Há muito tempo descobri a sombra fresca que vem da amizade com quem já morreu. Coisas maravilhosas vêm dos autores mortos. A mais elementar (e acolhedora), creio, é que a morte lhes confere algo de distante e torna possível encontrar alguém que, embora humano, parece não partilhar da humanidade. Esta, que responde ao mesmo tempo pela aproximação e pelo invariável desgosto que toda amizade sempre promove, só é neutralizada pela morte.
Talvez pelo mesmo motivo os animais sejam sensacionais amigos vivos. Entretanto, o convívio com eles nos aproxima, paradoxalmente, do convívio com humanos. Vivos. E com eles a amizade é sempre mediada pela afinidade; neste caso, pela sensibilidade aos animais. Finalmente, tornam-se nossos amigos as mulheres e homens que sofrem quando vêem um animal ser submetido à brutalidade humana. Passa algum tempo e todos construímos edificiozinhos de razões que nos opõem à violência contra animais. Isso é suficiente para, de repente, sem porque, nos dividirmos. Seguimos cerca uns dos outros porque o afeto de nossa preocupação é o mesmo. Tornamo-nos inimigos muito próximos.
Hoje, é possível perceber, resumidamente, uma divisão em duas partes da dedicação à causa dos animais. O Direito dos Animais, também conhecido como Libertação Animal inscreve-se na filosofia utilitarista e advoga a idéia de que os interesses básicos de animais não humanos devem receber a mesma consideração de interesses similares de humanos. Seus representantes abordam o tema de diferentes perspectivas filosóficas, argüindo desde o protecionismo consequencialista de Peter Singer – que se detém mais nas formas de evitar o sofrimento dos animais do que em seus direitos, postulando certo gradualismo na busca pelo direito dos animais -, ao abolicionismo de Gary Francione – que entende por um só direito dos animais pelo qual se deve lutar: o direito de não ser propriedade.
Por ser radical, a posição abolicionista é mais interessante, porque evita algumas confusões que tem menos que ver com as concepções filosóficas que movem os autores em suas reflexões acerca do tema do que com suas respectivas militâncias. Ao entender pela imoralidade do uso de animais por humanos, os abolicionistas se opõem à possibilidade legal que autoriza esse uso, sendo indiferente a forma segundo a qual os animais são tratados. E ponto.
O gradualismo do protecionismo, que contém uma espécie de wellfare como etapa do direito dos animais, se abre para largos períodos de tempo em que mudanças devem ser conquistadas e adeptos da proteção dos animais devem ser atraídos. Isto faz com que a argumentação pela defesa dos animais toque em temas que lhe são estranhos. Por exemplo, para impedir que galinhas sejam empilhadas em gaiolas minúsculas, mantidas permanentemente acordadas ou tenham seus bicos cortados, é comum que se mobilizem argumentos de viabilidade econômica de alternativas à produção, ou de benefícios para a saúde da carne e dos ovos de galinhas criadas em espaços livres. Faz sentido. As galinhas são empilhadas para maximizar o espaço da produção; são mantidas acordadas para que não deixem de comer ou pôr ovos; e têm seus bicos cortados para que comam mais e mais rápido e impedir que se biquem e se machuquem mutuamente em reação ao stress a que estão submetidas pela luz forte e o espaço exíguo. Logo, para atrair a atenção de civis e legisladores produtores, comerciantes e consumidores de carne e ovos, faz sentido argüir pela viabilidade econômica da produção e pelos benefícios para a saúde dos produtos da criação em espaços maiores, em que as galinhas engordam e põem ovos mais lentamente. Mas em nada estes argumentos tem que ver com os animais. São argumentos pelos lucros e pela saúde de humanos. Por seus direitos.
Mas qual é o problema? O resultado imediato desse tipo de argumento é positivo: algumas pessoas deixaram de consumir carne de frango e ovos e houve avanço no sentido de produzir legislação que proteja os animais na produção. Mas as pessoas foram atraídas e as leis promulgadas pelas razões erradas. Uma vez que sejam neutralizados os custos para a saúde, por exemplo, do consumo de carne de frango ou de ovos, não haverá porque não consumir carne e ovos de galinhas torturadas. Mesmo que a tecnologia responsável pela neutralização dos custos seja irresponsável e implique novos prejuízos para a vida dos animais. Isso é um problema. Mas não é o problema todo.
Argumentos assim geram confusão entre os preocupados mais fervorosos com os animais. Da mesma forma em que mudanças graduais podem ser molecularmente desfeitas, humanos amigos, porque amigos dos animais, podem molecularmente romper suas relações. Um vegano esquentado pode não tolerar que você ainda use aquela bolsa de couro que ganhou da sua mãe e afirmar categoricamente que você não é de nada. O que, não obstante, é melhor do que um outro que só come orgânicos dizer que você não é vegetariano porque fuma.
Acredito que esse tipo de confusão encontre terreno fértil na perspectiva permissiva do que chamo aqui de gradualismo consequencialista do protecionismo. Apesar de reconhecer que os inscritos nesta perspectiva são meus amigos – porque são amigos dos animais – e que têm razão em muitas coisas, o fato é que essa forma de arrebanhar adeptos é frágil, porque traz consigo antropocêntricos ambientalistas e saudáveis pouquíssimo vocacionados para a justiça. E que a superação da confusão não se beneficiará de uma distinção bem feita entre o que é ser vegano, vegetariano etc. – que seria permanecer na periferia do problema.
É preciso saber quem são os nossos inimigos. Protecionistas pretendem aprender a falar a língua deles para fortalecer o movimento pelos animais. É legítimo, mas tem lá seus problemas. Quanto a nós, que já estamos convencidos, talvez nos ajude pensar que não comemos carne porque não comemos os nossos amigos. Eu não como um boi como não comeria a Virginia Woolf. E, no mesmo sentido, não combato meu companheiro que não come carne porque comeu um brigadeiro. Ele é meu amigo de convicção. Acredito que este seja um argumento forte, mas, dito assim, incompleto. Significaria dizer que eu comeria um inimigo, o que não é verdade. Mas gostaria que meus inimigos de convicção considerassem deixar de violentar animais. Ou deixar de patrocinar a violência. Porque ela não se justifica por nada. Nenhum preço é tão alto que torne razoável açoitar, confinar, matar, testar ou humilhar os nossos amigos. Mas, para tanto, é necessário saber quem esses inimigos são. É isso, ou continuar a dividir a voz de um movimento que, a par das felizes conquistas dos últimos tempos, ainda fala baixo.
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Paula Campos Pimenta Velloso