As esquerdas e o poder: notas sobre caminhos e descaminhos ao longo dos últimos governos – Número 17 – 07/2011 – [63-66]

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Iniciado o terceiro mandato do Partido dos Trabalhadores à frente da Presidência da República, emergem algumas questões sobre as forças de esquerda e sua relação com o poder. Cabe indagar acerca das conseqüências do governo no mais influente partido da esquerda brasileira das últimas três décadas. A reflexão, entretanto, não pode se esgotar no PT. Ainda mais relevante é problematizar o papel da esquerda nesse período, já que o percurso petista rumo ao poder passa por alianças com forças historicamente vinculadas ao lado mais conservador da política brasileira, as quais ocuparam e ainda ocupam cargos centrais na composição dos últimos governos.

Não é o caso de determinar a partir de personalidades ou proposições meramente abstratas o conteúdo da metáfora espacial de delimitação do campo político, cunhada à época da Revolução Francesa. De fato, se é possível precisar alguns conteúdos historicamente vinculados ao campo da esquerda, assim como certas biografias com ampla inserção nesse campo, grande parte dos critérios de definição dos termos passa ao sabor das conjunturas, muito mais dependentes de embates históricos definidos do que derivados de grandes linhagens de pensamento. Tal volubilidade é comumente responsável por opiniões sobre a “caducidade das distinções entre esquerda e direita”, vistas nesses registros como artigos de antiquário.

Mesmo sem serem estanques, ou determináveis com igual facilidade em diversas épocas históricas, sempre é possível, e em certo sentido até mesmo necessário, elaborar tais modos de clivagem ideológica. Se tal tarefa parece por demais árdua em tempos atravessados por ideários pós-modernos, sem forte presença de grandes explicações e sonoras palavras de ordem, isso não importa ocaso das distinções. Deve-se, por outro lado, apurar o olhar para os modos de emergência de novos e antigos fenômenos. Deste modo, a guinada ao centro, ou à direita, dos governos petistas não implica a inexistência de uma “esquerda” brasileira, mas sua distinta conformação.

Grande parte do problema passa por uma questão que ultrapassa fronteiras nacionais: a relação da esquerda com o poder. Aproximar-se do ideário de transformação do existente e da defesa de parâmetros de igualdade, marcas do pensamento de esquerda, é tarefa muito mais fácil na oposição. A própria organização do poder já sugere às esquerdas suas pautas centrais. No governo, todavia, alianças heterogêneas são quase sempre necessárias para a concretização de pautas almejadas. O poder importa composição e cessão em alguns pontos importantes para que outros se façam presentes. O terreno da ética da convicção e da pureza de ideais cede lugar ao império das conseqüências da ética da responsabilidade. Não é o caso de analisar o fenômeno a partir da díade fidelidade/traição, mas de perceber a ordem de necessidade que limita as ações.

Do mesmo modo, se fazem presentes as influências conservadoras da máquina estatal, estrutura que, longe de constituir uma forma vazia, limita e influencia aqueles que nela se inserem. Nesse ponto, a atenção à história brasileira é fundamental. Lugar central da política nacional, quase sempre ocupado por forças que prezavam a conservação do existente em detrimento de qualquer mudança mais profunda, o Estado brasileiro carrega marcas inafastáveis da sua história de protagonismo, em uma trama quase sempre destinada a distanciar as massas do poder. Dono de dinâmica própria, próximo às elites empresariais e oligarquias agrárias, o Estado obriga seus ocupantes a aproximar-se de forças e dinâmicas bem distantes dos ideais de esquerda.

Outro ponto fundamental passa pelas peculiaridades da conformação política brasileira. Em virtude de nosso passado autoritário recente e dos graves problemas sociais que saltam aos olhos de qualquer observador mediano, não é fácil assumir-se de direita no país. Com a exceção de alguns representantes de uma extrema-direita raivosa, presente em certos veículos de comunicação, mas desprovidos de qualquer meio representativo de organização política, ninguém se assume como tal no Brasil. Mesmo partidos caracterizados por posições políticas conservadoras e até mesmo reacionárias, como o DEM, afirmam situar-se no centro do espectro político. Em época de ampla proeminência e alarde da direita e extrema-direita na Europa, seus simpatizantes no Brasil encontram-se tímidos.

A relativa fraqueza da direita não implica, todavia, em franca vantagem das forças de esquerda. Incapazes de direto confronto, os grupos da direita procuram a composição, reiterando marcas de uma história nacional sem rupturas bruscas. Ao invés do conflito que distingue posições, surge a transação como fim dos embates, homenagem à velha constatação de Justiniano José da Rocha, que a localizava sempre após todo conflito entre ações e reações. Isso sem falar na longeva aproximação entre certos grupos políticos e as benesses do poder estatal, velha afinidade que os impele a ceder alguns anéis, mas garante inúmeros dedos nos fóruns de poder estatal. As alianças mantêm inúmeros interesses, possivelmente perdidos em caso de radicalização. Do lado dos grupos de esquerda, as vias da composição também aparecem como mais vantajosas, sem que se atente para as determinações que alguns meios impõem aos fins. A moderação dos dois lados do cenário ideológico acaba por solapar os ideais de esquerda, próximos da transformação do existente.

A situação ganha ainda mais força ante a figura de nosso último presidente, negociador nato, capaz de aproximar pólos aparentemente inconciliáveis. Lula nunca foi afeito a mudanças bruscas, que ameaçassem abalar a sólida base lentamente construída ao longo de oito anos. Mesmo dispondo de um amplo capital político, expresso em níveis de aprovação quase inimagináveis em democracias de massa, ele nunca partiu para o embate em pautas históricas da esquerda brasileira, relegadas a segundo plano por sua eclética base aliada, como a reforma agrária, o caráter público dos meios de comunicação e a abertura dos arquivos da ditadura.

As dificuldades da presença da esquerda no poder tornam-se ainda mais intensas ante a ausência de um organizado partido de esquerda fora do governo. Com o ocaso de Brizola, que levou junto o caráter transformador do seu PDT, o PT passa a ser o único partido representativo da esquerda brasileira. A miríade de pequenos partidos, grande parte composta por egressos do próprio Partido dos Trabalhadores, é claramente incapaz de uma presença político-social mais efetiva. A maioria, com a exceção de certos grupos do PSOL, entretida com o fantástico mundo dos ideais, sem qualquer atenção à sua concretização, em postura que não poderia ser mais contraditória às suas inspirações teóricas.

Plínio de Arruda Sampaio, mais representativo candidato dessa ala na última eleição presidencial, não se mostrou apto, como nenhum dos seus pares, a apresentar um consistente programa à esquerda do Governo, que o caracterizasse como força política capaz de influir na política nacional. Ao invés de inserir pautas de esquerda no debate público e confrontar o Governo com seus silêncios ante alguns compromissos históricos, Plínio preferiu bravatas anacrônicas, agradáveis apenas à militância do partido. Tais grupos políticos não conseguem afirma-se como opções efetivas ao PT, não representam grupos significativos que estejam insatisfeitos com o atual estado das coisas e sejam afeitos a ideais de esquerda. O apoio da grande maioria dos mais relevantes movimentos sociais brasileiros, como o MST, à candidatura Dilma demonstra muito bem essa realidade.

Resta a “esquerda do PT”, que deseja problematizar internamente ao partido algumas de suas opções. Tais grupos, constituídos por correntes como a “Democracia Socialista” e a “Articulação de Esquerda”, combatem da sua posição minoritária parte da política do Governo, em que pesem os problemas inerentes a sua inserção no partido. De fato, se há uma inegável vantagem na luta interna, essa posição também obriga os grupos a, impelidos pelos opositores externos, presentes em outros partidos, apoiarem decisões políticas em muito distantes a suas características. A disciplina partidária, sem falar na atração de parte de tais grupos pelo canto das sereias do poder, arrefece ímpetos de defesa de pautas claramente esquerdistas.

O roteiro parece não reservar espaço para novas soluções. Ao horizonte delineia-se um cenário de tragédia, com os protagonistas impelidos a, por seus próprios atos, reiterarem aquilo contra o que lutam. Compreender tais difíceis interações não incorre, entretanto, em necessário fatalismo, que vincule proximidade com o poder ao abandono de ideais de transformação. Trata-se, todavia, de perspectiva fundamental para melhor compreender os recentes caminhos da política nacional, que não podem ser relegados a meras opções pessoais ou desvios imprevistos, mas devem ser relacionados a fenômenos mais profundos e duradouros.

A saída para uma hegemonia política da esquerda, e não apenas eleitoral, não passa por uma fórmula mágica, mas decorre da compreensão de certos imperativos dos fatos. A maior força da esquerda do PT, a existência de opção organizada à esquerda do Governo e até mesmo a presença de uma direita de definição ideológica mais clara, que levasse o campo oposto a assumir mais fortemente suas crenças, aparecem como eventuais caminhos que podem desaguar em tal hegemonia. O cenário, contudo, não é repleto de certezas, mas de indefinições, marcas necessárias de uma situação, a presença de um partido de esquerda na Presidência da República, até hoje inédita. Não há, portanto, como recorrer somente ao passado, que deve ser conjugado às percepções dos movimentos do presente, para que ajude a expor os indícios do novo que se avizinha.

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Jorge Chaloub

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.