Um outro Gilberto: em torno da modernidade e dos sentimentos por ela despertados – Número 117 – 01/2014 – [02-18]

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No ensaio que segue apresentarei uma análise estrutural de grande parte do pensamento de Gilberto Freyre. Chamo-a desta forma porque minha análise procura argumentar que a trilogia freyriana destina-se à indagação de uma questão persistente talvez em todo o trabalho do sociólogo pernambucano e, busco organizá-la de modo a atribuir o sentido das causas e os possíveis efeitos do fenômeno modernizador na sociologia de Freyre. Na leitura norbertiana que faço de Freyre a modernização consiste num processo de desintegração de elementos culturais originários para o estabelecimento de padrões de comportamento outros. Chamo, influenciada pela leitura do autor pernambucano, de instituições da vida íntima a família, a função social do pai, bem como todas as relações existentes no complexo patriarcal e denomino instituições formais a República, a democracia liberal, o voto. Parto do princípio de que em sua trilogia intitulada Introdução à história da sociedade patriarcal brasileira o autor nos fornece uma imagem do Brasil. Nesta reflexão me interessa resgatar a imagem da sociedade no que tange às suas possibilidades políticas. A premissa da imagem que resgato nessas linhas deriva de artigo publicado em 1987 por Antonio Candido, quando da morte de Gilberto Freyre; nele o célebre crítico literário apresenta a relevância da visão de Brasil trazida pelo sociólogo pernambucano. Casa Grande e Senzala não seria um clássico apenas pelos argumentos que traz à tona para se pensar o país, mas por fornecer uma imagem de cores fortes da experiência nacional brasileira. Freyre foi um sociólogo produtor de sentimentos; discordando-se ou não de seus argumentos, sua interpretação sobre o país provocou sentimentos. E não poderia ser diferente pois sua sociologia se faz orientada por uma tentativa de compreensão de determinados sentimentos, e aqui entendo o termo como o sentido histórico das sensações percebidas no social1. A história das representações intelectuais de nosso país é também uma história dos sentimentos projetados sobre a nação e de uma procura por sentimentos na vida social; um conhecimento que não abre mão de produzir e reproduzir diferentes tipos de carga sentimental. Então, em torno da narrativa sobre a fundação republicana feita em Ordem e Progresso há uma narrativa que visa explicar o sentimento de estranheza despertado pelo episódio político. E uma vez identificado tal sentimento, Gilberto Freyre busca compreender o sentido e as explicações sociais e históricass possíveis para ele.

Segundo Freyre o Brasil seria uma experiência social bem-sucedida, e com grandes possibilidades para o futuro; Freyre atribuiu positividade às marcas distintivas da formação social do país, ainda que tal tema consistisse num mal-estar intelectual desde o século XIX: o tema da escravidão. Então, da violência e desigualdade promovidas pela dicotomia senhor-escravo teria emergido uma estrutura social culturalmente híbrida, abarcando valores e costumes de grupos étnicos em contrastante condição social, uns eram os donos dos outros. A condição de escravo não constituiu impedimento para que este tivesse interagido sexual e culturalmente com o elemento branco dominador, tornando-se, portanto, um agente tão importante e contribuidor da cultura brasileira quanto o elemento dominador.

O título deste ensaio sugere uma atitude diante da obra freyriana que se põe em diálogo claro com o já referido ensaio de Antonio Candido, publicado há vinte e cinco anos atrás. Naquela ocasião Candido pretendia apresentar aquele Gilberto de 1933, em contrapartida ao velho Gilberto Freyre que a muitos decepcionou por sua defesa ao salazarismo e pelo intenso apoio inicial ao golpe militar. Enfim, tratava-se de negar o que veio do pensamento freyriano com o desenvolvimento do lusotropicalismo nos anos 60 e quiçá de tudo o que fora desenvolvido a partir dos anos 50 e 60. Minha ideia também é utilizar o recorte proposto por Candido como ponto de partida, porém pensando além do livro de 33 e com outro enfoque. E, diferentemente da maioria das reflexões sobre a obra freyriana pretendo aqui tomar a obra de 33 como ponto de partida – e não de chegada – para uma imagem da nação que se inicia nesta obra mas só se conclui com o trabalho de 59.

Minha proposta consiste numa análise que observa as três obras, quais sejam, Casa e Senzala, Sobrados e Mucambos, e Ordem e Progresso, de 1933,1936 e 1959, respectivamente, enquanto componentes teóricos para a identificação dos elementos distintivos da nacionalidade e do tipo social nacional identificado por Freyre. Da constituição de uma história originária da qual teria se desdobrado um tipo social de homem e não só de homem, mas de mulheres e crianças – que desempenham papel significativo em sua obra -, adviria a sociedade brasileira. As possibilidades políticas desta nação estariam circunscritas ao passado porque ele seria o revelador do caráter brasileiro. Ora, uma tentativa de esboçar um caráter não poderia ignorar a função social do sentimento, ou seja, o sentimento é a inscrição, no tempo, das sensações e o caráter, espírito ou ethos consiste num esforço intelectual de conceder relativa unidade ao sentido de um dado conjunto de ações

Para conhecer a ordem política deve-se conhecer o povo que a sustenta, e na compreensão de seu passado se compreenderá o seu caráter ou seu espírito. Em Ordem e Progresso há a formulação de um tempo ou espírito brasileiro, uma unidade sociológica que daria forma à visão de mundo do indivíduo brasileiro, uma forma de se conceber em sociedade e na política. E somente neste tempo, tempo experimentado pelos brasileiros a partir de sua forma de se compreender na sociedade e na política, as mudanças quer políticas quer sociais efetivar-se-iam. Gilberto Freyre apresenta uma longa análise acerca das transformações por que passava  o país na virada do século XIX para o XX. Tratando do fim da escravidão e da implantação do regime republicano, o sociólogo pernambucano aponta para um descompasso do tempo da sociedade com relação ao tempo político.  Aqui  ressalto que o termo tempo também significa ritmo, ou seja, o modo de absorver as mudanças sociais; quando for mencionado tempo político e tempo social, estou a referir-me que o ritmo da sociedade, que antes era correspondente ao tempo político, descolou-se deste. Este ritmo seria consequência do significado mais importante da expressão tempo brasileiro, o termo tempo designando espírito brasileiro aparecerá mais vezes, e constitui o ethos particular do povo brasileiro2. O espírito brasileiro caracterizava um ritmo lento. A ordem republicana exigia da sociedade mais do que a criação de uma Constituição Federal Republicana, tal como fora promulgada a Carta de 24 de fevereiro de 1891.

Aproximando-se do procedimento investigativo utilizado por Montesquieu no clássico O espírito das leis, Freyre acreditava ser necessário a consolidação de uma ordem sociológica capaz de efetivar o funcionamento de um dado regime; não bastava a criação de uma Constituição pois era necessário que a ordem social se encontrasse em consonância com a forma política adotada, afinal não apenas esta última orientava a vida dos homens, mas outras aspectos da vida: o clima, a religião, as leis, as máximas do governo, os exemplos do passado, os costumes, as maneiras, de onde se forma um espírito geral que disto resulta3. (MONTESQUIEU, 1996, p. 317) Para cada forma política haveria um espírito. Gilberto Freyre preocupa-se justamente com esses outros fatores governantes dos homens que não a objetividade da lei. Para se obter conhecimento político sobre o Brasil era necessário conhecer bem sua sociedade pois nela encontravam-se suas possibilidades políticas. Freyre procurou apresentar o espírito brasileiro decorrente da formação social do país e as possibilidades que este espírito se modificasse no sentido de tornar-se mais semelhante ao espírito liberal-democrático correspondente à Constituição de 1891.

Apresentando a noção de progresso predominante na elite nacional no início do século XX Gilberto Freyre coloca-se contrário à percepção do progresso enquanto escala ininterrupta ou como processo de evolução irreversível. Sua abordagem parte de um posicionamento crítico quanto a esta postura e àqueles intelectuais brasileiros que buscavam a mudança política no Brasil como uma forma de promover uma evolução imediata da sociedade. Dessa forma, o autor apresenta a primeira experiência republicana enquanto movimento incompleto, uma vez que os demais fatores que governam os homens, quais sejam, os exemplos do passado, costumes e maneiras, sobretudo, não teriam sofrido grandes alterações. A estes fatores resistentes às mudanças por progresso ou, de outra maneira, aos esforços por modernidade, Freyre chamou tempo. Não tempo em sua acepção mais ordinária, como a sucessão de momentos, mas como um conjunto sociológico capaz de oferecer suporte às ações e aos modos de pensar e agir numa dada sociedade; tempo como espírito. Nesse sentido, a busca por modernização assume no pensamento de Gilberto Freyre ares de um confronto: de um lado o tempo social dos milhares de brasileiros, cujo ritmo ainda caracterizava-se pela lentidão de um estilo agrário e de outro há o tempo modernizador representando os anseios exaltados por progresso. Importante frisar que o lado conservador e lento não se opunha à mudança, mas seria avesso à tentativa radical e brusca de mudança.

Então o que se deve descobrir sobre uma nação para se explorar verdadeiramente suas possibilidades políticas consiste no tempo que rege esta ordem social, no estudo sobre qual seria o padrão psicológico, estabelecido cultural e historicamente, que por sua vez definiria o modus vivendi brasileiro. Este tempo é elaborado a partir de uma narrativa de gênese, que se realiza em Casa Grande e Senzala quando o sociólogo apresenta os pressupostos sociológicos da formação brasileira. O primeiro contato desta estrutura social com projetos modernizadores se dá em Sobrados e Mucambos, quando a vinda da Família Real produziu diversas mudanças administrativas e a própria chegada da corte portuguesa tendeu a promover um contato com um tempo outro, urbano e industrializado – ainda que de modo incipiente – um tempo ou espírito europeu.

Concentro meus esforços no tema da modernidade. Nesse sentido os argumentos centrais da trilogia poderiam ser definidos da seguinte maneira: de um lado há a preocupação em mostrar a origem do caráter de um povo lento e conservador e de como se deram os primeiros embates no que se refere à implantação de um projeto modernizador possível, de modo a tornar o país coerente com a ordem cultural e civilizatória do mundo ocidental. De outro lado há nas entrelinhas desta narrativa maior as possibilidades de se delinear a relação entre sociedade e política que teriam vigido no Brasil até a implantação da ordem republicana. Nesse aspecto destaca-se o sentimento; ele consiste na reação da sociedade à mudança política pretendida. A partir da descrição que Gilberto Freyre faz das relações domésticas é possível estabelecer um paralelo para o comportamento político brasileiro. Pretendo apresentar adiante a batalha dos tempos, um conservador e agrário e outro urbano e social presente nas obras de 36 e 59. Em sequência, desenvolverei a relação presente entre homem comum e política no império segundo este autor; por fim, apresentarei o esforço freyriano de compreender a reação da sociedade diante das mudanças políticas através de uma tentativa de compreender a sociedade brasileira através do sentimento.

Tempos em conflito: civilização versus origem 

Os primeiros esforços por modernidade se deram no Brasil, segundo Gilberto Freyre, a partir da vinda da Família Real portuguesa, no começo do século XIX. Durante este período tais preocupações teriam sofrido forte intensificação, e se manifestavam a partir de discussões e sobre modificações na economia, política e sociedade, tendo-se sempre como parâmetro as nações líderes da parte ocidental da Europa. O autor prossegue afirmando que a busca pelo padrão europeu de civilidade se deu desde as discussões acerca de questões de ordem e organização pública até a adesão às normas de etiqueta em voga Mundo Velho afora. Conforme aponta Elide Rugai, o tema da modernização é crucial no pensamento do sociólogo e pode ser compreendido enquanto elemento promovedor de modificação das relações sociais, no sentido de modificar o comportamento recente quando comparado à sua respectiva origem social. Tendo em mente a ênfase do olhar sociológico de Freyre para os processos de transição as palavras de Elide Bastos merecem ser frisadas:

Se apontamos anteriormente como temática privilegiada de Gilberto a transição ao moderno, podemos dizer que a questão principal que a articula é a indagação sobre o que sucedeu com as relações sociais, formas de vida e modos de pensamento que foram suprimidos nesse processo de transição. (BASTOS, 2006, p. 181)

Da perspectiva de Freyre tratava-se, então, de apreender, desde a confecção de Sobrados e Mucambos, os efeitos das modificações decorrentes de tal processo modernizador-civilizador que consistia, antes de tudo, num movimento histórico-sociológico de restrição das marcas originárias da sociedade a partir da adesão de valores e padrões extra-nacionais. Em virtude do caráter conservador atribuído à sociedade brasileira, as formas de vida autóctones e suas respectivas relações interumanas iam encontrando formas de se reequilibrar conforme as mudanças sociais, sem contudo desaparecerem, daí a ideia de indissolubilidade mínima, que impediria uma adesão simétrica das experiências sociais europeias. Devido à forma como tal processo é apontado em Sobrados e Mucambos, sobretudo, acho pertinente à alusão ao processo civilizador apresentado por Norbert Elias. Em Uma história dos costumes, o sociólogo francês apresenta como os manuais de boas maneiras representavam uma forma de supressão dos antigos hábitos para formas de convívio padronizadas e tidas como superiores.

A função de sediar o reino português na primeira metade do século XIX trouxe inúmeros desdobramentos para a vida colonial; mas essas modificações não teriam se limitado à esfera político-administrativa. Diante das novas tendências de como se comportar, das reformulações no padrão do gosto, a maior parte da sociedade brasileira teria reagido de modo avesso à mudança. Ao nível cotidiano, a experiência modernizadora do gosto e do comportamento parecia sofrer forte resistência dos valores agrários tradicionais, conforme nosso autor relata no fragmento abaixo:

E o padre Lopes Gama indignava-se de só enxergar em torno de si gamenhos com jaquetinhas pelas ‘virilhas’, ‘barbas e bigodes de mouro’, ‘meias alcatifadas’, bachareletes que já não tomavam a benção aos velhos porque ‘tal usança cheira a tempos gothicos (sic) e degrada o nobre orgulho de hum jovem quando basta hum simples cotejo de cabeça assim por modo de lagartixa’; elegantes que durante a missa davam as costas ao altar para se entreterem com o ‘madamismo’. Contra eles, o padre conservou-se intransigente nos seus gostos e estilos de vida: os do seu tempo de menino, criado pela avó. O século XVIII ainda ruralmente patriarcal em seus aspectos mais característicos. Época de gente boa, de respeito dos filhos aos pais, de homens direitos e fortes que chegavam a ‘grandes idades’, de donas de casa diligentes, de doces gostosos e lombos de vitela que vinham à mesa rechinando na frigideira – só os dias da finada sua avó. O século XVIII. O Brasil sem carros de cavalo correndo pelas ruas sem mecânicos ingleses manejando máquinas misteriosas, sem modistas francesas, sem doutores formados na França e na Alemanha, sem óperas italianas contadas nos teatros, sem os moços tomando os lugares dos velhos. (FREYRE, 2006, p.127)

A reação do padre Lopes Gama constituía mais que uma opinião individual, seria mesmo uma forma sociológica de lidar com a mudança, apontada já em Sobrados e Mucambos. Há na interpretação de Gilberto Freyre sobre a sociedade brasileira um paradigma da lentidão, de um ritmo desacelerado de experimentar a mudança nos costumes, um quase instinto conservador, dirá ele mais tarde em Ordem e Progresso. Com a vinda da Família Real à colônia e o posterior processo de independência, o fenômeno de racionalização e complexidade da administração pública teriam se intensificado. Simultaneamente a este processo na ordem política, seria possível observar uma mudança na ordem social, e a adesão aos novos costumes e opiniões não surgiram de modo imediato, mas através de uma resistência diária e com adaptações à realidade do trópico.

A implantação do regime republicano deve ser compreendida enquanto o segundo importante momento de tentativa de modernização da sociedade, e junto da busca por renovação no plano político houve também a busca por modificação da economia, dando continuidade ao processo de racionalização começado em alguma medida com a vinda de alguns órgãos da administração durante o período em que fora o Brasil sede do Império Português. Devido à relevância do tema da escravidão na interpretação freyriana do Brasil, o sociólogo concebia mais importância às modificações advindas da libertação da mão de obra escrava do que a mudança institucional que deu vida à primeira experiência republicana nacional. O diagnóstico de Gilberto Freyre para a Primeira República caracterizava-se pela sensação de incompletude; as mudanças almejadas pela elite fundadora do novo regime não foram capazes de efetivar o sistema republicano no Brasil. Este insucesso deriva, na argumentação freyriana, da insuficiência da modificação das instituições formais para se operar uma mudança social. O que  nas palavras de David Hume poderia ser também compreendido na máxima: “O hábito é, assim, o grande guia da vida humana.” Então mudanças nas instituições formais seriam apenas um passo possível para a mudança, mas ainda que seus operadores funcionassem, a forma política só poderia se modificar de fato se modus vivendi e experiência política possuíssem grau significativo de correspondência. Ou seja, somente se os hábitos concernentes à instituição que se deseja modificar fossem alterados gradualmente uma experiência de modificação seria experimentada verdadeiramente.

A criação institucional de uma república liberal não foi capaz de gerar em terra tropical os comportamentos e o significado psicológico do novo regime. Ora, olhando para o Brasil Gilberto não via o tempo-dinheiro estadunidense, em que racionalidade constituía característica primordial das relações de trabalho e de produção. Tampouco via uma sociedade cujos segmentos eram capazes de se organizar em torno de seus próprios interesses e buscar meios de se fazerem ouvir. Uma leitura claramente elitista da sociedade brasileira e reproduzida frequentemente em distintas tradições intelectuais. O que considero diferencial e até mesmo requinte da análise de Freyre seja que essas considerações não partam de uma constatação pessimista do que foi a formação social, nem de um horizonte sem perspectivas benéficas para o país. Assim não o somos minimamente republicanos4 e liberais (no sentido lockeano de constituir uma sociedade anterior ao contrato que funda o Estado, dotada de homens autônomos) porque não fomos habituados. Ainda. Creio que mais ou menos assim Freyre o pensava. Então, a forma econômica liberal, de concorrência e livre iniciativa, atrelada à forma democrática republicana demandavam individualismo e autonomia, aspectos de caráter estranhos à origem social brasileira. Se tais traços poderiam surgir em diversos brasileiros, eles seriam fruto da personalidade individual, como Freyre sugere sobre Mauá, por exemplo, e não de uma base cultural  histórico-sociológica.

A busca freyriana pelo tempo brasileiro denota uma preocupação com o sentido da mudança republicana, um sentido mais geral de busca por modernidade, por adesão aos valores que a esta época já vigiam na Europa. Mas acaso alhures era absoluto esse espírito? Creio que não. O objetivo de Freyre consiste em mostrar que uma determinada forma de se compreender e agir no mundo teve que prevalecer para que determinadas experiências políticas fizessem sentido. Tais categorias são pensadas enquanto atitudes sociais predominantes, e não como características sui generis daqueles povos.  A noção de tempo social ou ethos consiste num marcador teórico para a compreensão do significado psicológico da mudança política na vida ordinária. Glaucia Villas Bôas chama atenção para o fato de que o tempo para Freyre possui semelhança profunda com a concepção bergsoniana de duração:

Quanto à noção de tempo adotada por Gilberto Freyre, noção que lhe permite a apreensão de uma entidade singular, poder-se-iam apontar as seguintes questões: segundo Freyre, aquela noção se assemelha à ideia de duração, que em Henri Bergson se opõe à ideia de tempo (Freyre, 1968a:74). A duração é concebida por Bergson como uma evolução contínua, na qual diferentes fases se interpenetram por força de um crescimento interior, ao contrário de tempo. Cuja representação supõe um desenvolvimento em que partes distintas se justapõem. Vista enquanto movimento de mutabilidade e variabilidade constantes, a duração é “criação perpétua de possibilidade e não apenas realidade” (Bergson,1979:102-107). Para Bergson, a ideia de mudança só pode ser concebida no âmbito da duração. (…) Parece, entretanto, problemático aproximar as concepções de Gilberto Freyre e de Bergson no que se refere, particularmente,  à sua adoção nos estdos históricos. Freyre acentua as origens e a repetição contínua, enquanto Bergson se interessa pelo movimento, pela variabilidade e pelas mudanças contínuas. A ideia de irreversibilidade de um tempo “original” reatualizado regularmente no encadeamento sucessivo dos acontecimentos sociais e históricos que parece estar contida na concepção de Gilberto Freyre faz lembrar uma noção de tempo mítico do que a de uma evolução contínua. (VILLAS BÔAS, 2006, p.25)

O incômodo do padre Lopes Gama mencionado há pouco aponta para o incômodo causado pela necessidade de mudança nos hábitos tidos como mais irrelevantes, como a forma de acenar ou o traje a ser utilizado. Então, o sociólogo pretende mostrar como tais mudanças a priori insignificantes, consistiam num esforço habitual de modificação dos costumes antigos, que por sua vez traziam consigo um outro sentido para a ordem política e social. Esse desenho de mundo não é aleatório, ele conjuga os elementos apresentados na narrativa de gênese trazida em Casa Grande e Senzala. Lá já estavam postos os principais elementos da antropologia elaborada por Freyre, e é dela que deriva o tempo brasileiro, o significado psicológico da política e do modus vivendi nacional. Dos traços trazidos pelo sociólogo de Apipucos sobre as condições sociológicas necessárias para a fundação da colônia, destaco a função primordial da unidade familiar enquanto instituição estabilizadora das relações sociais.

A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado, nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVII o grande fator colonizador no Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política, constituindo-se n aristocracia colonial mais poderosa da América. Sobre ela o rei de Portugal quase que reina sem governar. Os senados de Câmara, expressões desse familismo político, cedo limitam o poder dos reis e mais tarde o próprio imperialismo, ou, antes, parasitismo econômico, que procura estender do reino as colônias os seus tentáculos absorventes. (FREYRE, 2002, pp. 45 – 46)

Da infância da história brasileira, isto é, dos primórdios da constituição social do Brasil, quando sequer um país estava posto, estariam as marcas do espírito brasileiro. O sentido persistente da família patriarcal ou a crença básica na existência de um homem a decidir sobre o destino de todos aqueles que são seus dependentes consistiria no terreno psicológico para o sentimento de indiferença ao novo regime. Se a ordem patriarcal estava condenada desde Sobrados e Mucambos, quando há as primeiras transformações sociais no mundo originário de Casa Grande e Senzala, o sentido psicológico desta forma de se organizar e interagir socialmente perpetuava-se, ainda que tivesse de  conviver com outras formas de se orientar no mundo, como a figura da prostituta urbana, muitas vezes estrangeira, sem pai nem marido para orientá-la, por exemplo. Então o primeiro traço da antropologia do homem brasileiro seria a necessidade de uma figura paterna orientadora; veremos adiante que o Segundo Reinado cumpre este significado da política na vida do brasileiro-médio, termo designado por Gilberto Freyre para tratar dos homens e mulheres comuns que viveram à época da fundação da República. Outra característica do tempo nacional consiste no conservadorismo circunscrito nessa vida. Não podemos concluir com isso, no entanto, que ele só existia na vida do homem comum; na verdade o conservadorismo estava presente na própria elite ansiosa por modernidade. Não à toa Gilberto Freyre menciona os esforços de adaptação da elite republicana por manter aspectos essenciais da ordem monárquica no regime republicano, pois a recente elite  “esforçou-se por sociologicamente continuar o regime monárquico de ordem, dando-lhe quanto possível – é certo – nova substância; mas conservando-lhe a forma – isto é, a forma social; a configuração até certo ponto paternalista; o processo social de ser governo autoritário dentro de uma sociedade democrática na estrutura.” (FREYRE, 2004, p. 527) A mudança não poderia ser experimentada enquanto ruptura radical com o passado. A lentidão no modo de estabelecer a mudança social seria derivada de uma ordem predominantemente agrícola e familiarista, pois as relações de poder se davam confundindo-se com os postos da hierarquia familiar. E desse modo surgiam cunhados e genros bacharéis, patrocinados pelo sogro ou cunhado rico, ou mulatos bastardos como afilhados de seus pais, ou compadres pobres de coronéis.

No trecho que segue a semelhança aos pressupostos do barão de Montesquieu para a reflexão política é clara. Um nação é filha de sua tradição cultural e social. Somente dessa forma uma lei pode de fato reger uma sociedade, isto é, em consonância com seu espírito, com a forma social de ver e de se colocar no mundo.  O espírito seria uma espécie de substrato sociológico e psicológico para a condição individual; dele derivariam as formas de agir e interagir. Elide Bastos nos chama atenção para o princípio de ação e interação pretendido por Freyre; apenas partindo da vida ordinária, empreendendo uma história íntima, seria possível conhecer de fato as relações sociais da vida comum, do homem comum. Ou, como queria Gilberto, do brasileiro – médio. Avaliando-se a vida ordinária seria possível mensurar a consonância entre ordem política e ordem social, pois nos homens comuns estaria mais arraigado o espírito brasileiro, como se o processo modernizador e civilizador neles chegasse de modo mais frágil. Dessa forma, a mudança da Constituição seria insuficiente para a efetivação do regime, que precisaria encontrar bases  sociais e psicológicas na sociedade.

‘Seria vão esperar de uma Constituição modelada na dos Estados Unidos, que operasse maciamente no Brasil’, reparou Bryce; pois sendo uma nação, criação ou filha do seu passado, esse passado é que condicionaria seu comportamento. ‘A nation is the child of its own past’, afirmou com relação ao Brasil o constitucionalista de The American Commonwealth: constitucionalista desdobrado em sociólogo. Pelo que em parte alguma do mundo pareceu-lhe ser mais pungente do que no Brasil republicano que conheceu em 1910 a necessidade do que chamou ‘constructive statemanship’. A arte de estadistas capazes de construir, de criar, de recombinar – em vez de simplesmente copiar ou seguir exemplos estrangeiros -, que vinha sendo, aliás, a arte dos melhores estadistas do Império: aqueles que haviam compreendido não ser o sistema monárquico parlamentar do Brasil simples imitação do britânico mas distante ou vago parente – distante e pobre – desse modelo europeu. (FREYRE, 2004, 527 – 528)

Então, o tempo circunscrito na ordem republicana e liberal pretendida demandava uma aceleração e ruptura com aspectos constituintes do tempo brasileiro. A busca por modernidade política é compreendida em Freyre como uma das buscas por modernidade, é uma dimensão de um projeto social maior. A narrativa da trilogia freyriana nessa perspectiva assume ares de uma história da desconstrução da originalidade brasileira; senão desconstrução, ao menos transformação. Os ensaios freyrianos veem este processo e o autor preocupa-se com o que restará, observam a experiência republicana e nos perguntam o que poderá ser conservado dessa cultura. E na interpretação de Gilberto muitos elementos positivos teriam de permanecer: os elementos que definem a estrutura social democrática e híbrida deveriam ser mantidos. Em Freyre há o primado da originalidade e da conservação destes mesmos elementos. Então a mudança política compõe, numa dimensão muito maior e mais complexa, o processo civilizatório observado pelo padre Lopes Gama na virada do século XVII para o XIX. E a reação da vida íntima e ordinária manifestada pelo desapontado padre de certa forma se repete nos primeiros anos da República: predomina na vida comum o sentimento de estranhamento. Ele é entendido como a indiferença tão criticada por relatos estrangeiros da época, trazidos logo no começo de Ordem e Progresso. Concomitante à indiferença/estranhamento manifestar-se-á a saudade. Isso porque a mudança da instituição formal não muda o espírito.                                                    ***

O significado psicológico da vida política na vida ordinária

Aproximo-me da conclusão deste ensaio buscando apreender o significado da vida politica para a vida comum. O estranhamento à ordem republicana derivou da quase ruptura da então nova ordem com o regime monárquico anterior; digo quase porque logo cedo a elite republicana viu-se obrigada a utilizar-se de esforços de adaptação típicos do Segundo Reinado. Em trecho já destacado  Gilberto Freyre apresenta o esforço dos republicanos em manter formas sociológicas da monarquia: autoritarismo e paternalismo. Então, procurarei apresentar nesta última seção a relação existente entre ordem social e política vigente no Segundo Reinado que fora interrompida com a fundação republicana. Este é o processo causador do estranhamento, manifestado e compreendido no relato de muitos estrangeiros como indiferença do homem comum ao novo regime; ele também corrobora com a noção de Glaucia Villas Boas de que a sociedade reproduz as características originárias a partir de seu substrato sociológico ou tempo originário. No segundo reinado imperava um outro sentido e um outro traço sentimenta entre sociedade e política. Vejamo-na.

Meu argumento sobre o significado psicológico da ordem política na vida ordinária resulta de uma analogia que faço da análise freudiana do significado psicológico da religião na vida comum. Tal aproximação parte do fato de que ambos os significados se fundam no papel crucial da figura paterna como agente de amparo e figura de autoridade; tanto na psicanálise freudiana quanto na sociologia freyriana a figura do pai é compreendida nestes termos. Então, minha alusão às premissas freudianas partem da relevância atribuída por ambos autores à figura paterna para a interpretação do significado da religião no caso de Freud e no significado da política, no caso de Gilberto Freyre. Vale destacar que em seu texto não há menção ao sentido da ordem política; organizo estes argumentos porque acredito que em toda a trilogia a ordem política aparece como algo que de alguma forma afeta a vida do cidadão comum até a implantação da República. Se em Ordem e Progresso o autor chega à conclusão que a abolição teve impacto sociológico mais profundo que a fundação da República, porque o tempo social ainda era monárquico, não se pode afirmar mesma insuficiência quanto ao regime monárquico. Em Sobrados e Mucambos e mesmo no terceiro livro a figura de D. Pedro II é mencionada mais de uma vez, o velho imperador e sua filha Isabel tangenciam a narrativa de transição não como pessoas distantes da vida comum, mas como personagens queridos e próximos do imaginário social. Não à toa as brincadeiras de meninos e meninas ainda envolviam o ethos monárquico: nos questionários Freyre nos aponta as brincadeiras favoritas, brincar de ser imerador, de ser soldado do Imperador, de ser princesa Isabel. As opiniões sempre positvas sobre o tempo do império também convergem para esta conclusão, e se pensarmos no saudosismo de muitos intelectuais ao tratarem da política a partir dos anos 20 da Primera República, sobretudo, em comparação às transformações advindas com a Primeira República, como é o caso de Oliveira Vianna em O idealismo da Constituição, fica ainda mais clara a relevância dos anos monárquicos como registro de um tempo senão bom, produtivo. Creio que Gilberto Freyre assentisse a tal opinião e a partir deste posicionamento procurei estabelecer qual seria, então, o vínculo rompido entre poder político e sociedade com a chegada da república. E meu argumento só poderia retornar à história íntima, ou seja, à preocupação com a relação entre o homem comum – aquele mais elucidativo do tempo social brasileiro – e a ordem política que organiza sua sociedade. E o vínculo mais significativo entre a vida ordinária e a vida política é o sentimento, a expressão que se term por aqueles da rotina da ordem política. O voto constitui exercício de apenas um dia, mas o sentido atribuído à ordem política consiste num forte agente para se pensar as instituições, as reações que estas provocam e o sentido da ação do homem comum. O sistema autárquico da casa-grande apresenta uma figura paterna provedora das necessidades de toda a família e repressora dos maus feitos dos demais membros – ele zela e pune; e é justamente dessa dinâmica de relação originária que surgem os pressupostos para o tempo ou espírito brasileiro. O diagnóstico da incompletude da experiência republicana parte de uma constatação de que a efetivação deste regime, isto é, a correspondência entre espírito ou tempo da sociedade e o comportamento e o significado da ordem política necessários para a consolidação da nova experiência não estariam consolidados.

Na interpretação freyriana da ordem imperial a política possuía significado psicológico claro; Dom Pedro II era o imperador e figura simbolicamente paterna; na narrativa do sociólogo sobre o Segundo Reinado esta recepção da figura do segundo imperador senão é explícita, é bem clara. D. Pedro II era  detentor do poder maior, o Poder Moderador, e através dele, concedia apoio político e lugar  no governo para os dois partidos políticos. Não me preocupando com a polêmica acerca das diferenças ou indiferenças entre saquaremas e luzias, na leitura que faço de Gilberto Freyre o imperador atuava como um pai zeloso, concedendo poder ora a um irmão ora a outro, de modo que ambos os partidos faziam parte do governo. Na descrição sobre o papel do Imperador com relação ao trato com os escravos, que inclusive Freyre julgava ser peculiar porque mais brando e afetuoso, a possibilidade de se imaginar D. Pedro II como um senhor branco e pai benevolente e quiçá meritocrático também é plausível. Daí a constante lembrança à figura de André Rebouças, lembrado como o expoente de tantos outros Rebouças e mesmo Machados que, com menor brilho, genialidade e lugar na história nacional, teriam igualmente conseguido destaque na burocracia do Império ou nas artes ou nas profissões liberais graças ao aval do imperador não segregacionista, como a maioria dos senhores o seriam na sua vida íntima, a despeito dos atos de violência e preconceito nunca esquecidos por Freyre5. Então, se em Casa Grande e Senzala constatamos que as relações étnicas ainda que fundadas sobre a condição social de mando e submissão foram capazes de promover uma integração cultural e sexual da qual a sociedade brasileira resulta graças às características sociais de hibridismo presentes nos ancestrais, o monarca  teria sido igualmente afetado por esse traço do espírito nacional. Daí o trato mais manso com os mulatos e a possibilidade de elementos negros – aqui incluo os mestiços – ascenderem socialmente numa monarquia de casa europeia e branca.

Assim, retomarei brevemente alguns pressupostos estabelecidos por Freud em O futuro de uma ilusão, artigo no qual o autor destaca o significado psicológico da religião. O pensador apresenta o peso do processo civilizador na medida em que este age no sentido a reprimir determinados desejos e impulsos individuais, tema que será profundamente desenvolvido em Mal-estar na civilização. A opção pela vida comunal impõe-nos uma série de restrições. As angústias humanas, porém, não terminam aqui. Junto do preço a ser pago pela vida civilizada isto é, além do mal-estar causado pelas restrições que tornam a vida mais segura, há uma sensação de desamparo e solidão recorrente na vida humana.

Foi assim que se criou um cabedal de ideias, nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana. Pode-se perceber claramente que a posse dessas ideias o protege em dois sentidos: contra os perigos da natureza e do Destino, e contra os danos que o ameaçam por parte da própria sociedade humana. Reside aqui a essência da questão. (FREUD, 2006, p. 27)

A analogia torna-se possível pela função da figura paterna em ambos pensamentos: o Pai ampara e protege, ele é o provedor e dele o filho depende. A ambivalência medo-amor também pode ser outro ponto de aproximação, se lembrarmos da fase de menino-diabo do filho de engenho, fadado às corretivas e duras surras de seu pai. Estes aspectos assemelham-se àqueles presentes na família patriarcal concebida por Freyre. Então, o homem recorre à religião pela sensação de desamparo iniciada na infância, e em virtude desta busca, conscientemente ou não, um outro pai, maior e mais potente, capaz de provocar nele aquela mesma sensação de segurança que sentia com sua figura paterna quando criança. Ainda que seja um desperdício trazer Freud de forma tão breve, seus apontamentos dão base a esta conclusão.

Na vida política brasileira à época do Segundo Reinado, o homem comum ou o brasileiro-médio representava a figura de D. Pedro II de modo análogo ao homem religioso freudiano. Guardadas as devidas proporções, ambos, Deus e o Imperador, constituíam figuras protetoras da coletividade. O sentimento em torno da figura do Imperador foi tão intenso que sequer a derrubada do Império fora capaz de extingui-lo e nos vinte anos da jovem República já se chorava por D. Pedro II, benevolente e simples. Esta é a figura de D. Pedro II que percorre toda a obra Ordem e Progresso. Em meio aos protestos e críticas republicanas desde a década de 1870, o velho Pedro II parecia não dar importância aos apelos em prol da república que surgiam a sua frente, nos jornais e em manifestos. Sem a pompa dos reinados europeus, Freyre descreve D. Pedro II como um homem simples nas vestimentas, que não teria encarnado os elementos simbólicos ostensivos necessários à figura de um monarca. A narrativa em torno da abolição dos escravos fornece uma Princesa Isabel em cores semelhantes a de seu pai; a Redentora, tão querida pelos escravos, concede a liberdade aos escravos, e seria muitíssimo querida pelos libertos.

Gilberto Freyre oferece-nos um quadro claro do que foi a fundação da República e de sua incompletude com o tempo do homem comum; também nos oferece um substrato sociológico, uma marca indelével que permaneceria no homem brasileiro. Com base nestas narrativas e no mito de origem craiado por ele acerca da ordem brasileira, tentei apresentar como a relação política apresentava-se no Império como um desdobramente da relação pai-filho na medida em que a narrativa em torno de Pedro II nos sugere um imperador simples, benevolente e meritocrático,  generoso com os escravos e opositores. Associei tais informações com a leitura do primeiro livro da trilogia, Casa Grande e Senzala, no qual o significado da figura paterna que busquei apresentar encontra-se evidente. No entanto, diferentemente do pai da casa-grande, que zelava e punia os que dele dependiam, a figura do imperador parece abrandada da segunda função, pois os registros sobre o imperador parecem exaltar as características positivas que Freyre nele identificava.

Enfim, extinta a simbiose entre Imperador e sociedade, os laços entre homens comuns e públicos esvaíram-se restando ao brasileiro médio a indiferença tão criticada pelos estrangeiros, que associada a uma apatia. Contra estes relatos, Gilberto Freyre procura mostrar que aquela reação consistia numa manifestação conservadora de estranhamento. Os anseios da sociedade pareciam assentar na figura do Imperador e findado o regime, aquela sociedade precisaria adequar-se aos novos tempos. Ela teria de adaptar seu espírito aos relógios acelerados dos tempos modernos.

Sobre o Brasil inventado por Freyre

Concluo este ensaio focando numa curta reflexão sobre a possibilidade de conhecimento político que o trabalho de Gilberto Freyre pode oferecer-nos sobre o Brasil. Creio que a trilogia intitulada Introdução à formação da sociedade patriarcal não deva ser admitida como verdade histórica do que foi a nossa formação, mas sem sombra de dúvidas ela tem algo a nos dizer sobre parte da mentalidade brasileira. O conservadorismo e a visão harmônica de nossa sociedade são atitudes muitas vezes atuais sobre o que se acredita ser o comportamento padrão do homem brasileiro. Dessa forma protestos e reivindicações de contornos violentos, a despeito da legitimidade de suas causas, são interpretados como gestos anômalos e que devem ser, antes de compreendidos e devidamente problematizados, repreendidos. Ainda que Gilberto Freyre não negue a dimensão conflitiva da sociedade brasileira, uma vez que aponta tanto na obra seminal de 1933, quanto na derradeira obra da trilogia inúmeros episódios de violência e preconceito contra mulheres, crianças e escravos e negros libertos,  o autor crê na resolução destes inúmeros conflitos a partir apenas do equilíbrio de antagonismos sobre o qual nossa sociedade estaria assentada. O conflito se resolveria pela integração das partes antagônicas e não pelo acirramento das posições destas mesmas partes. Essa é a crença basilar que orienta a reflexão de Gilberto; no entanto, não precisamos acreditar nela para validarmos o sentido de outras proposições coadjuvantes existentes em seu pensamento. Como por exemplo o interessante olhar muitas vezes mal-compreendido sobre a ambivalência da relação senhor-escravo e da necessidade de olharmos com mais cautela para tais relações, até mesmo para compreendermos sutis estratégias sociais de escravos, para libertamo-nos de uma visão romanesca que precisa vitimizar e heroicizar atores históricos. Freyre dá um passo frutífero ao conceder ação ao ator histórico escravo.

Então, a leitura de Gilberto Freyre, assim como outros intérpretes do Brasil pode constituir uma experiência interessante para compreender crenças e preconceitos presentes na vida comum e na própria mentalidade acadêmica, pois os ensaístas brasileiros, desde a década de trinta e mesmo os anteriores, dissertavam sobre o país, suas possibilidades e limitações, para um público mais amplo e não especializado, e por isso suas respectivas crenças atingiram, ainda que de modo difuso e desordenado, a vida comum. Nesse ponto suas hipóteses foram muito mais difundidas do que são hoje os trabalhos produzidos, geralmente lidos por um círculo muito menor e especialização. Creio que em dois aspectos cruciais para se pensar a política a trilogia freyriana se faça de grande utilidade: primeiro, a parir de uma breve análise das crenças presentes naquele ensaio como ponto de partida para a problematização e crítica de alguns aspectos da sociedade brasileira. O quadro fornecido por Gilberto Freyre foi visto por grande parte da sociedade, sendo tão exaltado quanto execrado, e por essa grande circulação, pode auxiliar na composição de crenças sobre a nação. A compreensão destas mesmas crenças e representações sobre o que somos e o que fomos possibilita-nos identificar e problematizar os valores que estão relacionados à adesão a uma dada visão de Brasil. A crença na capacidade de harmonização social, por exemplo, pode ser melhor problematizada se conhecemos uma de suas vias de instituição, no caso, o Brasil inventado por Gilberto Freyre. Digo harmonização em vez de harmonia porque o primeiro termo aponta para  processos capazes de gerararem a harmonia e em vez de significar a existência prévia da harmonia em si. O outro aspecto persiste em todo este texto e diz respeito ao valor de uma investigação em torno do sentimento enquanto forma possível de se apreender as relações estabelecidas entre vida comum e vida política. Uma reflexão sobre os sentimentos despertados pelas instituições políticas certamente consiste numa forma válida de especulação sobre os processos políticos, pois busca compreender suas instituições, as sensações provocadas por suas alterações e a representação historicamente inscrita destes mesmos fenômenos.

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Naiara Alves

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Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.