Começo a escrever na noite de sexta-feira anterior à Marcha da Liberdade marcada para a avenida Paulista, 28 de maio – dia que no futuro talvez seja nome de rua. Provavelmente só vou terminar de manhã, logo antes de partir para a referida marcha. Aliás, bem disse alguém por aí: não se deveria dizer “marcha”, mas alguma outra coisa, porque a liberdade não marcha, ela dança. (Voltaremos a isso.) Sábias palavras.
É bem sabido que a Marcha da Liberdade foi convocada em reação à violência policial com que os aparelhos de poder receberam a Marcha da Maconha, no mesmo lugar, na última semana. Não estive nessa marcha, primeiro porque estava trabalhando. Mas também porque, não sendo consumidor da erva, deixo a quem de direito fazer valer sua voz e fico de fora, apoiando a iniciativa pelo seu valor democrático. E digo valor democrático com toda a ênfase que seja necessária: faz parte do conceito de democracia que possa haver manifestações pela legalização de coisas ilegais. A democracia é o regime onde as coisas se fazem às claras. No meu modo de ver, e não estou tentando insinuar nenhum tipo de comparação com a maconha, isso vale até para o neonazismo (a não ser quando parte para a agressão) e outras coisas revoltantes: antes ver acontecendo à nossa frente, a tempo de reagir, do que ser surpreendido quando ele toma a sociedade como um todo de assalto.
Enfim, mesmo não sendo consumidor de cannabis, sou “consumidor” de liberdade e estarei na marcha, como estive no churrascão da gente diferenciada. Coloco o consumo entre aspas porque, obviamente, assim como a liberdade não marcha, ela não se consome: ela se consuma, e o trocadilho tem suas razões etimológicas de ser. A repressão à marcha da semana passada foi um escândalo tenebroso, que diz muito do país que o Brasil teima em continuar sendo, um país em que forças de segurança são sabujos do poder ou capitães-do-mato dos bem instalados. Esse é o Brasil que precisa ser implodido para que o Brasil da criatividade, da energia vital e, em resumo, do futuro, seja construído sobre o terreno livre. Como fazer isso? Com a desobediência civil (mesmo a Marcha da Liberdade foi proibida! Veja se isso não é flagrantemente inconstitucional!), com a resistência pacífica, com uma expressão simples, mas terrivelmente poderosa: vir a público. Dar a cara. O que pretendo, aí abaixo, é desenvolver essa idéia e vinculá-la a coisas que já vinham sendo discutidas.
Quando Caetano, no 3. festival da canção da Globo, se dirigiu ao público que o vaiava, perguntando: “É isso a juventude que diz que quer tomar o poder?”, ele sabia bem com quem falava. Era 1968 e tudo estava por acontecer, a começar pela batalha da Maria Antônia. “Se vocês forem em política como são em estética, estamos feitos”, ele continuou, e terminou por comparar a platéia aos trogloditas do CCC que espancaram o elenco de Roda Viva.
Hoje mesmo, um colega de trabalho aproveitou um momento de descontração e provocações para apontar para mim e fazer a mesma pergunta: é esta a juventude que quer tomar o poder? O assunto nada tinha a ver com política, mas o gesto me deixou com uma pequena pulga atrás da orelha, mesmo assim. Acho que é porque a questão, de maneira geral, é pertinente e eu me flagro freqüentemente retornando a ela – não por mim, mas pela minha geração. Talvez devesse ser colocada de outra maneira: mas essa juventude quer mesmo tomar o poder?
É da pergunta colocada assim que vou partir para tentar dialogar com alguns textos que tenho visto na internet, mas também com os levantes aparentemente heterodoxos no mundo árabe e agora na Europa, Espanha à frente, e com a Marcha da Liberdade, que é histórica antes mesmo de acontecer. De todos os textos que têm discutido o problema da atuação política do jovem de hoje, dois o resumem de maneira particularmente fecunda, então eu os cito aqui:
Sobre a minha geração e a política, de Moysés Pinto Neto
Manifesto da #esquerdafestiva, de Cynara Menezes
Numa leitura rápida, seria possível estimar que o primeiro texto expõe um problema e o segundo oferece um caminho. Uma leitura menos rápida enxergaria em ambos os textos a manifestação de um desconforto, mas a intuição de que a roda da história não está emperrada. Simplesmente ela não roda em ritmo constante. Ela é viva, pois. E se soar marxista demais a evocação da história, quando estamos discutindo a política mais local e imediata, é simplesmente porque “história” é o nome que damos a essa política quando a olhamos de longe e depois que ela aconteceu. A política vistosa, organizada, estruturada em termos de partidos, leis e processos como o eleitoral e as negociações parlamentares, é uma instância (uma instância e tanto, mas instância apenas) de um fato aparentemente banal. Que vivemos todos juntos, que nem sempre isso é fácil, e é preciso encontrar formas de tornar essa convivência fluida, isto é, estabelecer regras – ou, em termos mais modernos, regulações para os fluxos da vida.
Já diz o texto de Moysés que a juventude não sonha. E está certíssimo em vincular o sonho à política, de tal forma que, assim que se volta a sonhar, o desejo é por política, muito antes de ser por poder. A juventude quer tomar o poder? Por enquanto, a juventude está reaprendendo a querer, essa é a imagem que posso tirar do que diz Moysés. Grande parte das críticas, ou pelo menos das dúvidas, que têm sido avançadas em relação à ocupação das praças públicas na Espanha diz respeito justamente à expectativa de que o querer seja mais do que isso. Seja, de fato, poder, ou uma perspectiva de poder. Vai por aí: Lá estão, protestando, desejando, querendo, reclamando, mas o que propõem para o poder? Que alternativa eles sugerem para o poder tal como existe? Manifestam-se contra a plutocracia, mas como imaginam o poder econômico? Falam de democracia real, mas como realizá-la senão pelos instrumentos de poder esboçados nos textos fundadores da democracia moderna? Para uns, são questões que levam ao impasse; para outros, são aporias que desqualificam a mobilização como um todo, e aí poderíamos retornar, com ironia, à pergunta de Caetano: é essa a juventude que quer tomar o poder?
Acredito que a chave para dissolver a aporia, pelo menos de uma maneira que nos convenha, está nessa questão do querer evocada no texto de Moysés. Já nos lembra o velho Freud que há uma diferença entre a pulsão e o desejo, onde, resumindo muito, a pulsão (Trieb, literalmente um empurrão) se sublima no desejo (Wunsch, palavra muito bem escolhida, porque remete a anseios, votos, aspirações, e não só a um capricho), de tal maneira que uma abertura, de caráter fundamentalmente sexual, se transfere a outros objetos, entre eles o que nos interessa: a vida social, onde encontramos a política. Eu estaria mais próximo de Nietzsche, Espinosa e até Jung, no sentido de achar que a pulsão – ou vontade, ou esforço (conatus) – não pode ser diretamente definida como sexual, mas como vontade de vontade, simplesmente: o substrato singular da vida e de toda inclinação, seja sexual, seja sublimada nos demais objetos. (Mas não é o caso de discutir isso aqui.) Traduzindo: antes de estar apta a fazer qualquer coisa que se pareça com concretizar sua inquietação, sua perturbação, em formas políticas plenas, bem delineadas, é preciso que a juventude tenha condições de esparramar, em praça pública (literalmente ou figurativamente), suas pulsões, enquanto está em processo de dar corpo aos objetos de seu desejo. Não são pulsões em estado puro, com a mais absoluta certeza; mas os objetos aos quais está voltada a atenção da juventude espanhola são ainda muito abstratos, para o bem e para o mal: “democracia”, “os políticos”, “os ricos”…
E é assim que chegamos ao segundo texto, o de Cynara. A celebração de uma esquerda festiva só é menos interessante do que a evocação da esquerda libidinosa, muito prezada por Flávia Cera e originada, segundo Christopher Hitchens, em Portugal (um “partido sexocrático”, como ele conta). A esquerda libidinosa me faz pensar na economia libidinal, conceito também de Freud, mas apropriado por Lyotard e reapropriado por Stiegler para tratar justamente do jogo de pulsões que se esconde abaixo da normalidade da vida política e da economia. Mas a idéia da esquerda festiva já nos traz de volta a algo que eu disse no começo do texto: a liberdade não marcha, ela dança. Marchas pressupõem, ao menos, o poder de coordenar os passos de multidões transformadas em massa única, no mais das vezes para fins precisos que invariavelmente não são os de ninguém ali dentro. A liberdade é, em si, dança, criação de passos (é por isso que tenho dificuldade em considerar coreografias como dança…), a pura movimentação do corpo que se expande no espaço e se apropria dele cada vez mais, para imediatamente largá-lo (o movimento em si é uma apropriação que só dura na medida do gesto; passado, levado a outro gesto, retém-se apenas na medida desse outro gesto) e renovar a vontade de vontade. No plano somático, é a vontade de vontade em grau zero: o dançarino mais puro é pulsional.
Quando o contexto é político, a festa é o esvaziamento do poder. E nada é mais terrível e doloroso para o poder do que ser esvaziado. É pior do que um ataque frontal, porque o poder não tem o menor pudor (olha aí, trocadilho de novo) de mudar de mãos. Na verdade, o poder se transfere de um grupo para outro na maior cara-de-pau. Ele só se torna impotente, de verdade, quando é esvaziado. Quando há desobediência, quando há recusa, quando há derisão, quando há risada, quando há dança. O que está sugerido nas entrelinhas do texto de Cynara é que o poder não está aí para ser tomado, mas para ser esvaziado, desinflado, murchado. A ambição de tomar o poder é a ambição de tornar-se poder e isso se exercita desde o início, muito antes de tomar o que quer que seja. A não ser, talvez, o pequeno poder local sobre um grupo limitado que ambiciona tomar o poder: daí a patrulha ideológica que deixa a autora de cabelo em pé. Há que manter o grupo coeso…
Será, então, que a resposta é simplesmente: não, essa juventude não quer tomar o poder, ela quer é murchá-lo? Não creio. Porque nem isso ela quer, ela não formulou estratégia nenhuma de esvaziamento das estruturas de poder e provavelmente reconhece que, considerando amplamente o caso, esse esvaziamento nem sequer seria desejável. Algum parâmetro é necessário, nem que seja um parâmetro odioso, como inimigo presente que seja, para evitar que as pulsões empurrem em sentidos aleatórios, às vezes conflitantes, às vezes alienantes. Por enquanto, o que essa juventude quer, e isso vale não só para a Espanha, mas também para o Brasil, é querer – livremente, publicamente, justamente. É a retomada, no âmbito da política, de uma das realidades humanas mais banais: a vontade, a possibilidade de formar desejos, de produzir realidades e nelas habitar, de encontrar fórmulas a cada momento e estabelecer estruturas em que a coabitação seja possível e o desejo, esse produtor de realidades (ou objetos, se preferir) se potencialize através dessa coabitação. É isso que significa querer política, é isso que significa sonhar, para voltar ao texto de Moysés.
E, para não largar o texto de Cynara: isso é alegre e festivo, tem de ser alegre e festivo, senão é mentira. Já dizia Deleuze, citando (volto a eles) Espinosa e Nietzsche: o poder é a forma mais triste de potência, porque ele só se atualiza quando reduz outras potências, ele é um vampiro de potências. Qualquer um que pare um instante para contemplar o problema vai observar que toda forma de poder rigoroso penetra profundamente no âmago do desejo – na vontade, na pulsão – para definir onde as sublimações são válidas ou não. Isso vale para a religião como para o fascismo ou o comunismo soviético, o consumismo generalizado, até o universo financeiro. O poder precisa estreitar os caminhos da alegria e colocar rituais tristes no lugar de tudo que seja festivo, de tal maneira que só através dele mesmo qualquer coisa seja legitimada no âmbito de sua jurisdição e soberania. Ser festivo e alegre – isto é, publicamente – é a maior, melhor e primeira forma de se colocar em rota de colisão com o poder. Mas é uma estranha colisão, da parte do alegre e festivo: um dos lados ri, o outro berra; um dos lados dança, o outro marcha. Eventualmente, a colisão se torna mais ortodoxa. Um dos lados apanha e o outro bate – mas, sendo poder, não bate diretamente, manda bater. Se for numa avenida grande como a Paulista, minha sugestão a quem quiser continuar dançando alegre e festivamente é dar a volta no quarteirão até deixar os braços dos capitães-do-mato cansados…
Essa juventude quer tomar o poder? Certamente não, para o bem e para o mal, tanto porque não sabe o que fazer com ele, nem sequer sabe identificá-lo, quanto porque, mesmo inconscientemente, nega, ou pelo menos questiona, mesmo que pela leseira cívica, a legitimidade do poder como um todo. No tempo de Caetano, havia os que queriam tomar o poder, havia os que queriam simplesmente herdá-lo e havia os que nem sabiam o que estava acontecendo, mas não davam um pio porque seguro morreu de velho. A minha geração (estou na soleira dos trinta) não quer nem tomar o poder, nem nada, quer simplesmente estar bem com ele e viver como dá. No máximo, um pouco de consciência de mundo leva a falar em tolices como responsabilidade social das empresas e coisas assim. Ah, tristes anos 90, tristes anos 2000… Ainda estávamos, como bem apontou Moysés, sob o trauma do século XX, com suas ditaduras, suas utopias alquimizadas em chumbo grosso, com o perdão do neologismo, e o triunfo, ao final, do arremedo de capitalismo que se convencionou chamar de neoliberalismo.
Hoje, o trauma se diluiu para a geração um pouco mais nova, para a minha também e até para algumas mais velhas. Sobreveio a curiosidade de procurar o que está soterrado pelos escombros de tantas idéias fixas, herdadas de décadas mortas. Sobreveio a vontade de dançar, de rir, de produzir realidades sem esperar nada, particularmente, do poder. A juventude está muitos passos abaixo da tomada do poder de qualquer tipo. É isso que espero da Marcha da Liberdade, que bem poderia ser chamada de Dança da Liberdade.
Espero que coloque em xeque, pela sua simples existência, a tradição sedimentada e para muitos óbvia de um poder que se exerce através de capitães-do-mato com cassetetes e gás lacrimogêneo. Que amplie a risada de ridículo em torno de todos os intolerantes, principalmente aqueles que fazem da intolerância uma política, uma forma de se promoverem pessoalmente. (Para quem não percebeu, a referência aqui é Bolsonaro.) Como se a vida dos outros fosse uma matéria-prima qualquer para suas ambições de poder, seja político, econômico ou o que for. Que deixe claro, de uma vez por toda, que os caminhos pelos quais as estruturas de poder se estabelecem e reproduzem não podem mais deixar de contemplar a potência espraiada dos cidadãos, aqueles que vivem, produzem, pagam impostos, no universo desta sociedade. Que deixe claro e irrevogável, enfim, que as liberdades de expressão, de reunião e de circulação não são apenas uma letra na lei, mas são a letra da lei: podem ser exercidas e podem ser exigidas.
No plano mais abstrato, sonho que será uma pequena vibração na superfície gigantesca desse mar que está começando a se agitar, mostrando que, se um dia teremos, de fato, “democracía real ya”, isso só será conseguido através do desejo, da vontade de vontade, da alegria, da festa, da libido, da risada, da dança, da expansão de potências que desinfle o poder de anular as potências. Se for isso que essa juventude quer, em vez de simplesmente tomar o poder, ela não é tão alienada quanto chegamos a crer. Terá sido, isso sim, uma das mais revolucionárias que já houve.
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Diego Viana