O Brasil é um país de esmagadora maioria cristã. Um reflexo disso é que seu governo representativo é representativo de uma moralidade cristã. O partido no governo do país atualmente, mesmo podendo ser considerado um partido de esquerda, não pode encampar as reivindicações de uma esquerda moral, justamente porque se vê vinculado ao cristianismo tanto em sua criação quanto em sua expectativa de votos. Os ateus aparecem como a minoria mais abertamente discriminada no país e, numa campanha eleitoral, um candidato se assumir ateu é quase um suicídio político. Isso faz com que determinadas demandas, como revisão de leis anti-aborto e anti-drogas e expansão de direitos para minorias sexuais sejam sistematicamente excluídas de processamento legislativo e mesmo do debate público com ressonância nas casas legislativas. Um exemplo disso é a forma como a legalização do aborto adentrou na última campanha presidencial, não como um assunto a ser discutido, mas um tema a ser execrado.
Mesmo assim, como se sabe, para o bem ou para o mal, os mecanismos de representação política, como os partidos e o sistema eleitoral, fazem com que um governo eleito não seja o reflexo simples e direto da moralidade comum do público eleitor. Dessa forma, governos representativos de uma sociedade ferrenhamente cristã podem editar normas que, em alguma medida, desafiam os dogmas da igreja. É o caso da lei de biossegurança, que permitiu a pesquisa com células-tronco embrionárias no Brasil. Mas não sem um processo legislativo tortuoso, que envolveu não apenas o próprio Poder Legislativo, mas também o Judiciário, chamado a declarar a inconstitucionalidade da lei que, segundo os críticos, ofenderia o direito fundamental à vida. A decisão do Supremo Tribunal Federal, enquanto guardião de nossa Carta Constitucional instituidora de um Estado laico, mas também promulgada “sob a proteção de Deus” (preâmbulo), no entanto, foi a de reconhecer a constitucionalidade da lei atacada.
Mais recentemente, outro tema cuja presença no Legislativo é tumultuosa justamente por afrontar dogmas cristãos, também foi levado a ser decidido no Judiciário. Em Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), o Governador do Rio de Janeiro requisitou “interpretação conforme a Constituição” para dispositivos do Decreto-Lei nº 220 de 1975 (Estatuto dos servidores públicos civis do Estado do Rio de Janeiro) para que não houvesse diferenciação no tratamento dispensado a servidores públicos em situação de união hetero ou homoafetiva. Mais uma vez, a demanda de tratamento igualitário cuja penetração no Legislativo estava bloqueada, encontrou guarida no Judiciário e, por unanimidade de votos, o Supremo Tribunal Federal (STF) estendeu aos casais homossexuais os direitos garantidos aos casais heterossexuais (APDF 132). Isso sem contar outro tema moralmente controverso recentemente julgado pelo tribunal, em ação na qual foi garantido o direito de passeatas pacíficas defendendo a descriminalização do uso de certas substâncias entorpecentes sem que essas “marchas” possam ser consideradas algum tipo de apologia ao crime (ADPF 187).
No que depende da vontade do presidente do STF, ministro Cezar Peluso, outro caso com características semelhantes, deve bater à porta do Supremo em breve.Trata-se de outra ADPF, dessa vez questionando a penalização da interrupção da gestação de feto anencéfalo. Isto é, sugerindo flexibilização na legislação penal sobre o aborto, o que também poderia ofender a moralidade cristã. A julgar pelos dois exemplos anteriores, mais uma vez o Judiciário deve dar guarida à demanda anti-majoritária e ultrapassar o legislativo na regulação de um tema polêmico cuja polêmica lhe confere custo altíssimo no mercado de votos e faz com que seja evitado a todo custo por aqueles que dependem de votos para se manterem no poder. Indiferente à lógica de obtenção de votos, o Judiciário teria maior autonomia para lidar com o caso e, muito naturalmente, aparece como caminho alternativo de processamento político de tal demanda.
Ou seja: aquele que poderia ser o mais conservador dos Poderes da República, já que tem como função justamente garantir a obediência a uma lei pretérita e a compromissos constitucionais firmados num passado que se aproxima de 25 anos de distância vem aparecendo como espaço privilegiado de consecução de políticas progressistas. E uma arena na qual, nitidamente, a moralidade cristã não tem conseguido dar as cartas com mesma facilidade com que consegue dar no Legislativo e mesmo no Executivo. Uma questão, no entanto, emerge desse debate: tal sistemática, que faz com que certas demandas venham a ser processadas fora dos canais tradicionais de representação popular, aprimora ou enfraquece a democracia? De um lado, pode-se questionar: um coletivo de 11 juristas tem legitimidade para impor uma normatividade que se sobreponha à moralidade comum do povo? Mas de outro, também é possível perguntar: uma maioria religiosa tem legitimidade para promover a exclusão sistemática de determinadas demandas do processo legislativo de um Estado laico?
A questão já é relativamente batida na discussão política contemporânea e muito conhecimento foi produzido a respeito do tema, dentro e fora do Brasil. As respostas são variadas e separam, por exemplo, comunitários e liberais na teoria política e positivistas e pós-positivistas na teoria jurídica. Em disputa está o conteúdo da própria noção de democracia, de modo que se trata de questão complexa que, portanto, não pode ter respostas simples. Como seriam simples a recusa de qualquer política feita no Judiciário como sendo essencialmente anti-democrática, ou o descrédito de qualquer política feita no Legislativo por ser essencialmente conservadora. Um primeiro passo na discussão do tema deve ser aceitar que, em princípio, a democracia não exige nem repele nem uma coisa nem outra.
Particularmente creio que a democracia tem enquanto aspectos importantes uma dimensão inclusiva, de aceitar a participação da maior parcela possível da sociedade, e, nas palavras de Aletta Norval, uma dimensão “aversiva”, que revela aversão pelo conformismo. Ambas as dimensões parecem, ao menos no caso brasileiro, estar sendo mais bem satisfeitas com a interferência do Poder Judiciário na política, de modo que, nesse sentido, a chamada “judicialização” da política tem contribuído com sua expansão numa linha democrática. Mas também acredito que esse caminho comporta riscos, pois a democracia possui igualmente uma dimensão de representatividade social e não pode se resumir a regras ditadas por um grupo recrutado em fileiras muito específicas da sociedade. Isso auto-sabotaria sua dimensão inclusiva: o Judiciário deve garantir direitos capazes de assegurar a situação de igualdade para que diferentes grupos sociais possam expressar suas demandas, mas não substituir tais grupos e sua opinião a respeito, por exemplo, do que seria a melhor pauta para a execução do governo.
A saída? Aceitar a presença dessa nova arena de discussão política como possibilidade de expansão democrática, mas manter a vigília e a discussão sobre as ações tomadas sob seus auspícios. Tais decisões devem ser apreciadas sob os possíveis entendimentos acerca do significado de um governo democrático e denunciadas quando ininteligíveis dentro de um governo que ainda possa ser chamado de um governo do povo. Sem esquecer que, conforme salienta Peter Haberle, “‘povo’ não é apenas um referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal, confere legitimidade democrática ao processo de decisão” e a mera representação política das legislaturas eleitas tampouco esgota o conceito de democracia.
***
Igor Suzano