Tous les arts sont poésies.
(Racine)
No dia vinte e cinco de agosto de 2017, o professor Rodrigo Brito me convidou para o evento “Marginália Filosófica”, então a acontecer na Universidade Federal de Sergipe. Um evento, disse ele a mim, que se pretende itinerante. Aceitei – sabendo que eu não podia escrever um texto convencional para o evento “Marginália Filosófica”. Eu só poderia escrever um texto marginal:
A poética está incompleta. A Poética de Aristóteles está incompleta. Ou seja: a Poética aristotélica está, para sempre, descomprometida – com a completude; descompromissada com o compromisso de ser completa; desobrigada de dizer tudo.
Ainda assim, “a Poética constitui um estudo sistemático e minucioso” (BINI, 2011, p.7). Parece, então, que a poética não pode ser sempre (“só”) um súbito êxtase – digo isso porque poderia parecer que a poética devesse ser, para sempre (ou melhor: poderia parecer que tudo devesse ser, para sempre), um súbito êxtase.
Aristóteles, na Poética, faz o estudo sistemático e minucioso de duas formas poéticas: a trágica e a épica. Ponto final e Aristóteles achou que tinha resolvido tudo. Ou, mais provavelmente, fomos nós que achamos que Aristóteles tinha resolvido tudo.
Aristóteles, segundo ele mesmo, resolveu o desvario: ele afirma que, na tragédia, a ação do espetáculo e o poeta são capazes de transmitir terror ou compaixão – não entre inimigos, mas a tragédia deve buscar que seus atores cometam ações semelhantes a um filho que mata a mãe, a uma mãe que mata o filho. Desvario – e uma tragédia impossível de se evitar: Édipo mata seu pai, Laio; Édipo se casa com sua mãe, Jocasta. Desvario: Édipo fura os próprios olhos. Aristóteles nos ensinou, sistemática e minuciosamente, sobre o desvario, sobre tudo, com sua Poética de “nítido cunho formativo” (BINI, 2011, p.7).
Na Poética, Aristóteles nos ensina, por exemplo, que a tragédia é melhor do que a epopeia. Você come uma tragédia, depois come uma epopeia, e você verá que a tragédia é melhor do que a epopeia. E a Poética de Aristóteles é melhor do que as outras artes poéticas? Por que temos de aprender, ainda hoje, com a Poética de Aristóteles? O célebre começo do texto de Diógenes Laércio – “dada a excelência desse homem em todos os campos de investigação” (LAÉRCIO apud BINI, 2011, p.25) – justifica a escolha pela Poética aristotélica? A gente come Aristóteles e depois diz se está bom? O poeta artista antropofágico deve devorar Aristóteles? Vamos comer Aristóteles?
A Poética é um estudo sistemático e minucioso sobre poética de cerca de trezentos anos antes de Cristo. Cerca de dois mil e trezentos anos depois, em 2015, o ministro da Educação japonês enviou uma carta às oitenta e seis Universidades do Japão pedindo que “sirvam áreas que contemplem as necessidades da sociedade”. Alguns reitores das Universidades japonesas consideraram o ato do ministro “anti-intelectual”; contudo, outros concordaram em reduzir ou fechar graduações de Humanidades – porque, afinal, elas não servem às necessidades da sociedade. Ou melhor: elas não servem para nada. Se bem que “nada / com um vidro na frente / já é alguma coisa // nada / com um vento batendo / já é alguma coisa // nada / com o tempo passando / já é alguma coisa // mas não é nada” (ANTUNES, 2015, p.9).
Não é nada, meio que disse o ministro da Educação japonês, provavelmente, quem sabe, por pressões financeiras devido a uma baixa taxa de natalidade em seu país, o que leva a uma diminuição no número de estudantes, o que leva a que muitas universidades japonesas funcionem com menos de cinquenta por cento de sua capacidade (O GLOBO, 2015). Vamos comer o ministro da Educação japonês? Vamos, poetasartistas antropofágicos, misturar no processador, misturar, mix, a Poética de Aristóteles com a carta do ministro da Educação japonês, comer e depois dizer se está bom? Gosta? “Gosta de poesia?”, ministro da Educação japonês.
Aristóteles parece que gostava de poesia. Ele disse que a poesia é mais filosófica, mais séria, mais elevada do que a história, “pois a poesia se ocupa mais do universal, ao passo que a história se restringe ao particular” (ARISTÓTELES, 1451b5). A poesia procura abranger tudo; o poeta lê e escreve e relê o livro do mundo, sabendo que “Talvez ler / o livro do mundo / seja também / saber perdê-lo.” (ASSIS, 2014, p.9). O historiador, de acordo com Aristóteles, é mais estreito, apertado; parece que, aferrado ao livro do mundo, não sabe perdê-lo. A poesia se estende a tudo – mas, para o ministro da Educação japonês, tudo é nada: nada.
A poesia, segundo Aristóteles, é mais séria do que a história não porque uma seja verso, e outra seja prosa. Não, nada. Heródoto, “o pai da história”, poderia versificar a história toda. Não é isso que faz com que a poesia seja mais elevada do que a história, mas o fato de que o historiador relata o que aconteceu realmente, enquanto o poeta, o que poderia ter acontecido (ARISTÓTELES, 1451b1). A poesia, para Aristóteles, é mais filosófica do que a história porque, evidentemente, “não é função do poeta realizar um relato exato dos eventos, mas sim daquilo que poderia acontecer e que é possível dentro da probabilidade ou da necessidade” (ARISTÓTELES, 1451a35). Então, a narrativa do poeta: “Ela diz na carta: / não era russa era alemã / e não era cientologia / era tibetologia / mas foi sim do russo / que ela traduziu / a tabuleta em frente / ao prédio: / ‘Os preceitos de Lênin / são verdadeiros’” (AZEVEDO, 2009, p.14) não precisa ser um relato exato dos eventos. Dessa forma, “ela” pode não ter dito o que o poeta diz ter ela escrito na carta. A carta pode não existir; nem “ela” que teria escrito uma carta. Pode ser que tudo isso não seja nada além do que o poeta escreveu. Mas um nada escrito já é alguma coisa. Mas não é nada.
Mas não é nada porque, realmente, pode não ter acontecido nada – além de poesia. Mas aí os pós-modernos comeram Aristóteles e disseram que o relato do historiador que conta o que aconteceu realmente é um discurso, e o discurso, como já tinha dito Górgias (que, poeticamente, podemos dizer que bem que tentou, mas não conseguiu comer Sócrates), “é um grande soberano que, por meio do menor e do mais inaparente dos corpos, realiza os atos mais divinos, pois ele tem o poder de dar fim ao medo, afastar a dor, produzir alegria, aumentar a piedade” (GÓRGIAS, Elogio de Helena). Engraçado que Aristóteles também devia saber desse poder demiúrgico do lógos, porque ele diz que, na tragédia, nós, espectadores ali na plateia, experimentamos a compaixão e o medo – e, dessa maneira, expurgamos esses sentimentos. Tudo bem que contribuía para haver essa katharsin – essa purgação, esse aliviamento (BINI, 2011, p.49, nota 50) – a ação dramatúrgica dos atores, mas também tinha a elocução do discurso metrificado, a poesia lírica, a narrativa. Então, Aristóteles deveria saber / sabia que a linguagem é um lógos criador de mundos – como o é a poesia. Afinal, o conceito grego poiesis implica numa criação, produção. Assim, o termo poesia já significa, em si mesmo, criação (produção) – de um poema.
Aristóteles deveria saber, sabia, mas, a par ter escrito a Poética, o filósofo de Estagira colocou as regras do pensamento correto e científico em seu tratado Da Interpretação, como se a linguagem fosse um instrumento, um veículo, uma ferramenta (um Órganon) de nossa afecção da alma (contemporaneamente vamos dizer: de nossa mente). Os “sons pronunciados” (a linguagem) seriam símbolos das afecções da alma (do nosso pensamento). Embora a linguagem não seja a mesma para todos (afinal, há gregos e bárbaros), as afecções da alma o são – nossa mente é idêntica, assim como são precisamente idênticos os objetos (o mundo, o real) de que nosso pensamento é imagem (ARISTÓTELES, 16a1-5). Logo, se não encontramos estabilidade na linguagem (posto que não é una), a harmonia essencial entre linguagem, pensamento e mundo é garantida porque o mundo é o mesmo para todos – e, mais importante, nossa mente é universalmente idêntica. É por isso que a linguagem pode funcionar como um instrumento, um veículo, uma ferramenta para representar o mundo e o nosso pensamento: porque todos temos a mesma afecção da alma. Nesse sentido, Aristóteles parece mais um poeta de uma lira sem cordas (AZEVEDO, 2010[1853], p.13) – ou um poeta sem lira: “poeta sem lira ó deslirado tua fórminx de fórmica vibra em ganidos metálicos” (CAMPOS, 2004[1984]). A Poética de Aristóteles está incompleta – falta (a) comédia na poética; sobra tragédia na poética.
Para Aristóteles, “a poesia épica e a trágica, bem como a cômica, a ditirâmbica e a maioria da interpretação com flauta e instrumentos de cordas dedilhados são todas, encaradas como um todo, tipos de imitação” (ARISTÓTELES, 1447a110). De acordo com Aristóteles, a poesia imita– assim como cores e formas imitam. A poesia imita bem como “um pequeno veleiro tremulante no horizonte […] imita em sua pequenez e isolamento minha existência irremediável” (BAUDELAIRE, 1995[1869], p.19). A poesia imita, e também cores e formas podem imitar o pequeno veleiro que imita a existência irremediável de Baudelaire. Segundo Aristóteles, “no ser humano a propensão à imitação é instintiva desde a infância […] e é através da imitação que [o ser humano] desenvolve seus primeiros conhecimentos” (ARISTÓTELES, 1448b15). Na medida em que os artistas fazem arte por imitação, esse conceito, mimesis, é basilar no pensamento aristotélico da Poética: os artistas retratam, representam – daí todas essas artes a que Aristóteles se refere (a poesia, a pintura, a escultura) serem imitativas, miméticas (BINI, 2011, p.41, nota 16). Imita assim: a poesia imita um pequeno veleiro tremulante no horizonte, que imita, em sua pequenez e isolamento, a existência irremediável do poeta. A poesia imita: veleiro, poeta, mar por onde anda bem a vela. O poeta imita: o veleiro, a si próprio, a si próprio lançado ao mar – “Sabe para que serve o mar? / Para enfeitar o mundo.” (BRITO, 2002[1982], p.26). No entanto: enfeitar o mundo é o mesmo que contemplar “as necessidades da sociedade”? Se não, então para que serve mesmo o mar? O mar serve para enfeitar o mundo – quer dizer, “para nada”, diria o ministro da Educação japonês.
O mar serve para enfeitar o mundo – e para ser imitado pelo poeta, pelo pintor, pelo escultor. O poeta (o pintor, o escultor) imita as pessoas: “sendo elas necessariamente boas ou más, […] eles [os artistas] estão capacitados a representar as pessoas acima de nosso próprio nível normal, abaixo dele, ou tal como somos” (ARISTÓTELES, 1448a1). De acordo com Aristóteles, o caráter humano quase sempre se ajusta a esses dois tipos: pessoas boas e pessoas más – virtuosas, viciosas. A comédia “tende a representar as pessoas como inferiores aos seres humanos reais, enquanto a tragédia as representa como superiores” (ARISTÓTELES, 1448a115). O caráter humano quase sempre se ajusta a esses dois tipos: pessoas inferiores, pessoas superiores. Aqui Aristóteles ainda não considerou o caráter humano ajustado a pessoas felizes e a pessoas infelizes.
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om (e.e. wittgenstein) (CAMPOS, 2003[1996])
Aristóteles ainda não falou do mundo dos felizes nem do mundo dos infelizes, mas agora falo do prazer. Para ele, “toda a poética tem na sua origem duas causas, ambas naturais”: a propensão à imitação (sobre a qual já falamos) – e, por intermédio dela, “todos experimentam naturalmente prazer” (ARISTÓTELES, 1448b15). Será que o mundo dos infelizes é um mundo sem poesia? Porque “olhar imagens faz as pessoas experimentarem prazer” (ARISTÓTELES, 1448b110). Será que o mundo dos infelizes é um mundo sem arte? “o teste da beleza / na espera da alegria / pela tristeza / na espera da tristeza / pela alegria” (DOMENECK, 2005, p.85-86). Tristeza. Alegria. Aí Aristóteles diz que “a tragédia não é imitação dos seres humanos, mas da ação e da vida, da felicidade e da infelicidade” (ARISTÓTELES, 1450a115). A tragédia imita a vida – felicidade, infelicidade. Com a tragédia, nós, plateia, expurgamos sentimentos: compaixão, medo. Expurgamos compaixão medo com a ação dramatúrgica dos atores e com a elocução do discurso metrificado, com a poesia lírica, com a narrativa. Com a tragédia, a gente imita a felicidade. O ministro da Educação japonês quer que as Universidades japonesas “sirvam áreas que contemplem as necessidades da sociedade”. Oh, que infelicidade! A poesia contempla a felicidade – mas isso, segundo o ministro da Educação japonês, não é a necessidade da sociedade. A poesia… ah, a poesia…! Mas não é nada: nonada.
A poesia contempla a felicidade, mas, previne Aristóteles, não basta escrever com métrica para ser poesia. Tem de saber “A consistência exata dessa insônia / a forma certa desse medo” (BRITTO, 1989[1982], p.23). Tem de saber não só de métrica, mas de ritmo, de melodia – etc.
Além do mais, afirma Aristóteles, o belo tem “certas dimensões apropriadas, e não devidas ao acaso. O belo consiste numa certa grandeza e ordem” (ARISTÓTELES, 1450b135). A forma do poema, o tamanho do poema – nada, nada é por acaso para o poeta. O poema tem certa grandeza – certa; certa ordem – certa. O poema é: “Um poema não deveria significar / Mas ser” (MacLEISH, Ars Poetica apud COHEN, 2002, p.561). Ser um poema. Ser nada.
Os poetas, segundo Aristóteles, fazem o possível parecer plausível: o fato de inventarem fatos e nomes fictícios não diminui o prazer que nos proporcionam (ARISTÓTELES, 1451b120). Os poetas fazem o possível [para] criar prazer. [Há de se lembrar que o texto de Aristóteles, como um texto antigo, possui lacunas que os comentadores procuram completar com gorduras injetadas entre colchetes, achando que, com isso, ajudam a interpretar o texto aristotélico.] O poeta cria [prazer] com base na probabilidade; o poeta faz o possível para criar prazer. “Primeiro – o Coração pede Prazer – / Depois – que a Dor doa menos / Depois – os Anódinos pequenos / Que amortecem o sofrer –” (DICKINSON, 1999[1890], p.39). Um poema: uma pílula para amortecer, para fazer sumir a dor. A poesia: um prazer. Eu, você, vocês, Aristóteles, um poema: muito prazer.
Aristóteles dá a receita para se conseguir tragicidade na tragédia: “cabe-nos examinar, relativamente à construção das narrativas, o que deve ser almejado e o que deve ser evitado, e como conseguir o efeito do trágico. Como a estrutura da mais bela tragédia não deve ser simples, mas complexa, bem como capaz de imitar eventos que provocam medo e compaixão (porquanto é isso que caracteriza tal imitação), fica claro, em primeiro lugar, que nem devem homens de bom caráter ser mostrados passando da boa sorte ao infortúnio, visto que isso não provoca medo ou compaixão, mas sim repugnância, nem devem aqueles de mau caráter ser mostrados passando da má sorte à boa sorte, visto ser isso, entre todas as coisas, o que há de mais não trágico, carente de todas as qualidades que constituem requisito [da tragédia], porquanto não desperta nem amor à humanidade, nem compaixão, nem medo.” (ARISTÓTELES, 1452b125-35). Ou seja: nosso desejo trágico é por uma narrativa que imite uma espécie de castigo – para expurgarmos nosso medo, os “maus” não podem ter um final feliz. Isto é: nosso desejo trágico é por uma narrativa que imite uma espécie de premiação: para aliviarmos nossa compaixão, temos amor aos “bons” e desejamos que eles tenham um happy end. “Bem localizado / no sofá começo a assistir pela undécima vez / a Blade Runner. Cheio de esperança / penso no futuro de milhares de pessoas / dentre as quais os replicantes.” (GANDOLFI, 2015, p.39). A gente expurga (repetidamente) com a poesia: a gente se acomoda no sofá para experienciarmos medo, compaixão. A gente tem medo e, também, compaixão pelos replicantes de Blade Runner, por esses seres que, replicados, reproduzidos, imitados, mimetizados de nós, foram criados (a partir de nós) para executarem as tarefas mais hostis. Uma tragédia – afinal, os replicantes são seres superiores a nós. Harrison Ford caça replicantes: medo, compaixão. A poesia que não serve às necessidades da sociedade; a poesia como lócus de pensamento sobre a vida. Mas não é nada, não.
Aristóteles dá (outra) receita para se conseguir tragicidade na tragédia: personagens trágicas, vítimas ou algozes de crimes entre os seus – incesto, fratricídio, patricídio, matricídio, infanticídio. Mais trágicas serão se as personagens fizerem o que fizeram por acidente; se não forem más por si mesmas – se não tiverem mau caráter: assim serão, tout court, personagens trágicas. Procuro no Google: “quando a mãe mata o filho” buscando uma palavra melhor do que “infanticídio”. Encontro a vida real: mãe mata filho e queima corpo por não aceitar sua homossexualidade (Brasil247, 2017). Encontro vida real trágica: mãe armou emboscada para matar o filho por ele ser gay. Ah, a vida…! Ah, a vida dessa família daria um romance – ou uma tragédia.
Aristóteles diz que o poeta deve “ser inventivo e utilizar bem as histórias legadas pela tradição” (ARISTÓTELES, 1453b120), posto que as histórias se repetem – a forma é que varia. Aí o próprio estagirita reconhece que tem de explicar melhor o que quer dizer com “utilizar bem” as histórias legadas pela tradição. Uma opção é, como faziam os poetas antigos, dar existência a personagens que agem com ciência, consciência. Exemplo: Eurípedes fez Medea matar seus filhos; ou seja, “quando a mãe mata o filho” conscientemente, como na tragédia grega antiga. Ah, a vida que imita, que mimetiza, cuspida e escarrada, a arte…!
“Utilizar bem” as histórias legadas pela tradição abarca outra possibilidade, melhor do que a primeira, segundo Aristóteles. Exemplo (desvario): Édipo, de Sófocles, descobriu seu parentesco com aqueles que sofreram com suas ações só depois de ter praticado seus atos; ações terríveis – que cometera não conscientemente, mas na ignorância. Melhor do que “quando a mãe mata o filho” conscientemente, armando uma emboscada por ele ser gay.
Melhor ainda, para Aristóteles, é uma terceira (e última) opção para “utilizar bem” as histórias legadas pela tradição: uma personagem ignorante de que cometerá um erro irreparável reconhece o parentesco na iminência do seu ato e, assim, não o faz. Exemplo: Merope identifica seu filho a tempo de cometer o ato brutal de matá-lo. Essas são, para Aristóteles, as limitadas opções do poeta – “devido a isso […], não são muitas as famílias que suprem temas às tragédias” (ARISTÓTELES, 1454a15). São poucas as famílias que servem de mote a tragédias – gregas. As histórias se repetem porque nem toda família se presta à tragédia; os poetas são forçados a se servir dessas que passaram por infortúnios – como Édipo, como o menino morto, corpo carbonizado, gay. Gay: alegre. Gay: trágico.
Na tragédia, nós, espectadores ali na plateia, experimentamos a compaixão e o medo – e, então, expurgamos esses sentimentos. Na vida, nós, eu e vocês e Aristóteles, podemos experimentar compaixão e medo e expurgar esses sentimentos? “E quando pensas VIDA QUE ESMORECE. E retomas / Luta, ascese, e as mós vão triturando / Tua esmaltada garganta… Mas assim mesmo / Canta! Ainda que se desfaçam ilhargas, trilhas… / Canta o começo e o fim. Como se fosse verdade / A esperança.” (HILST, 2002[1995], p.25). A katharsin – essa purgação, esse aliviamento – canta como se fosse verdade a esperança?
Nós, espectadores ali na plateia de uma tragédia, experimentamos a compaixão e o medo – e, dessa maneira, expurgamos esses sentimentos assistindo a uma imitação de nós, a uma mimesis de seres melhores do que nós: “Como a tragédia é imitação daqueles que são melhores do que nós, convém agir como os bons pintores de retratos, que reproduzem os traços distintivos de um indivíduo e, concomitantemente, sem perder de vista a semelhança, aumentam a beleza dele. Do mesmo modo, o poeta, ao retratar pessoas irascíveis e indolentes, e outras dotadas de falhas semelhantes no caráter, deve, a despeito de representá-las como são, torná-las detentoras de equidade.” (ARISTÓTELES, 1454b15-10). O poeta, então, segundo o filósofo estagirita, deve aumentar nossa beleza, deve pintar um mundo mais belo do que é – como se fôssemos melhores do que somos, como “UM QUADRO DE RUBENS”: “Vi-me comoprimida / num ajuntagente / ora eu só suporto pessoas à distância / de preferência com uma mesa de permeio / acontece que uma mulher foi projectada / para cima de mim com um cigarro aceso / há pessoas que vão para ajuntagentes / fumar cigarros! / ora eu temo as queimaduras” (LOPES, 2002[1985], p.12). Um pintor, por exemplo, Rubens, pode pintar quadros em que não há lugar para nós. Uma poeta, por exemplo, Adília Lopes, pode pintar personagens irascíveis, indolentes – e, ainda assim, serem melhores do que nós. Porque a poesia imita – melhor. Porque a poesia dá prazer. Ah, a poesia…
Diz Aristóteles que “a criação poética é obra de pessoas bem dotadas ou pessoas exaltadas: as primeiras têm facilidade para modelar caracteres, enquanto as segundas, para o arrebatamento” (ARISTÓTELES, 1455a130). O poeta é um cara que tem um dom; é uma pessoa elevada: manikoy, o êxtase da inspiração divina é identificado com o delírio provocado pela loucura” (BINI, 2011, p.69, nota 131). O poeta tem talento, tem fúria para provocar êxtase. A inspiração do poeta; a loucura do poeta: “Diz logo prudentaço, e repousado, / Fulano é um satírico, é um louco, / De língua má, de coração danado.” (MATOS, 1997[1637-1696], p.49). O poeta: um louco – cáustico, corrosivo. O poeta: linguarudo, coraçãozudo. O poeta é uma necessidade da sociedade? O poeta: de língua má, de coração danado? “Danado mais que se dane!”, meio que disse o ministro da Educação japonês meio que sem educação.
Aristóteles tinha educação: a Poética tem “nítido cunho formativo” (BINI, 2011, p.7). Na Poética, Aristóteles nos ensina, por exemplo, que há oito tipos de palavra; por exemplo: a palavra que era um “termo padrão” era aquela do “uso ordinário de uma comunidade” (ARISTÓTELES, 1457b1). Já a metáfora – ah, a metáfora: “A metáfora é aplicação de um nome que pertence a uma outra coisa, quer transferência do gênero à espécie, da espécie ao gênero, da espécie à espécie, quer por analogia.” (ARISTÓTELES, 1457b15). Assim: por analogia, Julieta é, para Romeu, uma rosa. Um nome que pertence a uma outra coisa: “uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa” (STEIN, 1922) – mas, para Romeu, Julieta é que é uma rosa. Então, ah, “gertrude stein era gertrude stein era gertrude stein” (FREITAS, 2007, p.37), mas, por analogia, uma rosa não é uma rosa: uma rosa é Julieta. O ministro da Educação japonês é o ministro da Educação japonês é o ministro da Educação japonês – mas um ministro da Educação japonês contempla as necessidades da sociedade?
Além do termo padrão, além da metáfora, há “o termo cunhado”, que é aquele “forjado pelo próprio poeta” (ARISTÓTELES, 1457b130). O poeta tem talento e fúria para o neologismo: “na invidência sigo” (GLENADEL, 2005, p.29), diz a poeta; neologiza a poeta. O poeta, de acordo com Aristóteles, tem de ser claro sem ser vulgar (ARISTÓTELES, 1458a115): “É necessário, portanto, efetuar uma certa mistura de termos na composição: termos dialetais, metáforas, linguagem ornamental e os outros tipos que indicamos evitarão que o discurso seja prosaico ou vulgar, ao passo que os termos padrões assegurarão a clareza” (ARISTÓTELES, 1458a130). Coloque na massa e misture ao ordinário, ao claro, as metáforas, a rosa, a Julieta, a Gertrud Stein, um elefante, misture a termos dialetais, estrangeiros, mix, misture tudo no mix processador: o claro, a rosa, a Gertrud Stein, e veja no que dá – segundo o ministro da Educação japonês, nada. Nada que contemple as necessidades da sociedade. Um nada misturado a outro nada já é alguma coisa. “Um poeta mistura nada a coisa nenhuma”, meio que disse o ministro da Educação japonês meio que sem finesse. “Sei que, enquanto viver, nada me justifica / já que barro o caminho para mim mesma. / Não me julgue má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas, / e depois me esforçar para fazê-las parecer leves.” (SZYMBORSKA, 2011[1972], p.51). O que você está lendo, leitor? Words, words, words…palavras, palavras, palavras… Mas não julgue mal. Lembra? “A vida é um conto contado por um idiota, cheio de som e fúria, significando nada.” (SHAKESPEARE, Macbeth). A vida significa nada. Nada. (Encontro) A vida (real): mãe mata filho e queima corpo por não aceitar sua homossexualidade. Words, words, words… Nada. A vida: ____. Mas nada com palavras já é alguma coisa. Mas não é nada.
A poesia narrativa, diz Aristóteles, “é a imitação utilizando o verso […], de modo que a obra possa […] produzir o prazer que lhe é próprio.” (ARISTÓTELES, 1459a115). Poesia: imitação a verso. Poesia: fazer o parecer ser. Poesia: “Que parecer termine em ser somente. / O único imperador é o imperador do sorvete.” (STEVENS, 1987[1931], p.23). Poesia: que a forma termine em fundo somente; que a obra em verso produza prazer. Um nada que dá prazer já é alguma coisa. Mas não é nada; parece ser nada. O único ministro da Educação japonês é o imperador do sorvete.
Provavelmente Aristóteles teve um “Gran finale com gastrite” (DASSIE, 2016, p.23): o estagirita provavelmente morreu vitimado por uma enfermidade gástrica de que sofria há muito tempo – ou, segundo Diógenes Laércio, suicidou-se tomando cicuta (BINI, 2011, p.14). O ministro da Educação japonês, até onde sabemos, não cometeu haraquiri. O ministro da Educação japonês, provavelmente, traumatizou-se ao ler Bashô na escola. Provavelmente. O ministro da Educação japonês, provavelmente, não experimentou a compaixão, o medo, ao ler haicais em sua escola japonesa.
O ministro da Educação japonês, provavelmente, não experimentou a compaixão, o medo, ao ler haicais na escola japonesa, apesar de tanta coisa para expurgar. Então, vamos comer o ministro da Educação japonês, o imperador do sorvete? Vamos, poetas artistas antropofágicos, misturar no processador, misturar, mix, a poesia, ah, a poesia… sempre mais elevada do que a história… vamos, poetasartistas antropofágicos, misturar a poesia à história, à filosofia, à vida, ah, a vida… que sempre imita, mimetiza, come, cospe e escarra a arte… vamos, poetasartistas antropofágicos, misturar tudo no processador, misturar, mix – e, depois, conscientemente, desvario!, vamos comer o ministro da Educação japonês. E, então, nós, eu e vocês e Aristóteles, na vida, experimentamos a compaixão e o medo – e, dessa maneira, expurgamos esses sentimentos. E se comer o ministro da Educação japonês serve às necessidades da sociedade de expurgar compaixão e medo já é alguma coisa.
Essa katharsin – essa purgação, esse aliviamento – acontece no velho tanque, quando a rã salta, tomba, e o rumor de água… ah, a poesia…! Mas não é nada. Mas um nada num texto marginal já é alguma coisa. Mas não é nada.
(Neste texto há diálogos com Francisco Alvim, Ana Luísa Amaral, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Arnaldo Antunes, Laura Assis, Carlito Azevedo, Álvares de Azevedo, Charles Baudelaire, Paulo Henriques Britto, Cacaso, Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Franklin Alves Dassie, Ricardo Domeneck, Archibald MacLeish, Emily Dickinson, Angélica Freitas, Leonardo Gandolfi, Hilda Hilst, Adília Lopes, Gregório de Matos, Gertrude Stein, Paula Glenadel, Wallace Stevens, Wislawa Szymborska, William Shakespeare, Elizabeth Bishop, Bashô.)
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Ana Paula El-Jaick
ANTUNES, A. Agora aqui ninguém precisa de si. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
ARISTÓTELES. Da interpretação. Tradução: José Veríssimo Teixeira da Mata. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2013.
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