São muitas as possibilidades de compreensão ou apropriação teórica do debate que se configura a partir de 1967 entre Hans-Georg Gadamer e Jürgen Habermas, quando o primeiro publica seu Verdade e Método. É a partir de então que uma sucessão de críticas, contribuições, respostas e réplicas que se seguiram entre ambos os filósofos deram o tom do debate sobre o qual venho aqui fazer uma breve recuperação e propor algumas questões.
O debate Gadamer-Habermas leva em conta, a priori, uma divergência filosófico-metodológica que demarca dois campos bastante distintos no que compete às suas tradições e feições mais amplas da produção intelectual dos últimos séculos. O primeiro destes campos, o da hermenêutica, é representado pela intervenção gadameriana, ao passo que o seu adversário, o campo da Teoria Crítica, tem em Habermas um dos seus mais importantes interlocutores. A amplitude deste debate nos permite, contudo, relacioná-lo e filiá-lo ao grande drama do pensamento filosófico moderno, cujo nascedouro, no período de surgimento das filosofias das Luzes, conduz o fio da reflexão filosófica até os dias de hoje.
Noutros termos, dada a amplitude e importância de tal debate, poderíamos reapropriá-lo segundo vários outros registros filosóficos que, de uma maneira ou de outra, reservam em si problemas bastante semelhantes. É possível, portanto, notar que a controvérsia em torno do método hermenêutico corresponde a dois posicionamentos filosóficos mais amplos que, ao fim das contas, resumem características ético-olíticas e axiológicas dos dois autores.
O debate Gadamer-Habermas traz em si a carga da aporia lógica que deu o tom profundamente crítico do pensamento desde o desafio proposto pelo programa iluminista. É possível dizer que se trata aqui de questões análogas às que se relacionam com as duas grandes matrizes do racionalismo moderno – em Hegel e Kant – que até os dias de hoje dividem e demarcam nossa tradição. Noutros momentos, poderíamos ver a oposição entre hermenêutica (Gadamer) e Teoria Crítica (Habermas) transformadas na oposição entre conservação e revolução, tradição e razão, imanência e transcendência, substância e forma, finitude e universalidade. Paul Ricoeur (1977) nos sugere que este embate envolve a reabilitação de um conflito mais antigo entre o espírito do romantismo e a Aufklärung – o primeiro, nostálgico do passado; o segundo em sua luta contra os preconceitos. Evidentemente não proponho que exista perfeita sincronia entre tais oposições, mas trata-se, em linhas gerais, de um problema fundamental de nossa tradição de pensamento que corresponde significativamente a este esquema.
O centro do drama filosófico que surge a partir de então, tem no século XVII, com o pensamento de Descartes à frente, seu momento catártico: a radicalidade revolucionária iluminista erige uma idéia de razão que, tomada à maneira de um ente transcendental e universal, seria capaz de agir ao modo de um fundamento. A quebra que se verifica em relação ao passado é não menos que extraordinária. A razão transcendental iluminista, ao reivindicar o status de fundamento, assume o lugar de uma idéia reguladora abstrata, retirando da tradição e da história o atributo a que até então lhe correspondia. A tradição e a história que deveriam, até então, servir de fundação, iluminar e dar sentido às escolhas, às expectativas e à vida, entram em colapso. A crítica do Iluminismo a este atributo fundacional da história e da tradição foi substituída por uma transcendência que, fora do mundo, podia definir juízos racionais sobre ele. Do registro da fundação, o pensamento flexiona-se ao registro do fundamento. Contudo, as inúmeras dificuldades e experiências, nem sempre bem-sucedidas, que se verificaram a partir da aplicação deste conceito de razão levaram a história do pensamento a um outro momento.
A crise do fundamento se anunciava num mundo em que a descrença na capacidade reguladora de uma razão auto-suficiente demonstrara suas limitações. Os traços relativamente claros que dividiam a Filosofia segundo as oposições anteriormente citadas se borram e, a despeito de permanecerem distintas sob novos formatos, novas dificuldades são colocadas. Como nos afirma Ernildo Stein acerca desta nova realidade em que a tradição e a razão parecem ter caído em algum descrédito, “a questão da fundamentação da verdade parece ter-se convertido num confronto entre problemas de ideologia” (Stein, 1987: 98).
A crise do fundamento não engendra, contudo, uma retomada enfática da tradição, mas opera um enfraquecimento do fundamento que passa a substituir seus caracteres substantivos por um formalismo. No caso da Teoria Política, as teorias liberais continuam reivindicando o status da racionalidade, mas assim pretendem-se por se caracterizarem segundo o formalismo do procedimentalismo de natureza liberal. O racionalismo subsistente no campo do direito vira-se ao pensamento sobre os meios jurídicos, descartando do horizonte a questão dos fins ou as indagações mais rigorosas sobre o tema da Justiça. No campo do pensamento histórico, que nos interessa aqui particularmente, não teremos mais uma oposição clara ao estilo “tradição ou progresso”, mas veremos novas reivindicações de universalidades reproduzidas nas formas da hermenêutica gadameriana e da Teoria Crítica. habermasiana A primeira, universalizando a linguagem como meio de compreensão ilimitada do mundo, na capacidade irrestrita de comunicar seus sentidos, mesmo através de indivíduos cujas formações lingüísticas sejam distintas; a segunda, na aposta na universalização do sujeito do conhecimento que é, antes de tudo, capaz de se posicionar criticamente frente à linguagem, promover as condições ideais para a comunicação, livrando-a do aspecto violento que as ideologias lhe introduzem. Ambos os caminhos, tanto o hermenêutico quanto o crítico (que a partir de então será também chamado de “dialético”) demonstram esta disposição por assumir um status universal enquanto metodologia interpretativa da história, como métodos de produção de racionalidade interpretativa. Ainda que não devessem ser tomadas como excludentes ou exatamente opostas, é clara a dupla proposta dentre as quais quase sempre seremos convocados a nos situar. Em realidade trata-se muitas vezes de um “confronto não excludente, mas antes busca de complementariedade, apesar da pretensão de universalidade apresentada tanto pela crítica como pela hermenêutica” (Stein, 1987: 102).
A marca que as distingue e as torna correspondentes – no interior da filosofia histórica – do antigo antagonismo entre tradição e Iluminismo se refere ao elemento de mediação e integralidade que caracteriza a hermenêutica, em oposição ao espírito crítico e negativo da crítica dialética. A hermenêutica se posiciona diante do passado assumindo com ele uma relação de contigüidade, ao passo que a crítica o lê a partir da expectativa da identificação dos obstáculos ideológicos da comunicação. Noutros termos, a hermenêutica pretende a integralidade a partir da percepção de si do sujeito do conhecimento na história e a crítica se afirma através do contraste e da negação. Ambas representam, contudo, dois momentos da reflexão humana. A atividade reflexiva, para produzir conhecimento, deve partir da autoconsciência, cuja origem encontramos na descoberta do cogito cartesiano. A contribuição da filosofia do século XVIII amplia esta consciência e a condiciona à tomada de consciência do outro – consciência esta que, no processo de aprendizado, lhe constitui o segundo momento. Refiro-me, especificamente aqui, ao esforço do percurso intelectual de Hegel pelo reconhecimento de referenciais intersubjetivos de construção da sociedade. A novidade que ele introduz, no contexto do idealismo alemão, em relação às capacidades da razão humana, está ligada à natureza concreta desta, à sua origem intersubjetiva e sócio-cultural.
A identidade e a diferenciação perfazem um único todo do processo cognitivo, de modo que hermenêutica (identidade) e a crítica (diferenciação) representam “as distintas posições da reflexão (…) quando cada uma toma em consideração e reivindica o momento acentuado pela outra: a crítica não recusa inteiramente a realização da mediação e a compreensão hermenêutica não elimina toda instância crítica” (Bubner 1970, apud Stein, 1987: 103). Epistemologicamente, ambas precisam uma da outra. A referência à polaridade entre ambos os métodos deve ser também pensada a partir da complementariedade. Neste sentido, Habermas se define mais claramente neste debate, por uma posição não dogmática em sua adesão à Teoria Crítica. Para ele, o questionamento que se deve direcionar à hermenêutica está relacionado ao fato de que “a auto-reflexão hermenêutica só se descaminha para este irracionalismo, contudo, quando ele absolutiza a experiência hermenêutica e não reconhece a força de transcender da reflexão, que também trabalha nela” (Habermas, 1987: 20).
Vemos que, a despeito de filiarem-se a um amplo debate filosófico, a hermenêutica e a crítica/dialética passam a se justificar circularmente nas suas próprias proposições. O dever ser que dava o tom da reivindicação filosófica do Iluminismo na forma da razão transcendental reaparece no historicismo hermenêutico na forma do reconhecimento da tradição e integridade da história. O que se vê em Gadamer e Habermas é a justificação circular de seus pressupostos segundo um fundamento que se assenta na totalidade da experiência humana. Na hermenêutica gadameriana, tal justificação reside na compreensão da capacidade lingüística de vislumbrar sem ruídos a tradição e, a partir dela, a posição do homem no mundo. Na dialética habermasiana o que se vê é uma igual crença na capacidade humana, mas aqui referente à sua capacidade de crítica e melhoramento técnico da comunicação. A virada contemporânea da história filosófica, menos demarcada em relação aos seus campos intelectuais do que antes, é aqui retratada por Stein:
Uma tal redução do espaço da teoria traz consigo também novas possibilidades de uma ampliação da produção de racionalidade a partir da integração e da convergência entre filosofia e ciências humanas, convergência que vem substituir a pseudo-racionalidade e transparência de um tipo de discurso que parte de dois pressupostos excluídos do campo hermenêutico e do campo dialético: o ponto de partida do mundo natural ou o ponto de partida do mundo teológico. (Stein, 1987: 108).
Apesar desta proximidade, que implica certa interdependência e assunção de pressupostos parecidos, os núcleos de ambas as filosofias destoam. A hermenêutica parte da idéia-base de uma radical finitude do homem, compreendido como um ser circunscrito existencial e epistemologicamente ao seu contexto histórico particular. Este postulado hermenêutico figura ao lado da crença de que, situando-se as questões humanas no ambiente próprio que circunda particularmente os homens, a linguagem e seu extenso poder são capazes de abarcar todas estas formas distintas de experiência. Não há, em Gadamer, a perspectiva do incomunicável, daqueles elementos que não são passíveis de tradução por meio da atividade hermenêutica de interpretação, ou seja, o intérprete tem sempre acesso ao seu objeto – dado ser sempre um objeto lingüístico. Entretanto, como pode qualquer objeto ser compreendido se a circunscrição do sujeito na sua particularidade o define em termos epistemológicos e, em tese, impede seu acesso irrestrito a um objeto?
Gadamer, em seu Verdade e Método, ao afirmar que “ser que pode ser compreendido é linguagem”, está dizendo que, se tudo que é compreensível é linguagem, não estamos em condições de dizer o que está fora dos limites de nossa compreensão. Desta feita, as perguntas invocadas pelo hermeneuta sempre terão suas respostas, pois estas sempre responderão a perguntas feitas dentro do universo lingüístico (e, portanto, existencial) que o define. O sujeito finito, determinado de tantos modos pelas condições históricas, compreende a história por meio da linguagem que tem por característica a capacidade de ampliar-se e fundir-se com outros horizontes lingüísticos. Este contato entre os horizontes ilustra a tradutibilidade do conhecimento entre diferentes estruturas de linguagem. Vemos aqui o enunciado do ponto central de divergência entre Gadamer e Habermas, associado à idéia de preconceito, interpretado por aquele enquanto insuperável e, por Habermas, como engano e irracionalidade. Na perspectiva de Gadamer, “este estar na história tem como conseqüência que o sujeito é ocupado por preconceitos que pode modificar no processo da experiência, mas que não pode liquidar inteiramente” (Stein, 1987: 112). Esta impossibilidade de eliminação do preconceito é o que embasa a crítica da hermenêutica contra o Iluminismo habermasiano. Como afirma Gadamer, “preconceito não significa, portanto, o juízo falso, mas nele reside a possibilidade de ser avaliado positiva e negativamente” (Gadamer, 1972 apud Stein, 1987: 112). Dada tal impossibilidade de constituir a interpretação histórica como atividade neutra despida de preconceitos e “lugares de fala”, a hermenêutica passa a adotar distinções entre tais preconceitos inerentes à atividade interpretativa, pois, evidentemente, deve-se criar critérios que façam da interpretação uma atividade de sensibilidade reflexiva, capaz de atingir um bom padrão de confiabilidade e densidade descritiva. Tal padrão se daria mediante o reconhecimento de seus próprios preconceitos – reconhecimento este que o Iluminismo tende a negar, constituindo este um dos seus maiores limites.
A reabilitação da autoridade e da tradição perpetrada por Gadamer não indica uma necessária adesão a inverdades ou falsificações ideológicas, mas o contrário: a admissão desta reabilitação leva o hermeneuta à compreensão de seu lugar e do lugar do outro. O rechaço do preconceito, por parte do iluminismo habermasiano, tende a produzir um ponto cego epistemológico que o impede de perceber que esta postura se constitui, ela mesma, num outro tipo de preconceito – com o agravante de que, neste caso, tal preconceito é desconsiderado e não se torna objeto de consideração reflexiva.
Este argumento da hermenêutica é respondido pela crítica dialética ao questionar a estrutura “preconceitual” supostamente necessária ao “compreender”. Ainda que se admita a importância de sua reivindicação por parte da hermenêutica, o que preocupa a Teoria Crítica é – a partir da influência de Heidegger sobre Gadamer – a sua radicalização no sentido de uma absolutização ontológica. Habermas quer eliminar pretensões de auto-suficiência do interior do argumento hermenêutico. Para a Teoria Crítica, o movimento de recuperação do fato histórico passado implica uma consideração racional dos pressupostos substanciais que lhe dão sentido. A estrutura da tradição, baseada em preconceitos que se revogam e sucedem, deve ser compreendida segundo um critério racional que, ao considerar racionalmente o preconceito, já não o tem propriamente como um preconceito. A interpretação crítica habermasiana nos afirma que
autoridade e conhecimento não convergem. É claro que o conhecimento radica em tradições fáticas; permanece ligado a questões contingentes. Mas a reflexão não trabalha na facticidade das normas herdadas sem deixar marcas. Está condenada a vir depois, mas na retrospectiva ela desenvolve força que retroage. (Stein, 1987: 116)
A aporia do método hermenêutico surge aqui em toda sua clareza, pois de fato parece claro que as normas internalizadas da tradição só poderiam ser assim consideradas se as seguíssemos sem quaisquer questionamentos. Se a reflexão é, por sua vez, capaz de nesta tradição identificar o elemento de violência ou aspectos do que seja indesejável, poderemos, por meio desta própria razão, dissolver o elemento “irracional” (pois meramente tradicional) da interpretação.
Gadamer responde às críticas de Habermas segundo a compreensão de que o lugar de toda crítica das ideologias, ao produzir um crítica total, se desloca da tradição e reivindica pra si um lugar privilegiado livre de toda e qualquer ideologia ou engano, o que configura uma postura arbitrária e mesmo injusta (posto que não é uma postura crítica obtida a partir de um consenso dentro da tradição) diante do mundo. No rebate a Habermas, Gadamer chega a atribuir à hermenêutica um status de universalidade prática.
Apesar das diferenças, Habermas expõe, por outro lado, observações positivas importantes acerca da hermenêutica, ainda que considere a superioridade do método dialético e da crítica das ideologias. Segundo Stein, os pontos de convergência seriam, basicamente: 1) a capacidade de descrever as estruturas da reconstituição da comunicação perturbada; 2) o reconhecimento da referência da hermenêutica à práxis; 3) a destruição da pretensão de objetividade das “ciências do espírito”; 4) a demonstração da determinação do lugar histórico do sujeito do conhecimento e das próprias ciências sociais; 5) a demonstração dos limites da auto-suficiência das ciências naturais; 6) o uso da hermenêutica como consciência necessária para a tradução das informações científicas para o âmbito do mundo da vida.
Tais atributos desta escola, todavia, não levam Habermas a render-se diante de sua proposta, sobretudo quando esta indica uma pretensão de universalidade. Ele insiste que o modo hermenêutico, ao se situar no âmbito da linguagem ordinária, está suscetível aos desvios que as perturbações sistemáticas da comunicação e da própria linguagem possam lhe provocar. A tradição continua sendo pensada numa chave negativa, pois as ideologias que a nutrem seguem sendo vistas como “a expressão sistematicamente distorcida da comunicação, sob efeitos de um exercício não reconhecido da violência” (Ricoeur, 1977: 100).
Se a hermenêutica não acontecesse num contexto de linguagem sistematicamente perturbada, alienada e distorcida pela violência que se manifesta sob influência das ideologias, a Teoria Crítica seria vã. No entanto, como estes elementos estão presentes e dispersos ao longo da história e da tradição, a crítica não só se torna possível como necessária. Isto porque a tradição representa mais que o sentido da nossa história: ela se relaciona com o trabalho e o poder, incorporando em sua coleção de sentidos os elementos que fundamentam as relações sociais e geram a impossibilidade de uma situação ideal de comunicação. A hermenêutica, por se mover no âmbito da linguagem ordinária, não pode avaliá-la segundo uma perspectiva crítica que indique este seu caráter ideológico. A crítica das ideologias proposta por Habermas surge para indicar justamente este aspecto ideológico da linguagem, a fim de superar a alienação provocada pelo engano interpretativo produzido por ela: “a comunicação livre de dominação converte-se em crítica das ideologias. Atingida uma vez a comunicação sem dominação, crítica das ideologias e hermenêutica coincidem” (Stein, 1987: 126).
Percebe-se que o problema que se coloca entre a Hermenêutica e a Teoria Crítica é basicamente o que define a oposição entre o que Ricoeur chama de “experiência de pertença” (Gadamer) e “distanciamento alienante” (Habermas). A conseqüência disto nos leva, como também já foi colocado, a duas posições distintas – e, no limite, opostas – diante do eixo conceitual preconceito-tradição-autoridade, diante do qual a hermenêutica faz sua vênia e a Teoria Crítica demonstra sua vontade de transcendência. A pergunta que levanto aqui é se esta oposição ou radical diferenciação é necessária ou mesmo factível. Uma das iniciativas de estabelecimento de uma possível conciliação entre as duas filosofias nos é oferecida exatamente por Paul Ricoeur. Um dos obstáculos que se interpõem a esta conciliação está naquilo que Ricoeur nos mostra a partir da reedição da disputa entre o romantismo e a Aufklärung: o Romantismo responde à pretensão iluminista de assumir um lugar crítico externo à tradição, invertendo a resposta à pergunta colocada pelo próprio adversário. O Romantismo, ao tentar reabilitar o passado e seus preconceitos, não consegue sair do esquema conceitual da Aufklãrung.
A questão, agora, é saber até que ponto Gadamer nos fornece um aporte capaz de superar “o jogo das reviravoltas no qual ele vê encerrado o romantismo filosófico, face às pretensões de toda filosofia crítica” (Ricoeur, 1977: 107). A contribuição gadameriana para a solução deste problema está na reformulação da “pergunta” iluminista, tentando demonstrar que não se pretende simplesmente o oposto do que este propõe, mas a grande questão está em reformar o que se entende por preconceito, tradição e autoridade, cujos significados não precisam ser lidos num registro de negatividade ou alienação. É na transformação desta interpretação dos conceitos que Gadamer se situa: “compreendida em seu verdadeiro sentido, a autoridade nada tem a ver com a obediência cega a uma ordem dada. Seguramente, ela não possui nenhuma relação imediata com a obediência, pois repousa sobre o reconhecimento” (Gadamer apud Ricoeur, 1977: 112).
Gadamer nos recoloca a questão: se antes a noção de autoridade estava associada à obediência, agora este mesmo conceito assume o sentido de reconhecimento. O elemento de violência é retirado e seu sentido tornado positivo. Da mesma forma, a ideia de tradição passa a figurar como elemento positivo: “costumes e tradições são recebidos em toda sua liberdade” (Gadamer apud Ricoeur, 1977: 112). Da mesma forma, a ideia de preconceito tão condenada pelos iluministas recebe uma nova compreensão e passa a ser entendida, segundo inspiração heideggeriana, como pré-compreensão necessária do mundo, que se alia à crítica da razão abstrata e revolucionária da Aufklärung. Esta importante intervenção de Gadamer pode ser compreendida, no seu sentido geral, como uma tentativa ousada de aproximar aqueles dois pressupostos que por tanto tempo foram tomados como dissociados. Ao invés de opor, Gadamer aproxima autoridade e razão, combatendo a leitura distorcida que a Aufklärung promove acerca dos temas ligados à autoridade, à tradição e aos preconceitos.
A resposta de Habermas pôde ser organizada em quatro momentos temáticos: 1) em oposição à tentativa gadameriana de dissolver o problema do preconceito, transformando-o em pré-compreensão, Habermas adota o conceito de interesse. O conceito deve ser entendido como o elemento que anima a ideologia, erroneamente considerada por Gadamer como “conhecimento desinteressado”. Na realidade a ideologia dissimula o interesse que lhe dá sentido, de modo que as “pré-compreensões” serão sempre pressupostos interessados. 2) às assim chamadas ciências do espírito ligadas à interpretação positiva da tradição, Habermas opõe as ciências sociais críticas, cuja marca definidora é sua ligação com um tipo específico de interesse: o interesse pela emancipação. Enquanto nas primeiras ciências a crítica só pode se desenvolver enquanto subordinada a uma consciência da finitude existencial, as ciências sociais críticas têm a crítica por fundamento, situando-se a reflexão acima da interpretação, identificando nas instituições sociais seus elementos de coação; 3) a ideia de não-compreensão própria da atividade hermenêutica, por sua vez, é respondida a partir de uma teoria das ideologias como distorção sistemática da comunicação. Habermas associa a ideologia à violência, que, por conseguinte, estão associadas à esfera do trabalho e do poder – esferas estas que, a despeito de consideradas pela hermenêutica, não são devidamente enfatizadas. Como afirma Ricoeur, “o fenômeno da dominação produz-se na esfera da ação comunicativa; é nela que a linguagem é distorcida em suas condições de exercício, no plano da competência comunicativa (Ricoeur, 1977: 125) Em oposição ao que Gadamer chama de não-compreensão, Habermas formula a ideia de compreensão sistematicamente distorcida gerada pela relação própria da linguagem com a esfera ideologizada do trabalho e do poder. A crítica de Habermas à hermenêutica assume a forma de uma meta-hermenêutica que, ao invés de simplesmente explicar, quer compreender os fenômenos, fazendo uma teoria das deformações sofridas pela comunicação e identificando as dissimulações ocasionadas pelo impacto da violência no discurso. Sendo talvez o maior ponto de divergência, veremos, por fim, que este pode ser também o maior aspecto de confluência entre ambas as filosofias; 4) à aposta na tradição como fonte de sentido para a auto-compreensão, Habermas opõe um ideal regulador que assenta sobre a expectativa de uma comunicação que se dá em condições livres de violência e limitações. Trata-se de um embate que se dá menos no campo do método estrito da interpretação do que no campo da ontologia. O erro de Gadamer, segundo Habermas, é a ontologização da hermenêutica, insistindo no consenso como se este fosse um elemento constitutivo do ser. Segundo Ricoeur, “a crítica das ideologias implica que coloquemos como idéia reguladora, adiante de nós, o que a hermenêutica das tradições concebe como existindo na origem da compreensão.” (Ricoeur, 1977: 128). A idéia reguladora que ocupa o lugar da ontologia da teoria crítica, em oposição à idéia da tradição na hermenêutica, é a de uma comunicação sem limite e sem coação.
Diante do exposto, Ricoeur afirma que “pode ser exigido que cada uma delas reconheça a outra, não como uma posição estranha e puramente adversa, mas como uma formulação, a seu modo, de uma reivindicação legítima” (Ricoeur, 1977: 131) e Stein afirma haver “tanto na hermenêutica como na dialética a idéia fecunda e inalienável das condições históricas do trabalho do pensamento. Mas afirmam ao mesmo tempo, e por isso mesmo, a impossibilidade de um ponto arquimédico para fundar a reflexão” (Stein, 1987: 130). Talvez seja de fato mais confortável ou racional pensar numa reformulação das bases da hermenêutica, considerando seriamente a possibilidade de uma dialética entre experiência de pertencimento e o “distanciamento alienante” da crítica. Deste modo, levaríamos talvez a crítica ao posto de uma meta-hermenêutica, como se a emancipação proposta por Habermas fosse a condição de possibilidade para a realização da “boa” hermenêutica, posto que, “o interesse pela emancipação seria abstrato e exangue se não se inscrevesse no plano mesmo em que se exercem as ciências histórico-hermenêuticas, vale dizer, na ação comunicativa” (Ricoeur, 1977: 142).
De fato, a Hermenêutica e a Crítica se desenvolvem num mesmo ambiente de interpretação da linguagem, mas com orientações distintas. Sendo assim, uma lição que deve ser aprendida com a hermenêutica é a de que a condição de possibilidade para uma crítica consistente que vise a emancipação só pode se dar a partir de uma reinterpretação criadora das heranças culturais. A crítica, por sua vez, operando segundo a expectativa da emancipação, pode auxiliar o intérprete no desvendamento dos elementos das ideologias que legitimam, por exemplo, “relações de dominação e desigualdades necessárias ao funcionamento do sistema industrial, mas dissimuladas pelas gratificações do sistema sob todas as formas de gozo” (Ricoeur, 1977: 143). Por último, poderíamos identificar como uma clara possibilidade de reorganizar os campos definidos por estas duas filosofias a partir da fusão dos momentos epistemológicos que elas sugerem.
Por fim, se a hermenêutica se volta para o consenso que nos precede e a crítica trata de concretizar a promessa de uma emancipação futura, pautada no ideal de uma comunicabilidade liberta de coações, por que não tomar esta expectativa, já tão enraizada em nossa tradição de pensamento, como um elemento da própria tradição a ser interpretada pelo hermeneuta? Parece-me que não há saída, para uma boa hermenêutica, que desconsidere nossa particular preocupação com o futuro, e as transições pelas quais passamos ao concebê-lo e imaginá-lo em perspectiva de mudança. É diante da sobreposição dos caminhos da Crítica e da Hermenêutica que Ricoeur parece esclarecer este ponto tão importante e frutífero para a nossa reflexão:
Porque, afinal de contas dirá o hermeneuta: de onde vocês falam quando recorrem à Selbstreflexion, senão desse lugar que vocês mesmos denunciaram como sendo um não-lugar, o não-lugar do sujeito transcendental. É do fundo de uma tradição que vocês falam. Talvez essa tradição não seja a mesma que a de Gadamer. Talvez seja justamente a da Aufklãrung, enquanto que a de Gadamer seria a do romantismo. Mas ainda é uma tradição, a tradição da emancipação, mais que a da rememoração. A crítica também é uma tradição. Diria mesmo que ela penetra na mais impressionante tradição, a dos atos libertários, a do Êxodo e da Ressurreição. (Ricoeur, 1977: 145 g)
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Gustavo Cezar Ribeiro
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. I – Traços Fundamentais de Uma Hermenêutica Filosófica. Petrópolis.Ed.Vozes.1997
HABERMAS, Jürgen. Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: L&PM, 1987
RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1977
STEIN, Ernildo. Dialética e Hermenêutica: uma controvérsia sobre método em filosofia. In. Jürgen Habermas, Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: L&PM, 1987