O livro The Philosophy of Horror or Paradoxes of the Heart [A filosofia do terror ou paradoxos do coração], de 1990, foi um marco no campo da estética e filosofia da arte por desenvolver reflexões detalhadas e inovadoras acerca de um gênero, até então, pouco explorado: o do terror. Atravessando uma variedade de exemplos artísticos, da literatura do século XVIII até filmes blockbusters atuais, Nöel Carroll, filósofo estadunidense que se dedica especialmente a pensar o cinema, traça nele ao mesmo tempo observações conceituais sobre o terror, além de reconstruções empíricas da história desse gênero. E, nesse contexto, no âmbito dos debates sobre o que qualifica como o paradoxo do terror, retoma alguns elementos do ensaio Sobre a Tragédia, de Hume (2011), a fim de sustentar sua tese de que o interesse gerado pelo terror/horror (que para os propósitos deste ensaio serão mencionados indistintamente) deve-se à narratividade, aos elementos cognitivos da mente humana mobilizados por ela. Nosso intuito, nesse cenário, é sintetizar alguns de seus apontamentos, tendo em vista ser essa uma tarefa bastante relevante para os interessados tanto na filosofia de Hume quanto na estética de modo geral, na medida em que nos permite ampliar a obra do filósofo escocês para além de seus limites temporais, nos auxiliando a perceber inclusive como suas reflexões se aplicam a um meio inexistente em sua época: o cinema. Entretanto, queremos também indicar, ainda que muito brevemente, como o enfoque de Carroll nos elementos do Sobre a Tragédia relacionados à narratividade e sua desconsideração dos aspectos referentes à teoria das paixões de Hume deixa escapar pontos fundamentais não apenas do ensaio humeano mas também acerca da relação entre horror, cinema e natureza humana.
Logo em seu início, o Paradoxos do Coração procura qualificar o que é o terror e de que forma ele pode ser compreendido como um gênero próprio entre as artes. É nesse contexto que o autor desenvolve, ao longo do livro, sua concepção de art-horror: a emoção diante do gênero terror, através de diferentes meios artísticos, é caracterizada por causar no sujeito uma mistura de medo, nossa resposta natural ao perigo, com repulsa ou nojo, o sentimento visceral que temos diante de monstros porque eles mesclam categorias e atravessam os limites entre elas – como que uma ameaça para nossa cognição (p. 34). Essa emoção teria ainda uma outra peculiaridade, explorada no segundo capítulo do livro, a saber, a questão de por que sentimos medo daquilo que sabemos não existir ou como sentimos medo e repulsa reais diante de entidades ficcionais. Como Carroll esclarece, tal questão pode ser nomeada como o paradoxo da ficção (p. 59), um tema que a filosofia moderna já explorara sobremaneira, mas que ele desenvolve a partir de um novo contexto e enfoque. O que chama de teoria de pensamento das respostas emocionais à ficção consiste na sua tentativa de explicação de tal fenômeno. Algo que se conecta ao que se propõe a examinar no terceiro capítulo: “as estruturas narrativas que são mais encontradas em histórias de terror da literatura, teatro, cinema, rádio e televisão” (p. 97). O arcabouço central desta parte do livro, embora não exaustivo, é focado na discussão da narrativa de descoberta complexa. Nesse sentido, Carrol mostra que, em geral, nas histórias de horror temos um estrutura geral em que inicialmente há o aparecimento de algum monstro através de seus efeitos (por exemplo, fenômenos sobrenaturais ou vítimas), depois uma personagem principal ou grupo que descobre o monstro (enquanto uma autoridade local se mostra cética quanto a sua existência), chegando ao momento onde um grupo maior confirma a criatura anormal, até que, por fim, temos o confronto entre personagens humanas e o mal que assombra a história (p. 95).
É no quarto e último capítulo do livro, no âmbito da discussão de Carroll sobre o paradoxo do terror, como dissemos, que a análise de Hume no Sobre a Tragédia é especialmente mobilizada. O estadunidense procura discutir o seguinte problema: por que gostamos de terror se achamos, no geral, que se assustar é algo ruim? O estadunidense destaca, nesse sentido, que a pergunta base do paradoxo do terror (ou da tragédia) já estava presente em autores do século XVIII, tais como, além de Hume, Anna e John Aikins e Burke. Assim, embora os debates estabelecidos nos textos desses autores — Sobre a Tragédia, An Enquiry into those Kinds of Distress which excite agreeable Sensations e Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de nossas Ideias do Sublime e do Belo, respectivamente — não se dediquem especificamente à literatura de horror e terror, no contexto das suas análises acerca da tragédia e do sublime teriam abordado aquilo que está em jogo no paradoxo do terror, a saber, explicar um prazer (ou deleite) que é derivado de algo desprazeroso. A análise de Hume, sobretudo, será fundamental para Carrol, dado a perspectiva cognitivista que o estadunidense pretende defender. Rejeitando, antes, duas respostas possíveis, a saber, i) da relação entre terror e maravilhamento que Lovecraft chamou de “medo cósmico” (conectada com a experiência religiosa – nosso instinto de que existem poderes supremos, além de nossa compreensão materialista) (p. 162) e do ii) campo da psicanálise (como Ernest Jones, autor freudiano que diz que o terror expõe o sentimento de ambivalência, nossos desejos inconscientes conflituosos) (pp. 168-169), Carroll irá defender a ideia de que o terror é um terreno especial para o estímulo intelectual de descobrirmos coisas sobre o monstro e sua história, isto é, explorarmos nossa curiosidade. Algo que, para ele, Hume teria evidenciado no seu Sobre a Tragédia.
Retomando a obra de Hume, Carroll destaca que apreciamos a tragédia através de sua retórica, isto é, não só de conhecer seus heróis, mas de acompanhar sua narrativa, ver e compreender o desenrolar dos fatos. Ou seja, a maneira como a história é contada seria o ponto central do efeito que o horror provoca em nós e não exatamente a natureza monstruosa dos personagens (p. 179):
Falando da apresentação de acontecimentos melancólicos por oradores, Hume observa que o prazer derivado não é uma resposta ao acontecimento como tal, mas ao seu enquadramento retórico. Quando nos voltamos para a tragédia, a história desempenha essa função. O interesse que temos pelas mortes de Hamlet, Gertrude, Claudius, et al, não é sádico, mas é um interesse que a trama engendrou em como certas forças, uma vez postas em movimento, se resolverão. O prazer deriva de ter satisfeito o nosso interesse no resultado de tais questões. (Carroll, 1990, p. 179)
Hume mostraria que o efeito narrativo é atingido normalmente adiando-se o máximo possível a descoberta da existência do “monstro” ou, mesmo quando ele é apresentado ao público desde o início, postergando-se o momento em que os personagens da peça o descobrem. O foco de Carroll é argumentar que, como também o escocês destacara, o prazer que sentimos é cognitivo (p. 184) e muitas vezes está conectado com nosso desejo de confrontar nossa mente com seres desconhecidos (e que talvez sequer sejam cognoscíveis), o que por sua vez explica porque tantas histórias de terror se dão em estágios sucessivos de descoberta e revelações acerca dos monstros e seus efeitos em nosso mundo. Vale notar como as respostas aos dois paradoxos, o da ficção e o do horror, são relacionadas, já que ambas envolvem o trabalho que cada um de nós, enquanto observador da arte-terror, pode fazer em relação ao jogo categorial e imaginativo feito pelos monstros, fenômenos sobrenaturais ou extraterrestres e assim por diante. O jogo cognitivo de desvelamento do monstro requer sua monstruosidade, sua mescla de categorias entre medo e repulsa.
A análise de Carroll, nesse sentido, é importante por ampliar a aplicação da filosofia humeana para contextos diferentes do imediatamente expostos por ele. Em especial, é interessante a possibilidade que ela nos fornece de pensarmos os temas abordados por Hume em Sobre a Tragédia dialogando com o cinema de terror/horror, por exemplo. Entretanto, é importante destacarmos, para finalizar este ensaio, que alguns elementos não explorados por Carroll, do Sobre a Tragédia, são fundamentais não apenas para as discussões empreendidas por Hume no contexto em que ele o escreve, mas também podem revelar algo sobre a natureza do cinema de horror. O autor estadunidense faz um resumo sobre a discussão humeana sobre a transição dos efeitos das paixões subordinadas para as predominantes, contudo, destaca sua discordância desse aspecto da teoria de Hume, afirmando ser ele imperscrutável ou mesmo falha (p. 181). E ainda que Carroll tente, conforme mencionamos, aliar alguns aspectos ponderados por ele no seu capítulo terceiro, na ocasião do seu debate sobre o paradoxo da ficção, em que concilia o enfoque cognitivo da narratividade e do desvelamento do monstro com categorias entre medo e repulsa, não há nele uma abordagem específica das paixões envolvidas, mas sim, até mesmo na consideração delas, um enfoque cognitivista. Neste autor, nossa resposta ao perigo (com repulsa e medo), bem como nosso sentimento diante de monstros revelam o quanto eles são uma ameaça para nossa cognição, portanto, ainda são elementos cognitivos; desafios no campo das nossas ideias. Em Hume, ao contrário, não se trata apenas do fato de que eles são um incremento para a nossa curiosidade, mas sim que eles produzem um efeito na mente distinto do produzidos pelas ideias, revelando, assim, que é preciso compatibilizar a ficcionalidade e narratividade do terror com a crença (realidade) proporcionada pelas paixões (impressões de reflexão) relacionadas a ele.
Discutindo sobre a teoria sobre o paradoxo da tragédia de dois autores essenciais na Modernidade, Dubos e Fontenelle, Hume destaca a superioridade deste último, tendo em vista ter ele ressaltado a importância da ficcionalidade para justificar como emoções dolorosas podem se transformar em prazerosas. Não obstante, ainda que veja a explicação da conversão entre dor e prazer a partir dos efeitos narrativos pautados na percepção de ficcionalidade da cena como um avanço, a análise humeana do paradoxo da tragédia aponta também a insuficiência desse processo. Ela defende, em alguma medida, a necessidade de explicação do novo sentimento que se forma e que ultrapassa a mera relação entre a amenização da dor e o incremento do prazer (p. 167). Em outros termos, para Hume não seria apenas a diminuição da dor que justificaria um prazer tão intenso quanto o que temos na apreciação de eventos trágicos, mas seria justamente a força da paixão dolorosa o seu elemento essencial. Embora ele não crie uma categoria específica, como o deleite em Burke, parece recusar a existência de um prazer na dor, além de não achar suficiente que a diminuição da dor por si só seja traduzida como incremento de prazer.
O ensaio humeano mostra que a força existente nas paixões ligadas à tragédia (melancolia, ansiedade, terror, etc) é por si só um elemento fundamental da experiência estética ligada ao horror, não apenas no sentido de reforçar a curiosidade e testar os limites da cognição, mas sim de dotar as ideias da imaginação de uma qualidade ausente nelas. Hume entende que é o estado mental existente na concepção de paixões dolorosas que deve ser conservado para que seja mantida a qualidade da mente do espectador que realiza esse juízo de gosto. E, nesse sentido, observa que as “belezas da imaginação ou da expressão” (para Carroll, narratividade e curiosidade) não conseguiriam competir com a força da dor das paixões trágicas. Para haver entretenimento, diz ele, é preciso que a imaginação se sobreponha à paixão, ou seja, que o movimento principal seja o da imaginação e não o da paixão. Torna-se necessária, então, uma “conversão pela beleza”, a qual envolve a criação de um novo sentimento e não mera diminuição da dor. Uma impressão de reflexão, uma percepção original da mente humana. Uma criação na dinâmica mental que dependeria do processo de transferência da força e vivacidade da paixão acessória para a paixão considerada preponderante, processo esse que Carroll entende como incompreensível ou mesmo errado.
Não vamos nos deter neste texto na explicação humeana do processo pelo qual a paixão transfere sua força à imaginação, ou em que a paixão acessória transfere força para a principal, segundo Hume. Tampouco exploraremos um tema que poderia ser relevante aqui, a saber, a distinção entre paixões calmas e violentas. Basta apenas dizermos que o processo de transferência de força das paixões para a imaginação envolve a influência da oposição entre paixões contrárias, bem como a nossa relação com a incerteza, a novidade, além de um trabalho fundamental da eloquência. E, nessa perspectiva, cabe observarmos que se a filosofia humeana parece reconhecer que, de fato, a mente, por um lado, sente prazer em ser mobilizada, se ela tem um apreço pela novidade, pela curiosidade, pela percepção do caráter ficcional de uma tragédia e pela atratividade dos elementos miméticos da arte, por outro lado, sua inovação seria tentar explicar a mobilização de força da paixão para esses prazeres ligados à força expressiva da imaginação. Ou seja, a reflexão de Hume enfatiza que a experiência estética relacionada aos terror depende de uma vivacidade que é típica das paixões e não da razão. Ainda que, após a transmissão para a paixão principal, a força se expresse naquilo que Carroll chamaria de narratividade (por isso a conversão pela beleza), a leitura humeana parece ter percebido que a centralidade estética da apreciação do terror envolve qualidades típicas das paixões, enquanto impressões (de reflexão) e não mera ideias.
Filmes como Invasores de Corpos (Invasion of the Body Snatchers, 1978), Calafrios (They Came From Within, 1975) ou a série de filmes A Hora do Pesadelo são destacados por Carroll por possuírem estruturas que dependem de nosso horror diante da quebra de categorias epistêmicas cotidianas (1990, p. 202). Para ele, o fascínio pelo filme Alien (1979), de Ridley Scott, envolve a estranheza de seu monstro e a maneira que aos poucos entramos em contato com ele, desafiando nossos limites cognitivos, incrementando nossa curiosidade intelectual. Como ele mesmo observa, a filosofia humeana antecipa vários desses temas, mostrando que a mente humana é mobilizada pela curiosidade, pela narratividade. Na explicação humeana sobre o paradoxo da tragédia, os prazeres da imaginação, a beleza, são vivificados pela força da expressão e por esses desafios aos nossos limites cognitivos. Porém, transpondo o escopo da análise de Hume para a discussão sobre o horror, especialmente sobre o cinema de horror, poderíamos dizer também que o escocês nos faz perceber que as emoções ligadas a essas obras nos colocam diante da diferença fundamental entre impressões e ideias, entre paixões e razão. Se a razão não pode gerar uma volição, se a razão é escrava das paixões, é porque relações de ideias não conseguem dotar a mente daquilo que impressões — nesse caso as de reflexão — oferecem: a força e vivacidade de uma existência original. Que a crença seja ou não uma forma de interlocução é algo que não poderemos debater aqui, contudo, é fundamental ressaltarmos que nossa intenção neste breve ensaio foi também indicar que a experiência estética do horror não é prazerosa, nessa perspectiva, pela dor que ela ocasiona (ou pela sua diminuição abrupta), mas pelo estado da mente que ela promove.
E, embora a explicação humeana sobre a transferência dessa força das paixões dolorosas para os prazeres da imaginação seja realmente bastante abstrusa e incompleta, revelando inclusive alguns dos motivos que levaram Burke a buscar um terceiro sentimento entre dor e prazer (o deleite), para evitar a transitoriedade entre prazer e dor, ela mostra a insuficiência de uma interpretação cognitivista da obra de arte. Em Hume, afinal, é o conhecimento que precisará, em muitos momentos (como o da constituição de uma inferência causal), dotar-se da mesma força e vivacidade das paixões. E se as paixões dolorosas não são em si mesmas prazerosas, elas, por outro lado, oferecem algo quase intransponível, algo sempre visado pela razão, a saber, o lampejo de realidade prometido pelos efeitos de uma existência original na mente humana.
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Andrea Cachel
Igor Costa do Nascimento
CACHEL, A. A tragédia em Hume e a dimensão qualitativa das ideias. In: Revista Estudos Hum(e)anos, Volume 7, Número 2. 2009, pp. 55-72
CARROLL, Nöel. The Philosophy of Horror, or Paradoxes of the Heart. New York and London: Routledge, 1990.
HUME, D. 2011. “Sobre a Tragédia”. Tradução de Márcio Suzuki e Pedro Pimenta. In: PIMENTA, P. (Org.). A arte de escrever ensaio e outros ensaios. São Paulo: Iluminuras, 2011, pp. 163-171.