Obviamente não é tarefa das mais fáceis, e nem poderia mesmo ser, dizer de uma forma um tanto quanto categórica, que Diderot[1] (Langres, 1713 – Paris 1784) está inteiramente embrenhado por um espírito cético. O que nos causa curiosidade é o fato de podermos detectar como alguns preceitos da argumentação cética estão desenvolvidos no pensamento de Diderot desde o início de seu pensamento, ou seja, desde a sua juventude até sua fase madura.
É bastante comum, entre os estudiosos de Diderot, vermos sua caracterização em meio aos termos “confuso”, “complexo”, “pensador multifacetado” e, ainda, “contraditório” em suas ideias. Tais adjetivações não são sem porquê. Existe, sim, em Diderot certa dificuldade de enquadramento de suas ideias e de seus propósitos, e isso se deve, em boa parte, às grandes mudanças teóricas pelas quais passou seu pensamento: cristianismo católico, deísmo e, por fim, materialismo ateu.
Tais confusões começam a desenovelar-se quando propomos uma leitura de Diderot por meio de um linha do tempo de sua vida, de suas obras. Ali teremos uma clara definição dos escritos de juventude e os de maturidade. De um a outro, são os embates das ideias diderotianas, a forma como eles se desenvolvem, o ponto interessante que nos permite falar de um estreito laço de Diderot com o ceticismo, de um diálogo que vai se transformando conforme suas ideias amadurecem. Em outras palavras: em meio à complexidade tão comum a Diderot, é justamente o ceticismo o fio condutor que dá unicidade (sentido) a toda essa aparente contradição de ideias contidas em suas obras.
Diderot teria, já em seu texto de juventude (Pensamentos filosóficos, 1746), incorporado o ceticismo nas suas discussões mais calorosas tomando-o como um desintoxicador dos dogmas adquiridos ao longo de sua vida (dogmas estes intimamente ligados à sua educação católico-religiosa). Em sua fase madura, o ceticismo vem a funcionar como um enriquecedor dos diálogos travados entre seus personagens com os mais incríveis argumentos construídos em torno da crítica à moralidade de seu tempo (O sobrinho de Rameau, 1775-76), ou melhor, o ceticismo funcionando como um moderador da razão iluminista. Mas, embora exista um diálogo ininterrupto com o ceticismo, em momentos distintos de sua vida, pode-se, enfim, considerar Diderot um cético? Foi um cético na sociedade em que viveu?
[Obviamente, a intenção aqui não é – e nem poderia mesmo ser, pela brevidade do texto e do espaço – fazer um estudo aprofundado das obras de Diderot em suas duas grandes fases. Fiquemos detidos apenas à questão de como este pensador tem o ceticismo como interlocutor de seus pensamentos em fases diferentes de sua vida. E, para isso, ficaremos apenas com duas de suas obras: Pensamentos filosóficos (1746) e O sobrinho de Rameau (1775-1776 e publicado postumamente em 1821), obra de juventude e de maturidade, respectivamente].
O pensamento de Diderot passa por modificações até chegar ao que consideramos “maduro”. Não se trata de evoluções provenientes de um refinamento ou da aquisição de maior complexidade em torno de uma mesma questão; não se trata simplesmente de um amadurecimento em relação a um primeiro problema posto por seus questionamentos. As transformações aí percebidas representam modificações em toda uma estrutura de pensamento que fará imprescindivelmente com que Diderot mude sua interpretação acerca do homem e da vida em sociedade, ou seja, sobre o fundamento moral de seu tempo, pois a estrutura moral que fundamenta uma determinada visão de mundo não é a mesma para um cristão (católico), para um deísta e para um materialista/ateu (fases pelas quais passa seu pensamento). Cada qual alicerçará sua estrutura moral de acordo com a crença que lhe for própria – e ao falar em crença não estamos isentando os ateus, já que também estes parecem possuir uma estrutura que é condição essencial ao seu modo de vida. Portanto, a palavra ‘crença’ está sendo usada aqui, neste caso especificamente não com o seu sentido dogmático-religioso, mas no sentido que dá sua asseveração a algo e acredita ser este algo uma base de sustentação ao que se quer construir.
Quando ligado ao catolicismo – embora não tenhamos acesso aos possíveis registros de seu pensamento durante seu “período católico”[2], por assim dizer – apenas fragmentos, nem sempre tão claros, contidos em seus Pensamentos filosóficos -, podemos supor que, como todo cristão ligado às verdades que lhe são tão caras à formação de um princípio de conduta, não devia haver, em Diderot, um questionamento que colocasse em dúvida os preceitos que até então seguira. A primeira transformação, que o faz se posicionar criticamente em relação aos dogmas da religião já é o resultado das influências céticas que lhe chegam via Montaigne[3], grande influência para Diderot em sua fase jovem.
Diderot desenvolve a habilidade de argumentação como um contraponto a essas verdades dogmático-religiosas que, até então, eram inquestionadas por ele. A essa primeira transformação em seu pensamento, temos a mudança que insere de vez, ou que simplesmente marca sua aderência, em um comportamento cético; em uma configuração cética do pensamento responsável, de certa forma, por todas as outras futuras mudanças.
Mesmo que seja bastante comentada, e provada, toda a crítica desenvolvida por Diderot contra o dogmatismo metafísico-religioso, ainda não fica tão clara a sua posição quanto a isso nesses seus escritos de juventude. Vejamos um trecho pertencente a seus Pensamentos filosóficos (obra de juventude, portanto) onde o ceticismo aparece pela primeira vez:
Nasci na Igreja católica, apostólica e romana, e me submeto com toda minha força às suas decisões. Eu quero morrer na religião de meus pais, e a creio boa tanto quanto é possível a alguém que nunca teve um comércio imediato com a Divindade e que jamais foi testemunha de um milagre.[4]
Mesmo já tendo o ceticismo como interlocutor – e a sua influência aí é responsável por toda a crítica que se desenvolveria em relação aos dogmas de sua religião -, o que Diderot quis dizer com a afirmação acima?
Por se tratar de uma fase jovem, acreditamos que o primeiro contato com o ceticismo ainda tenha se dado de forma um pouco receosa, pois não devia ser tarefa das mais fáceis ter de abandonar todas as crenças sobre as quais se sustentou, até então, toda sua estrutura de vida (social, moral, psicológica, etc). Ainda que levemos em consideração esta possibilidade de um receio, a presença primeira do ceticismo no pensamento de Diderot é a condição de possibilidade para todas as outras formas de sua interação com a doutrina.
É bom sempre lembrarmos que o modo cético com que Diderot se volta à religião, criticando as mais profundas questões metafísicas (a existência da alma, de Deus, da vida após a morte, etc), pertence à sua fase de juventude. Nela o ceticismo parece ganhar contornos de propedêutica ao conhecimento, já que a partir dessa crítica à religião, Diderot se encaminha à (re)construção de uma nova religião, ou melhor, de uma renovada religião, a deísta[5]. Partindo dessa constatação, não se pode dizer que existiu no jovem Diderot uma radicalidade no que concerne à dúvida ainda que a mudança tenha sido grandiosa, haja vista os efeitos que causou ao longo de seu pensamento futuro. Aliás, o ceticismo na modernidade é caracterizado pela moderação[6], pela restrição ao problema do conhecimento teórico. Não haveria de ser diferente com Diderot, pelo menos não em sua primeira fase. A saída do dogmatismo religioso e o uso do ceticismo para esse fim nos lembra a posição de Descartes para quem o uso da doutrina, ou melhor, parte dela, serviu como limpeza de toda crença infundada que aprendera ao longo da vida. Sendo assim, dizemos que o primeiro contato de Diderot com o ceticismo não o levou à prática dessa doutrina e de todos os seus preceitos; limitou-se à dúvida única e simplesmente em relação às suas crenças.
Embora esta seja considerada uma grande mudança, a prática cética da dúvida como uma habilidade constante sem a pretensão de chegar a uma verdade absoluta (a um conhecimento de fato sobre algo), não é levada a cabo por Diderot nesse primeiro momento. A ruptura por ele sofrida não o deixa vagando sem um substrato teórico. Sua adesão deísmo parece preencher o vazio que se estabelece quando se extirpa de seu espírito os dogmas cristãos.
Em sua fase deísta (fase intermediária) o que está em jogo é a utilização da capacidade racional para resolver problemas cujos assuntos, antes, eram apenas questão de fé cega. Pela racionalização da religião, percebemos que os argumentos céticos, que o fizeram se rebelar da Igreja e de seus preceitos, não foram tão radicais e constantes, pois o deísmo ao qual se afeiçoa é a demonstração de que há uma crença na capacidade racional em alcançar a verdade. Essa ligação que ainda leva em conta (crê em) um princípio estruturador de toda a vida terá como base moral os princípios da natureza, ou seja, Deus como o princípio único e harmônico de tudo o que existe, mas sem a concepção judaico-cristã do Deus julgador dos homens e de suas ações.
Ao falar em princípios da natureza, vemos surgir uma nova e transformadora questão: as ações humanas teriam, agora, outro respaldo teórico? Segundo o pensamento de Diderot, podemos dizer que sim, tais ações seriam justificadas não mais por uma dicotomia judaico-cristã de bem/mal (da religião baseada na Revelação), mas estariam por sobre uma base mais plural. Esta base é a natureza e suas exigências (de conservação, adaptação e de evolução), logo o único substrato de uma nova concepção ético-moral. Deste modo, entra em cena a valorização da vida prática e de sua dinâmica[7]. O ceticismo da fase deísta de Diderot iniciou o que viria a ser mais bem desenvolvido no seu pensamento maduro (materialista e ateu), como “relativismo moral”.
Tendo partido do cristianismo católico (religião dogmática), passando pelo deísmo (religião racionalizada), o que se pode esperar de um pensamento completamente vertido ao materialismo e ao ateísmo? Qual o resultado que provocaria à discussão moral do século XVIII? Quais as consequências dessa visão materialista e ateísta para o homem e seu comportamento, para a sociedade e suas normas, para o futuro e suas discussões morais?
A valorização da vida prática terá nos ensinamentos e necessidades humanas a pedra de toque para uma nova estrutura moral. Esta será a perspectiva do pensamento maduro de Diderot, uma vez que tais necessidades e sentimentos serão consequências naturais conforme às transformações da matéria em seu movimento ininterrupto de evolução. Não há mais um princípio estruturador metafísico que ordene “de fora” e que, por isso mesmo, justifique todos os fatos, ou seja, nem o Deus da Revelação, nem o Deus imanente do deísmo.
A relatividade em Diderot está mais bem desenvolvida na sua fase madura, principalmente em O sobrinho de Rameau, onde o autor deixa explícita a sua valorização do ponto de vista inverso, ou seja, do discurso do “outro”, onde se reúne tudo o que foi preterido pela ordem de um sistema baseado na racionalidade. Isso significa que a preocupação de um Diderot maduro vai de encontro a todo e qualquer tipo de absolutização no campo ético-moral. Se, por um lado, Diderot pode ser chamado de racionalista (e de fato o é se levamos em conta seu papel de enciclopedista, onde a ciência e, portanto, a capacidade racional é valorizada), por outro ele é entendido como crítico dessa exacerbada valorização da razão que a deixa cega diante de seus próprios limites.
Como crítico, influenciado pelo ceticismo (via Montaigne, Bayle e Hume, por exemplo), Diderot desenvolve seu pensamento rumo ao relativismo moral; como filósofo, no sentido mais amplo do termo, busca explicação, organização metodológica (não deixa de ser um formador de sistemas de conhecimento).
Vejamos o que nos diz um trecho do verbete “Relativismo” de Ferrater Mora, para efeito de comparação:
O relativismo é considerado geralmente como uma atitude. No entanto, apresenta-se, ou pode se apresentar, também como uma doutrina filosófica (geralmente como um ponto de partida filosófico). (…) Um termo médio entre estes dois aparece quando, após ter aceito o relativismo, se percebe que ele atua como um corretivo, mas não para passar de novo a um absolutismo mas para erigir uma filosofia positiva na qual a relatividade e seu reconhecimento sejam plenamente admitidos. Tal filosofia se baseia no princípio “nem filosofia nem absolutismo”; princípio que não é mera escolha entre dois estremos, mas uma “absorção” deles numa unidade superior.[8]
Partindo do que foi transcrito no trecho acima, podemos dizer que a relatividade (moral) presente em O sobrinho de Rameau se encaixa perfeitamente na explicação contida nesse verbete de Ferrater Mora, já que Diderot não é um relativista no sentido absoluto do termo. A abertura que presenciamos no diálogo entre os personagens Lui e Moi, no que diz respeito à pluralidade de discursos[9], representa exatamente a evolução do pensamento diderotiano que o faz chegar ao posicionamento relativista em assuntos da moral. Portanto, o “corretivo”, de que nos fala o verbete, se encaixa como caracterização dessa fase consciente (madura) presente no diálogo de O sobrinho de Rameau. Quando se valoriza a pluralidade de perspectivas, não faz sentido falar em absolutização nem em relação à razão (com suas pretensas explicações sobre tudo) e tampouco em relação à própria visão relativista. Em outras palavras: a “aceitação” – para usarmos a explicação do verbete – do relativismo por parte de Diderot se dá por meio de inúmeras experiências advindas de questões que o impulsionaram a interagir com várias correntes de pensamento; que o amadureceu ao ponto de o tornar um iluminista plenamente conhecedor do ônus dessa grande empreitada do Século das Luzes, o que significa dizer que há uma quebra do projeto grandioso da razão quando se desenvolve a consciência de seus resultados. Tudo isso leva à admissão do relativismo, à acolhida de um pensamento bem mais atento aos contextos distintos, às circunstâncias dos homens em sociedade. Daí se entende melhor o relativismo em questões morais.
Em uma outra parte do verbete “Relativismo”, de Ferrater Mora, lemos que “Alguns autores julgam que, no nível epistemológico, o relativismo brota de uma atitude cética (…) e no nível moral brota de uma atitude ‘cínica’”. Por “atitude cética”, devemos entender os hábitos que caracterizam os céticos da antiguidade (investigar, duvidar, suspender o juízo, etc)[10], por exemplo. Essa atitude, na modernidade, sabemos, ganha importância preliminar a toda investigação filosófica (nível epistemológico). Já a “atitude cínica” está ligada à indiferença do homem em relação ao mundo em que vive (às ordens, às estruturas, à moral, etc).
A distinção entre as atitudes cética e cínica, no que diz respeito ao surgimento da relatividade, nos é importantíssima na interpretação de O sobrinho de Rameau, já que o cinismo é a característica utilizada por Diderot na criação dessa obra. Estando o cinismo nela presente (obra madura cujo tema é a moral), podemos concluir com mais convicção que o pensamento de Diderot ao escrever essa obra é o de um relativista moral e não propriamente de um cético.
O espírito de contraposição de que Diderot reveste sua personagem principal da trama (Lui) mostra que, de fato, o mais importante, em meio à rusticidade e cinismo nele presentes, era mesmo realçar o posicionamento crítico no que diz respeito à racionalização da moral; fazer notar que a consciência e a atitude de Lui são, inevitável e ironicamente, os efeitos colaterais (o fruto) do projeto de uma razão otimista. Com isso, temos um Diderot, por assim dizer, dialético[11].
Ainda sobre a questão do relativismo moral em Diderot, vejamos, a efeito de comparação, o que nos diz, respectivamente, o oitavo e o décimo modos das Hipotiposes pirrônicas:
O oitavo modo é aquele baseado na relatividade; e através dele, concluímos que, como todas as coisas são relativas, devemos suspender o juízo no que diz respeito ao que as coisas são absolutamente e quanto à sua existência real. E é necessário observar que, aqui, e em toda parte, usamos o termo “são” no sentido do termo “parecem”, e o que queremos, em termos práticos, é dizer: “todas as coisas parecem relativas”. E esta é uma afirmativa. Ela refere-se, em primeiro lugar, a uma relação com a coisa que julga (pois o objeto externo que é julgado aparece em relação a esta coisa), e, em segundo lugar, a uma relação com as coisas percebidas conjuntamente: por exemplo, com à relação com a coisa que julga, cada objeto só aparece em relação a algum animal, ou homem, ou sentido particular, e em relação com tal e tal circunstância; e, no que diz respeito a coisas concomitantemente percebidas, cada objeto aparece em relação a alguma mistura ou modo ou combinação ou quantidade ou posição particular.
Há um décimo modo, o qual diz respeito, principalmente, à ética, sendo baseado nas regras de conduta, nos hábitos, leis, crenças em lendas e concepções dogmáticas. Uma regra de conduta é a escolha de uma maneira de viver, ou de uma ação particular, adotada por uma pessoa ou por muitas (…). Uma lei é um contrato escrito entre os membros de um Estado, sendo que qualquer um que transgredir é punido. Um hábito ou costume (os termos, aqui, são equivalentes) é a adoção conjunta de um certo tipo de ação por um determinado número de homens, sendo que a transgressão, aqui, não acarreta realmente em punição; por exemplo, a lei condena o adultério, e o costume, entre nós, proíbe a relação [sexual] com uma mulher em público. A crença em lendas é a aceitação de eventos não-históricos e fictícios, tais como, entre outros, as lenas a respeito de Cronos; pois muitos são os que dão créditos a tais histórias. A concepção dogmática é a aceitação, como, por exemplo, que os átomos são os elementos formadores das coisas existentes, ou, então, os homeômeros ou partes últimas, ou alguma outra coisa (…)[12]
Poderíamos, de fato, ter utilizado muitos outros exemplos em conexão com cada uma das antíteses mencionadas acima; mas, em um relato conciso como o nosso, o que dissemos será suficiente. Deve-se acrescentar somente que, demonstrando-se através deste modo haver tanta divergência nos objetos, não seremos capazes de dizer que característica pertence ao objeto no que diz respeito à sua essência real, mas apenas o que pertence a ele em relação a um modo de vida, ou lei, ou hábito, e daí por adiante, com cada um dos restantes.[13]
Partindo do princípio de que Diderot teve o ceticismo como interlocutor em seus escritos de juventude, momento em que passa por uma grande crise em relação a sua crença religiosa, e o manteve como questão sempre recorrente ao longo da evolução de seu pensamento (a Enciclopédia, por exemplo, contém verbetes dedicados a explicação da doutrina: “ceticismo/céticos” e “Pirronismo/Filosofia cética”), é inegável o trabalho de pesquisador histórico por ele muito bem representado na tarefa de uma melhor compreensão do que fora o ceticismo. Aliás, os próprios verbetes da Enciclopédia são a prova de que Diderot foi um profundo conhecedor da tradição cética (pelo excelente papel desempenhado como historiador da filosofia) e, portanto, das Hipotiposes e todos os argumentos.
A exposição aqui, dos modos oitavo (sobre a relatividade) e décimo (sobre a ética) só fortalece a imagem de um Diderot completamente inteirado e sensível aos argumentos céticos, mas que não se confunda essa tal sensibilidade com uma adesão pura e simples à doutrina. Como a intenção, aqui, é colocar, de certa forma, em evidência os fortes vínculos existentes entre o ceticismo e o pensamento de Diderot, basta levarmos em conta o somatório de seu conhecimento sobre história da filosofia (principalmente do ceticismo) aos argumentos de Sexto Empírico (especificamente nesses dois modos aqui transcritos), e veremos se desvelar a nossa frente o que podemos chamar de fundamento da relatividade moral em Diderot, no diálogo entre Lui e Moi.
O sobrinho de Rameau não contém, como nos seus escritos de juventude, uma forma de diálogo direto com o ceticismo. Ou seja, não se trata de uma obra que realça diretamente a crise causada pelo embate entre as crenças de Diderot e seu despertar crítico animado por influências céticas. No Sobrinho, podemos dizer que o ambiente é o que se manifesta (se constata) após uma crise estabelecida (crise provocada pelos argumentos céticos) que irremediavelmente transforma toda a configuração moral.
O pensamento transformado, maduro, de Diderot coloca em evidência exatamente o espírito de uma sociedade que perde a crença na capacidade humana de organização do mundo mas que precisa, em meio à frustração, continuar agindo como se todo comportamento humano estivesse seguramente justificado. O resultado desse sintoma é o personagem sobrinho, único, em meio à crise que se abate sobre a sociedade francesa do século XVIII, sensível (corajoso, “cara-de-pau”) o bastante para afirmar tudo isso; nele, Diderot juntou todas as características resultantes desse momento. Podemos dizer, então, que o sobrinho é a representação mais fiel de uma crise cética em relação à moral e aos bons costumes.
A curiosidade maior em todo o pensamento diderotiano é o fato de sempre existir em suas obras uma espécie de acirramento que nada mais é que o reflexo do embate entre um Diderot racional (científico) e um Diderot desiludido (cético-crítico). Embora ele também seja fruto de um otimismo racional característico das Luzes, o seu pessimismo em elação à sua época deve-se – como falamos ao longo desta apresentação – ao diálogo ininterrupto com o ceticismo. Ora parece louvar o otimismo da razão, acreditando na sua capacidade sistemática e organizadora de dar sentido (ordem) ao mundo; ora apresenta-se como um porta voz de toda angústia (frustração) de uma época desacreditada nessa mesma razão (e O sobrinho de Rameau é o maior exemplo disso).
O ponto-chave para entendermos como e por que ele procede desta forma está exatamente na influência cética. É o ceticismo que funciona, portanto, como freio ao otimismo e leva Diderot para o caminho de uma revisão moral. É aí que encontramos nosso respaldo à discussão em torno do relativismo moral em Diderot. Por outro lado, não é menos verdadeiro dizer que o seu otimismo salva, por sua vez, um ceticismo à beira da radicalidade. Assim sendo (otimista e pessimista em relação ao Iluminismo), Diderot vai moldando o mais realista e detalhado registro dos homens e seus comportamentos morais, pela via de um ceticismo presente em todas as fases de seu pensamento.
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Marcela Fernandes
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Bibliografia:
DIDEROT, Denis. Pensamentos filosóficos. Coleção Textos Filosóficos. Editora 70, 2013.
DIDEROT, Denis. O sobrinho de Rameau. Textos escolhidos / Diderot; traduções e notas de Marilena Chaui, J. Guinsburg. – São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os pensadores).
FERRATER MORA, “Pirronismo”, “Relativismo”. Tradução: Maria Stela Gonçalves, Adail U. Sobral, Marcos Bagno, Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 2004.
GUINSBURG, J. Denis Diderot, o espírito das Luzes. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
MONTAIGNE, Michel. “Apologia de Raymond Sebond”, In: Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
PIVA, Paulo Jonas de Lima. O ateu virtuoso: materialismo e moral em Diderot. São Paulo: Discurso Editorial: FAPESP, 2003.
PIVA, Paulo Jonas de Lima. O jovem Diderot e o ceticismo dos pensamentos. Dois Pontos, Curitiba; São Carlos, vol. 4, n. 2, p 171-201, 2007.
PIVA, Paulo Jonas de Lima. O acerto de contas de Diderot com o ceticismo. Transformação, Marília-SP, v. 31 n. 2p. 79-95, 2008.
POPKIN, Richard. Scepticism in the Enlightenment. Kluwer Publisher, 1997.
SEXTO EMPÍRICO. Hipotiposes pirrônicas. Tradução: Danilo Marcondes.
SOUZA, Maria das Graças de. Natureza e Ilustração. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
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[1] Denis Diderot, filósofo francês do século XVIII, mais conhecido pelo grande projeto da Enciclopédia juntamente com D’Alembert.
[2] O que sabemos sobre Diderot cristão são curiosidades sobre sua biografia, tais como o fato de ter sido educado sob fortes princípios cristãos, sua formação em Teologia pela Sorbonne, a quase carreira de jesuíta que seguiu, etc.
[3] Montaigne (1533 – 1592) é o personagem responsável pela reinserção do ceticismo antigo (pirrônico) na Modernidade, a base de onde o pensamento crítico moderno pegará impulso às suas empreitadas. Ele faz parte do reflorescimento cético ocorrido na Renascença (século XVI), onde os ensinamentos pirrônicos voltam ao cenário acalorando principalmente discussões religiosas cujos argumentos desde sempre foram muito polêmicos acerca dos princípios fundadores (conhecimento religioso). Sua Apologia a Raymond Sebond é fortemente resultado de suas leituras das Hipotiposes Pirrônicas e, por isso, o primeiro grande acontecimento de que se tem registro do reavivamento do ceticismo nesse contexto.
[4] DIDEROT, Pensamentos filosóficos.
[5] O deísmo de Diderot é a racionalização da religião. Procura entender o mundo não por meio da Revelação, mas pelo uso da razão em questões que sempre foram tidas como campo pertencente à fé, à crença. O deísmo, portanto, vem reforçar a ideia da naturalização da religião, o que não significa uam ruptura com o seu cristianismo católico.
[6] O ceticismo antigo, segundo Sexto Empírico nas suas Hipotiposes bem diz, é uma habilidade (dynamis); uma habilidade argumentativa, um modo de vida. O ceticismo moderno é restrito ao processo de conhecimento; é mitigado, moderado, isto é, deixa de ser uma habilidade/modo de vida para se tornar uma fase indispensável no conhecimento.
[7] Tal valorização está presente na obra O sobrinho de Rameau.
[8] FERRATER MORA, 2001.
[9] Lui é Rameau, Jean Françoir Rameau, sobrinho fracassado de um músico reconhecido pela sociedade da época, Jean-Philippe Rameau. Moi é o filósofo da trama.
[10] As habilidades céticas registradas por Sexto Empírico nas Hipotiposes pirrônicas.
[11] Hegel, em seu Prefácio à Fenomenologia do Espírito, cita O sobrinho de Rameau.
[12] SEXTO, Hipotiposes pirrônicas, Cap. XVI.
[13] Idem, ibidem.