A fragilidade da bondade – Número 15 – 06/2011 – [57-59]

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Aqueles que se detêm no transepto sul da catedral de Estrasburgo, deparam-se com duas belas jovens. A primeira, sem vendas nos olhos, representa a Igreja, ou o novo testamento, a escultura possui uma espada, um cálice e sustenta alguma altivez diante de outra jovem, a Sinagoga, aparentemente derrotada. A Sinagoga é também uma bela jovem, mas possui a cabeça baixa e virada para o lado oposto do movimento do corpo, denotando tensão, mas, sobretudo, aquiescência. A beleza da cega e da Igreja é relativamente correlata se observadas da perspectiva exterior aos olhos da Igreja. Pois, se nos colocarmos em campo aproximado ao que seria a perspectiva da Igreja sobre a Sinagoga, a beleza da segunda é quebrada, dando lugar à imagem que mostra um pescoço partido, a tortura do corpo e um hediondo abdômen.

Não é preciso fazer muito esforço para perceber que não existe inocência nas perspectivas, elas denotam não só a parcialidade dos observadores, como também o fato de que aderir a pontos novos de vislumbramento é uma opção moral. Seríamos ingênuos se achássemos que podemos escolher a qualquer modo de ver, não só precisamos que ele esteja disponível, nem que seja por fragmento, o que nos leva a crer que somos, em algum sentido, escolhidos pelos ângulos da visão, como, depois, é preciso alguma política para instituir uma boa perspectiva. Pode-se dizer que a bondade é frágil, como também o são as suas perspectivas. Mas por quê? Porque a bondade costuma estar na perspectiva mais frágil.

A fragilidade da bondade é bastante evidente, dentre outras razões, porque diante da sua dificuldade é bastante comum tomarmos por sua inexistência na vida. Não é a toa que o Bem e o Belo se complementem e se busquem. As suas fragilidades são tão intensas que é a sua união estreita que nos permite vê-los, e continuarmos a crer na virtude. Se pensarmos nas esculturas de Estrasburgo, quase tudo nos leva a descrer na possibilidade de uma perspectiva correta e esclarecedora. A Sinagoga é humilhada e hedionda. Mas o relativismo e o perspectivismo, por alguma razão, não funcionam com ela, pois sabemos que aquilo que a Igreja vê é falsidade. Mas, mesmo cientes de tal falsidade, temos dificuldades para admitir a presença do Bem.

Ora, de certa forma sabemos, hoje, que a Sinagoga foi representada de modo humilhado e hediondo, em função dos preconceitos morais utilizados pela Igreja para vê-la, e tais vícios são transferidos para o observador da catedral. Mas mesmo que a transferência dos preconceitos também se efetue sobre nós, sabemos acrescentar à imagem, uma camada que nos permite vê-la bela, em virtude da quebra histórica dos preconceitos morais, e naturalmente entendemos que a crença faz parte da perspectiva. Mas a fragilidade da bondade ainda persiste, porque sentimos apenas o Bem e o Belo como adstritos à expansão da histórica da perspectiva. A Sinagoga ainda permanece imaculadamente hedionda naquele tempo que não alcançamos. Parece-nos injusto que a Sinagoga não tenha sido bela ontem, mas apenas hoje, e que a beleza que ela agora detém não possa ser enviada para o passado, para iluminar os olhos outrora desdenhosos. Frente a essa impossibilidade do tempo, o Bem e o Belo, mesmo unidos, parecem ainda muito frágeis e relativos.

Nussbaum, n’A Fragilidade da Bondade, expressão que tomei a liberdade de usar de modo conceitual, diz-nos que Platão tem preocupações semelhantes, pois não só a catarse trágica parece relativizar a intimidade da virtude, quanto a espontaneidade sofística incendeia de perspectivas a reflexividade do Bem. Para Nussbaum a estratégia de Platão é bastante clara, ele precisa de um gênero enunciativo que o faça ter a solenidade da tragédia e a rapidez da sofística, mas de modo a obrigar o adentramento num ambiente de intimidade e reflexividade. O diálogo surge em Platão, tal como o ensaio aparece em Montaigne e o verbete em Bayle. Ele surge de uma necessidade enunciativa. Nussbaum nos leva a perceber que Platão inventa o seu gênero por necessidade de encontrar uma enunciação que impedisse a fragilização da bondade. Mas que também fosse capaz de levar essa virtude ao passado. Nesse sentido é que pode ser percebida uma dinâmica interna ao diálogo filosófico, uma vida própria de efeitos sobre o mundo – que coincidentemente é também o seu movimento histórico –, através da qual ele migra da representação dramatúrgica, para a fala em nome-próprio. Todavia, o diálogo possui limitações (que foram ultrapassadas, na tradição cética, pelo ensaio filosófico), pois o nome-próprio retorna à dramaturgia.

O diálogo não é um teatro, ele não possui uma finalidade catártica intrínseca, por essa razão leva a inusitada situação do personagem que fala em nome-próprio, e não em nome do autor. Mas, por mais vida que tenha um personagem, ele não consegue deixar de ser uma representação. Nussbaum nos mostra que Platão não toma esse regime cíclico como um problema, porque uma das virtudes da mediatidade do diálogo, contraposta à imediatidade da tragédia e da sofística, dá-se na habitação do leitor em suas imagens. Se tomarmos o início do Fédon, veremos que Equécrates se permite entrar na memória do amigo que dá nome ao diálogo. Sim, Equécrates não duvida que esteja a viver a morte de Sócrates, e não duvida que, após tê-la vivido, o passado restará alterado, justamente porque habitará a memória de Fédon. A falta de finalidade catártica ou de labaredas retóricas produz também ao leitor a oportunidade de habitação. Não só poderá ser vivida a morte de Sócrates, como poderá se viver Sócrates morrendo, em primeira pessoa, ou a habitação de Equécrates, até mesmo o banimento de Xantipa. O fato é que o diálogo é uma forma filosófica aberta à habitação, em primeira pessoa, da pluralidade dos personagens.

Platão, com o diálogo, admite a fragilidade da bondade, mas também prepara um antídoto para ela, em função dos efeitos do diálogo que são sempre incidentais, mediatos, faz com que nele a fragilidade goze de uma grande saúde. Talvez se possa entender o diálogo como uma das últimas províncias da bondade, mas também se deve vê-lo como uma das penínsulas mais estáveis, pois é o diálogo que permite as ciências humanas, herdeiras de sua herança, viver toda aquela ameaça à bondade como perigo iminente, ao mesmo tempo em que torna as descobertas da virtude passíveis de serem infinitamente reencenadas. Nussbaum percebe que um diálogo possui apenas tendências dominantes, como aquelas representadas por Sócrates, mas que nada em sua estrutura nos impede habitar algumas das linhas mais tênues. A bondade não é prevista nem mesmo pelo diálogo, mas a sua virtude está em se fazer habitação para ela. Mas isso não se deve ao fato de que a verdade é relativa, na verdade o aprendizado promovido pelo ensaio indica que é necessário estar na relatividade das perspectivas para aprender a ver. A bondade se fragiliza na afetação. Digamos que uma das virtudes da especificidade do tempo do diálogo se dá na possibilidade de se ver como diálogo, ou melhor, na possibilidade de no diálogo aprender a ver como diálogo. Aprendendo a ver como diálogo, a arrogância de uma das estátuas de Estrasburgo, já não é mais tão bela. Se o diálogo preserva a fragilidade da bondade dos ataques da dramaturgia e da retórica é porque ensina a ver a bondade que há na fragilidade. Assim, a Sinagoga surge como moça bela, independentemente das perspectivas.

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Cesar Kiraly

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.