A história de Gerhard Shnobble: Incidentais Egípcios – Número 2 – 04/2011 – [4-6]

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Não é preciso crer na revolução das essências para acreditar no revolucionário. Ainda me aproximo muito mais da revolução da imagem, do que das substâncias. Não me importo com o suposto organismo das sociedades, não me afeto pela descrição do reagente químico que faz das sociedades algo outro, melhor ou pior. Mas não é por hipocrisia. Mas por um sentido um pouco mais fino de ceticismo. Não preciso crer no invisível. Ou não preciso crer no que é menor do que um pigmento para ver a possibilidade de mudança. Afinal, não há razões para se tomar aquilo que não se vê como invisível, mas tão somente como aquilo que não se vê.

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O velho Galileu nos ensinou a revolução, e antes mesmo das grandes distinções tolas entre ciências do homem e ciências da natureza, e antes da sucessiva colonização das ciências do homem pelas ciências da natureza, fenômeno esse que nos dá a expectativa de ver explosões de transformação nas sociedades, pela palavra quis dizer que podemos imaginar alguma coisa com movimento e ter movimento nessa imagem. O destino da imaginação de Galileu era bastante pretensioso, e ele sabia que ver não é apenas ver, mas que ver é uma expectativa de movimento; a imagem do sol imóvel contraposto a translação dos planetas, por ser uma boa imagem, por si move. A percepção de que uma imagem que se move é uma grande coisa, é efetivamente uma grande coisa, mas melhor ainda é chamá-la, enquanto fenômeno, de revolução.

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Prever uma revolução é algo complicado, porque não existe uma constituição revolucionária. Os mesmos elementos de imagem, combinados, podem restar parados. E a mudança na relação entre eles, ou no sentido do tempo, para a combinação das imagens pode dar início ao processo revolucionário. Julgar que uma imagem terá movimento, não faz dela uma imagem com movimento. Por isso o espanto de Galileu, a boa surpresa. Pode-se dizer que a revolução é uma questão instituída, mas do instituído não se segue, necessariamente, o movimento. Dizer, depois do início de uma revolução, que seus elementos constitutivos explicam o movimento é apenas se referir a qualquer coisa. O artifício do historiador, aquele “veja, está tudo aí” não é de grande valia para se entender uma revolução, mas apenas para se entender o modo pelo qual se entende os elementos constituintes da mesma. Como também não serve o artifício do economista “veja, com esses números”. Uma revolução não pode ser compreendida por artifícios, mas apenas por uma filosofia dos artifícios. Uma filosofia do “veja, só agora podemos ver, porque agora a imagem se move”.

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Ainda que possamos falar em uma dialética da imagem, a dialética, em sua tradição, sempre foi uma filosofia da distinção da imagem. Deixando a imagem de um lado e a essência do outro. Como todo pensamento da essência, a dialética buscou poder dizer os elementos constituintes de uma revolução, e foi uma frustração não poder dizer a revolução por elementos históricos e econômicos. Mas a frustração também foi sentida, em momentos distintos, pelos regularistas sociais. A superioridade intelectual da dialética frente ao regularismo a fez desenvolver alegorias para explicar a impossibilidade de predição do fenômeno revolucionário. A melhor delas foi aquela que assumiu a intempestividade do tempo revolucionário, a idéia de que de alguma forma a história humana está sempre fora dos seus eixos, e para isso a dialética se uniu ao trágico. A famosa quebradura do tempo no 18 Brumário de Marx não é trágica, pois nada naquilo se reconcilia com nada, a história não salta para o eixo, mesmo depois de dois ou três tapas, mas concerne ao trágico. A tragédia e a farsa, o cedo e o tarde demais, o banho de sangue e o paraíso dos carrascos etc. não predizem a revolução, mas alegorizam a impredizibilidade.

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Will Eisner, por outro lado, entendeu melhor a natureza instituinte do tempo, bem como, a desnecessidade de alegorias. Em 1948, no dia 5 de Setembro, ele publicou A história de Gerhard Shnobble. Digamos que essa grafic novel traz uma bela e cética alternativa às finalidades alegoristas. Antes de qualquer coisa, Eisner faz uma advertência, diz-nos que não é uma história engraçada e nos pede para não rir.

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Shnobble é um ser humano comum, filho de pais comuns e criado para ser comum. No seu oitavo aniversário de vida escorrega do telhado […] ao invés de se esborrachar no chão, ele flana lentamente até o chão. Seu pai, assustado com aquela demonstração incomum, tem uma reação comum, dá uma surra em Shnobble o advertindo para nunca mais voar. A surra e as advertências fazem Shnobble esquecer a coisa toda.

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Já lá pelas tantas de sua maturidade, o jovem Shnobble é recompensado por sua obediência como bom empregado do banco, em que passou a trabalhar. Interessante é que os capitalistas estão sempre em quatro, e falam sempre todos juntos em uníssono. Nesse caso, eles falam que pela dedicação de 35 anos de trabalho, o nosso voador reprimido seria promovido a guarda noturno. Como era de se prever as coisas não ficam bem para o recém promovido vigia, o banco é assaltado e Shnobble leva um socão na cabeça, que o desacorda. É despertado dentro do cofre do banco, pelos quatro capitalistas uníssonos, sob protestos de explicações pelo acontecido. Não é preciso dizer que o nosso herói é demitido. E inconsolável passa a vagar pelas ruas da cidade.

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Uma trama paralela é iniciada na grafic novel. O Espírito – que assim é chamado, porque representa o espírito da cidade, uma espécie de Burggeist – acompanha a perseguição policial de alguns bandidos que estão escondidos num prédio. O cerco policial, contudo, esquece da possibilidade de fuga por helicóptero. O Espírito, ciente do perigo, corre para o local para impedir a escapada. […] Ao mesmo tempo Shnobble vaga pela cidade, buscando por sentido, balbuciando que queria fazer alguma coisa grande, que queria ser importante, até que, como num esclarecimento freudiano, lembra-se, “eu posso voar!”. […] O espírito sobe o elevador ao mesmo tempo em que o nosso voador amnésico recém curado, pois ambos rumam para o telhado, O Espírito para impedir a fuga, e Shnobble atraído pela multidão, cujo motivo de aglomeração ignora, que seria a vislumbradora de seu primeiro vôo público. […] São dois bandidos, enquanto o herói da gravata vermelha dá uma surra num dos bandidos, o outro o espreita fazendo mira com o revolver […] Shnobble salta do prédio e lindamente flana, mas se dá conta de que ninguém o está percebendo, faz algumas piruetas e tenta se aproximar do público […] O bandido que faz mira n’O Espírito acerta Shnobble.

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Como um novo filósofo da história, numa metade de página branca, com apenas o cadáver desastrado ao canto, Eisner termina assim a história: “Então, sem vida, Gerhard Shnobble flutuou até a terra. Mas não chore por Shnobble. Antes derrame uma lágrima pela humanidade. Porque ninguém na multidão viu, ou suspeitou, que naquele dia Shnobble tinha voado”.

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Posto que a revolução é uma imagem que se move. Não uma constituição que ganha vida. Mas uma instituição que adquire sentido. Cabe apenas, no processo que se segue, ao vôo, zelar para que a morte do tirano – ou apagamento, é a mesma coisa – não seja apenas um modo de aprofundar a servidão. Afinal de contas, não devemos gastar as nossas lágrimas com a humanidade, que pouco merece, mas com Shnobble, que, sabendo voar, como Eisner, marcou com seu sangue e tinta um novo sentido pelo qual vale a pena viver. Cabe ir à praça e comemorar, mas com olhos bem atentos para não perder a liberdade-já-perdida, ao invés de instituir uma nova. Spinoza um dia pensou isso, e o descreveu em seu Tratado Político. Se for para ter uma alegoria, que seja aquelas dos homens dos saltos frustrados e não a das matilhas sedentas por sangue. Afinal, morte e liberdade nem sempre se confundem.

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Cesar Kiraly

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.