A zona dos direitos – Número 34 – 10/2011 – [125-127]

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O título desse ensaio é propositalmente ambíguo e nasce da estupefação perante a utilização da linguagem dos direitos para se falar em coisas como “direito à ciência – como na decisão da ADI 3510, pelo STF – e “direito fundamental ao desenvolvimento econômico e social”. Na linguagem corrente, a palavra zona pode designar apenas uma área ou região, como uma “zona comercial” enquanto área designada para o comércio. Mas a mesma palavra, dentre outras acepções, também designa desordem, bagunça, como quando, por exemplo, reclamamos que a casa está uma zona, isto é, a casa está uma bagunça. Logo, o título do ensaio pode ser entendido tanto como fazendo referência à “região dos direitos”, como à “bagunça dos direitos”. Tal ambigüidade se presta a manifestar uma afirmação a ser destrinchada ao longo do texto: “a zona dos direitos está uma zona!” Ou seja: a região dos direitos está uma bagunça! Comecemos então, aclarando a metáfora espacial que situa os direitos em determinada “zona”.

Ao longo da segunda metade do século passado, o clamor pelo reconhecimento de direitos fez com que as tradições liberal e democrática se unissem para garantir uma política feita não apenas num Estado democrático, mas num Estado democrático de Direito. Mais do que o respeito a opiniões majoritárias e à lei por elas criada, o Estado democrático de Direito deveria garantir um núcleo inviolável de prerrogativas ao cidadão, que não poderiam ser sobrepujadas em circunstância alguma. A concretização da vontade da maioria que precisaria se guiar pelos direitos das pessoas e não o contrário. Isto é, os direitos deveriam pautar a política.

Esse núcleo inviolável de prerrogativas tem em seu cerne as liberdades individuais que o liberalismo exige que não sejam nunca suprimidas, como as liberdades de crença, opinião, propriedade, etc. Mas não necessariamente se limitam a isso, abrangendo também direitos sociais e coletivos, como direito de greve, assistência social, meio ambiente saudável, etc. Pela assimilação dessas diferentes esferas de direitos, muitos autores falam em diferentes “gerações de direitos” que foram sendo paulatinamente assimilados como direitos de 1ª, 2ª, 3ª e mesmo 4ª geração.

Com isso, percebe-se que os chamados direitos dos cidadãos, das pessoas, dos grupos, etc., têm um caráter de abertura que permite que eles se transformem e venham a abranger novas dimensões ao longo do tempo. Isso faz com que a política, enquanto atividade de criação e de concretização de mundos possíveis ganhe nova dimensão, uma nova área de atuação criativa: a zona dos direitos, onde direitos são criados e se luta para que se tornem efetivos.

No entanto, o aforamento dessa zona traz à tona e explicita um paradoxo: os direitos que, no ideal liberal e na idéia de Estado Democrático de Direito deveriam pautar a política, são criados politicamente. É essa indistinção que transforma a zona dos direitos numa zona. Se os direitos têm uma fonte natural, ou racional, ou de exigência moral necessária, eles se colocam além da política e podem ser o seu limite. Mas se sua origem é a própria política, seria contraditório supor que eles são capazes de limitar sua própria fonte. A questão que surge daí é: se os direitos não podem pautar a política e, no fim das contas, são por ela pautados, para que eles serviriam? Com isso eles não perderiam a sua principal função?

Contra isso, é possível recorrer a uma visão mais estritamente liberal e considerar verdadeiros direitos apenas os direitos individuais liberais. É uma forma de estancar a pluralização de significados do termo e delimitar como pertencentes a esferas distintas os direitos e a política. Os primeiros pertenceriam a uma esfera moral, na qual as pessoas convergem para uma solução única de respeito mútuo, na qual se exige a inviolabilidade da dignidade de cada um enquanto indivíduo. Já a segunda representaria um reino de divergência a respeito da melhor forma de resolver problemas coletivos. Com essa distinção, torna-se possível pautar a política pelos direitos e se evita a bagunça de tudo traduzir na linguagem dos direitos, impedindo que se fale em direitos sociais, ambientais, etc. Com essa solução, termina a zona e se põe ordem na casa: direito, só os individuais. Não necessariamente apenas os já reconhecidos. Novos direitos poderiam ser assimilados, mas não indefinidamente e, necessariamente, com fidelidade aos princípios da supremacia da liberdade individual.

Essa solução evita problemas como a referência a um “direito à vida” e um “direito à ciência” como se se tratasse de fenômenos de mesma estatura que podem ser sopesados de qualquer maneira que se mostrar conveniente. Mas também evita apropriações criativas capazes de usar a linguagem dos direitos como retórica política que permite a certas demandas subalternas alcançarem visibilidade, por exemplo, alinhando à matriz individualista kantiana do direito à dignidade da pessoa uma dimensão ambiental, salientando que faz parte de uma vida digna sua vivência num meio-ambiente saudável. Ou ainda, propondo alternativas como a existência de direitos não só das pessoas, mas também dos animais.

Assim, ou os direitos formam um conjunto finito de prescrições morais capazes de regular a política, ou eles podem ser expandidos infinitamente, sendo uma dimensão da luta política e, consequentemente, não podendo ser seu limite. Haveria solução intermediária possível, capaz de compreender a zona dos direitos não como um conjunto fechado, mas como um tipo de retórica capaz de traduzir novas demandas não liberais, sem que, com isso, por sua vez, descambe para uma zona, nos dois sentidos do termo, cujo excesso de significados lhe esvazia de conteúdo e a torna inútil enquanto limitação da atividade política?

Uma opção seria reconhecer e focalizar, em vez da distinção entre moral e política, uma distinção interna à política que a separa, conforme salientado por Gramsci, entre a grande e a pequena política. Isto é, reconhecer que a política compreende tanto uma dimensão criativa e transformadora das estruturas sociais, quanto uma dimensão de atividade rotineira de administração pública e disputa por espaço dentro de estruturas já estabelecidas. Reconhecer que os direitos são fruto da primeira dimensão da política e, portanto, nessa dimensão não podem limitá-la, não implica, necessariamente, abdicar que eles limitem a política em sua dimensão mais burocrático-administrativa. Podemos dizer assim, que a “grande política” cria limites morais e jurídicos, expressos na linguagem dos direitos, para a “pequena política”, do dia-a-dia.

No entanto, a “grande política” não reconhece limites espaciais, temporais, ou técnicos para a sua realização: ela ocorre e pode ocorrer em qualquer momento ou lugar da sociedade, incluindo aí a dimensão da “pequena política”, do que resulta um quadro dinâmico e reflexivo, e não estanque, na relação entre as duas dimensões da política aludidas anteriormente, sendo a própria separação entre as duas dimensões da política criada e recriada politicamente.

Diante desse quadro, evitar que a zona dos direitos vire uma zona implica lutar em todas as frentes possíveis para estabelecer tais direitos e suas fontes legítimas, assim como hierarquias dentro desse sistema. É lutar, por exemplo, para manter a distinção entre a vontade do legislador constitucional e a do legislador ordinário como fontes de direitos, garantindo a supremacia da primeira. Ou então, lutar pelo reconhecimento de direitos coletivos, mas ressaltar que têm sempre prioridades alguns direitos individuais, como o direito à vida e à integridade física. Ou ainda, enfrentar conflitos mais específicos, firmando posição, dentre outras, a favor da supremacia do direito à informação sobre o direito de propriedade intelectual, ou o contrário.

Não se trata, pois, de uma “luta pelo reconhecimento” tentando assimilar mais e mais dimensões da vida social dentro da linguagem dos direitos. Mas sim de estabelecer fronteiras movediças entre o que está dentro e o que está fora dessa zona – por exemplo, haveria mesmo um “direito fundamental ao desenvolvimento econômico e social”? – e hierarquias entre os elementos internos a ela – por exemplo, o direito à vida pode ser ponderado com outros, ou deve ter supremacia absoluta? A meu ver, essa parece ser a única forma de manter a zona dos direitos aberta a novas demandas políticas, mas organizá-la para que disso não resulte uma zona, no outro sentido do termo, que termina por lhe minar a utilidade e o sentido de sua existência.

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Igor Suzano

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.