo fenômeno, uma vez que ele sozinho não faz muito por si. Arriscando, inclusive, a sua existência por nós querida. A ocupação, por vezes, precisa proteger o direito, prote[gê-lo] de si próprio. Nada mais triste do que um oficial de justiça.

Na Wall Street ocupada alguns sofismas não muito eficazes foram veiculados, tais como “pelo motivo de que não sabemos por que estamos aqui é o porquê de estarmos aqui” ou “a falta de um objetivo é o objetivo”, e o fato de que foram proferidos em jogral por intelectuais não quer dizer muita coisa. Parece-me que intelectuais servem para fomentar ocupações, mas nelas, se podem ser ouvidos, é porque não deve ser uma ocupação, mas uma pausa. A responsabilidade não é de ninguém, os norte-americanos estão confusos. Nós também estamos. Até porque é difícil enfrentar uma experiência social que funda a sua possibilidade na liberdade, como é o sistema financeiro. Uma experiência social, cujo desaparecimento não é desejável. Mas de toda forma, os intelectuais não têm o que fazer na ocupação, senão enquanto forma biológica. O constrangimento do Adorno, nas ocupações de 68, fala muito bem de sua presença intelectual, como também a retirada de cena de Sartre, Foucault e Deleuze etc. Que ao “prepararem” a ocupação, dela se livraram, até mesmo estabelecendo alguma reticência aos modos de ação. Se uma ocupação é bem sucedida, ela se faz em crueldade política, talvez mais virtuosa do que a aquela que sucedeu, e não há nada mais moral do que seja combatida, desde suas origens, como tal. O modelo de ocupação norte-americana deve ser mimetizado, mas aquele dos confrontos pela equiparação das liberdades civis. Mas ainda não está claro quem é o inimigo, e admito que haja sempre ambivalência, se não há objeto a ser violentado, não há o que fazer. O sistema financeiro não é um inimigo, pois não tem rosto. E sabemos que o financista não é o sistema.

Por isso, não se pode deixar de notar a superioridade das ocupações universitárias sobre as ocupações mais gerais de espaço público. As ocupações universitárias são violentas, mas rapidamente interrompem o fluxo destrutivo, pelas condições estabelecidas de crueldade. Basta que observemos os estudantes da UFF, na metade do segundo semestre de 2011, constrangendo os agentes da administração, pela afirmação pura e simples de que não se deixarão removidos, não se trata apenas de não-violência, mas de disposição violenta, absolutamente ciente de seus limites. Ou os estudantes da USP, em Outubro e Novembro, quebrando as câmeras de segurança, depredando, por assim dizer, o patrimônio público. Trata-se de ocupar o espaço administrativo, obrigar a interrupção dos trabalhos, mas, sobretudo, de permanecer virtualmente, pela evidência de que voltar é bastante simples, de que a mobilização já existe. A crueldade bela das ocupações dos estudantes é que ainda que não estejam nos prédios, de alguma forma, nunca saíram de lá. E, infelizmente, não podemos pensar o mesmo dessas outras formas de ocupação. A falta de objetivo, no campo da política, ou é o prelúdio da desmedida, ou apenas fogo fátuo. Por isso digo, nas ocupações ocidentais, ou se insiste em permanecer sobre a ponte, interrompendo o tráfego, sob pena do enfrentamento, mas com um objetivo, a ser vencido ou perdido – ora, quando que se tornou vergonhoso perder? –, ou optamos por prédios públicos, ou privados, mas de relevância política, ou é melhor voltar para casa.

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Cesar Kiraly

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.