Se se trata de discutir pesquisa em filosofia, a pergunta imediatamente nos acode: pesquisa em Filosofia ou pesquisa em História da Filosofia? A pesquisa em História da Filosofia tem sido fortemente desenvolvida entre nós, com profícuos resultados. Um número já impressionante de boas monografias historiográficas foram produzidas por nossos professores e pós-graduados e isso é e deve ser para nós um motivo de orgulho. Estamos fazendo boa História da Filosofia e estamos preparando nossos alunos com seriedade e rigor para serem bons historiadores da Filosofia. Isso não está certamente em questão e creio ser objeto de consenso. Os trabalhos de nossos alunos, os resultados que têm logrado, mesmo durante seu curso de Graduação, o mostram obejamente, e este mesmo encontro, que se está hoje iniciando, é disso a irrefutável prova.
Todos sabem que fomos formados na sólida tradição historiográfica francesa e que sua influência sobre nós foi extraordinariamente importante, particularmente sob a forma do assim chamado método estruturalista de leitura e estudo das obras filosóficas. Os nomes de nossos grandes professores franceses, de Martial Guéroult e, em particular, do meu saudoso e amado Victor Goldschmidt, são de todos vocês conhecidos e nunca é demais renovar-lhes o preito de nossa gratidão. Eles nos ensinaram o rigor metodológico na leitura, mostraram-nos como tentar reconstruir uma doutrina ad mentem auctoris. Permitam-me dizer-lhes que continuo totalmente convencido de que se trata possivelmente do melhor método para lograr uma primeira hipótese interpretativa, e de um primeiro passo indispensável para qualquer apreensão do significado e escopo de um sistema filosófico. Um primeiro passo indispensável e preliminar a toda análise comparativa, a todo esforço de compreensão mais global, a uma interpretação posterior mais geral de uma obra que permita relacioná-la com seu contexto cultural, político, econômico, e que propicie sua inserção numa perspectiva mais propriamente histórica.
Nesse trabalho de refazer os movimentos filosóficos que estruturam uma filosofia particular, de apreender sua lógica interna, impõe-se seguramente a necessidade metodológica de deixar de lado as posições pessoais, os pontos de vista filosóficos que eventualmente se tenham, faz-se mister o esquecimento metodológico de si próprio. E se trata, por certo, de um método difícil de se praticar. Ao que se acrescenta a necessidade de nos desvencilharmos dos preconceitos que se opõem a um tal método, proclamando, às vezes com base numa argumentação superficial, a impossibilidade de se lograr aquele desideratum. Preconceitos que asserem dogmaticamente a impossibilidade de assumirmos metodologicamente uma perspectiva menos comprometida com nossa situação particular e menos restringida por nossas limitações históricas.
Haveria muito a discutir sobre isso e trata-se de um assunto que mereceria uma atenção toda especial, mas não me demorarei aqui sobre esses pontos. Assumirei que, no nosso contexto específico, a validade do método historiográfico dito “estruturalista” de investigação das obras filosóficas representa um ponto de relativo consenso.
É de outra coisa que quero falar, da pesquisa em Filosofia, do treinamento do jovem estudioso que resolveu fazer Filosofia, dedicar- se à Filosofia e procurou para isso um curso de Filosofia. Aceitemos, ao menos para argumentar, que introduzi-lo à prática do método estruturalista é a melhor maneira de prepará-lo para ser capaz de tentar apreender com alguma profundidade a estrutura interna das obras filosóficas que nos oferece a história do pensamento ocidental, desde as suas origens gregas até nossos dias. A melhor maneira, por isso mesmo, de prepará-lo para se tornar um bom historiador da Filosofia. E podemos convir, sem maior discussão, em que fornecer- lhe abundantes cursos predominantemente de História da Filosofia é sobremaneira eficaz para a consecução de uma tal meta.
Quero interrogar-me aqui, porém, sobre se essa é também a melhor maneira de preparar alguém para a prática da Filosofia, para atender ao anseio original dos que vieram ao curso de Filosofia movidos por outra intenção que não a de tornar-se um dia bons historiadores do pensamento filosófico. Seus impulsos eram filosóficos. Acredito que se pode dizer isso de um bom número de nossos estudantes. E me ocorre, então, a seguinte pergunta, que formularei com alguma brutalidade: estamos contribuindo para a concretização desses impulsos, ou os estamos matando?
Talvez seja o momento de começarmos a refletir sobre esse problema, de iniciarmos sobre ele uma discussão longa, demorada e ponderada, reunindo estudantes e professores, que poderia ser levada a efeito e mesas-redondas, em colóquios, até mesmo em seminários e cursos. Essa discussão, por que não desenvolvê-la logo? Por que, por exemplo, nos próximos meses? Para usar uma linguagem kuhniana2, não se estará desenhando para a nossa comunidade departamental uma perspectiva de mudança de paradigma? Não estarão dadas as condições que propiciarão uma tal “revolução”? Talvez seja chegada a hora de nos preocuparmos um pouco mais com tentar responder a algumas perguntas que cada vez mais parecem oportunas: prepara-se alguém para a prática da Filosofia do mesmo modo como se prepara alguém para a pesquisa a prática da História da filosofia? A iniciação à pesquisa em Filosofia é a mesma coisa que a iniciação à pesquisa em História da Filosofia? O aprendizado de um método rigoroso de pesquisa historiográfica, do método estruturalista, por exemplo, é o único ou o melhor caminho para fazer desabrochar as potencialidades filosóficas daqueles nossos estudantes que foram trazidos a um curso de Filosofia por sentirem sede e fome de Filosofia?
Porque o temor que me assalta é que, levados pela nossa segura consciência de que a Filosofia se alimenta continuamente de sua história, tenhamos ido longe demais na prática da orientação historiográfica. Que, no louvável intuito de assegurarmos a nossos estudantes uma sólida base de conhecimentos historiográficos, de os afastarmos de um achismo inconsequente próprio dos que nunca frequentaram de perto o pensamento dos grandes filósofos nem aprenderam a dura disciplina das lógicas internas aos grandes empreendimentos filosóficos, tenhamos perdido de vista a meta que muitos desses estudantes – e de nós, também – tinham – tínhamos – em nossos horizontes: a elaboração de uma reflexão filosófica, a compreensão filosófica de nós mesmos e do mundo.
A luz distante que os atraía e iluminava seus primeiros passos não se terá, por nossa culpa, amortecido? Não estará o método esterilizando a reflexão? Talvez tenha sido até bom o exagero historiográfico num primeiro momento. Porque se terão criado as condições para uma feliz conjugação da indagação filosófica com a consciência da necessidade de uma boa formação historiográfica. Por que não lembrar aqui, entretanto, as vicissitudes e os ardis da dialética? Contra a tese da metodologia historiográfica, talvez tenha chegado a ocasião de enfatizar mais a antítese representada pela investigação criativa, na esperança de que o futuro venha a nos brindar com a síntese satisfatória. De qualquer modo, mudar, parece- me, é preciso.
Quero tecer algumas poucas e breves considerações iniciais sobre essa problemática, propondo perguntas antes que respostas, levantando dificuldades. Tentando dizer um pouco como as coisas me aparecem, aqui e agora, sem nenhuma pretensão de ter a verdade, de dar a última palavra. Tentando pensar em voz alta sobre o assunto com vocês.
Antes, permitam-me prevenir uma má interpretação de minhas palavras. Se elas contêm uma dimensão crítica, se me parece que uma mudança se deve operar em nossas práticas de ensino e pesquisa, se me parece que uma autocrítica a todos nós se impõe, um imperativo de honestidade intelectual exige que se inclua de maneira enfática, em meio ao que deve ser criticado, problematizado e revisto, a minha própria atuação passada como professor e orientador. Os mais velhos sabem que eu fui durante décadas um defensor intransigente da ênfase unilateral no ensino historiográfico, que tenho uma dose bastante grande de responsabilidade pela orientação que prevaleceu no Departamento de Filosofia da USP. Aliás, três quartos ou mais dos professores deste departamento sofreram como meus alunos.
Errare humanum est, sed perseverare in errore diabolicum, diziam os medievais. Não quero ter parte com o diabo. Quero ter, no momento em que caminho a passo acelerado para os meus 70 anos, para o momento em que serei forçado a deixar a universidade, a coragem de rejeitar duramente meus erros passados, denunciar meus procedimentos equivocados, pedir humildemente desculpas pelas consequências infelizes que possam ter deles resultado. E tentar contribuir para que se busquem outros rumos. Para que a História da Filosofia, entre nós, comece a dar lugar finalmente à Filosofia.
É mais que evidente que não estou propondo que se minimize a importância de cursos historiográficos sobre o pensamento antigo, medieval e moderno. As disciplinas de História da Filosofia são o lugar natural desses cursos, seria apenas desejável que se privilegiassem os grande movimentos de pensamento que exerceram a influência que se sabe sobre toda nossa tradição filosófica ocidental. Um mínimo de iniciação se faz sempre necessária ao platonismo, ao aristotelismo, ao ceticismo, ao platonismo e aristotelismo medievais, ao cartesianismo, ao empirismo britânico, ao kantismo, ao hegelianismo. Se não a todas essas posturas filosóficas, pelo menos a uma parte considerável delas. Ainda aqui, no entanto, creio que caberia enfatizar, nesses estudos, aqueles pontos – e eles são muitos – que ainda estão presentes nas discussões filosóficas contemporâneas, chamando a atenção sobre essa presença e exemplificando-a. Reconhecendo também que há questões sobre que se debruçaram os grandes mestres que não apresentam hoje nenhum interesse para a filosofia, que pertencem ao museu das antiguidades curiosas, que somente o especialista em historiografia filosófica das épocas passadas precisa eventualmente conhecer. Não é verdade que o conhecimento necessário que nossos estudantes devem ter dos autores clássicos exija o detalhamento minucioso e oniabrangente de seus sistemas.
E cabe acrescentar que se deve dar maior atenção, nos cursos de História da Filosofia, aos autores contemporâneos, às tendências principais do pensamento filosófico de nossos dias, às suas várias linhas de força, incentivando nossos alunos a se interessarem por elas e a trabalhá-las. Porque é infelizmente possível, entre nós, terminar a Graduação em Filosofia não tendo lido nem trabalho nenhum, ou quase nenhum, dos temas de que se ocupam os filósofos que neste mesmo momento estão em nosso mundo propondo seus filosofemas. Carregando um pouco nas cores, eu diria que temos demasiadamente ignorado, ou quase ignorado, algumas importantes tendências e autores que estão influenciando decisivamente o pensamento contemporâneo e que são objeto de estudo e discussão nas melhores universidades do Ocidente.
Deixando porém de lado os cursos de História da Filosofia, em que sentido proponho que a História da Filosofia, entre nós, comece a dar lugar à Filosofia? Como isso se poderia fazer? Em primeiro lugar, introduzindo cursos e seminários – e orientando trabalhos e pesquisas, não apenas sobre doutrinas filosóficas deste ou daquele autor, sobre questões internas à lógica de seus sistemas, mas preferencialmente, ainda que não exclusivamente, sobre problemas filosóficos, sobre diferentes tratamentos e formulações desses problemas, sobre as polêmicas filosóficas que os envolvem e nos quais é tão fértil a literatura filosófica antiga, moderna e contemporânea. E a preferência deve também recair, parece-me, sobre problemas que sejam problemas para o mundo filosófico contemporâneo, que sejam tratados na literatura filosófica de nossos dias, introduzindo a eles os nossos alunos. Disciplinas como Introdução à Filosofia, Moral, Estética, Lógica, Teoria do Conhecimento, Filosofia da Ciência, Filosofia Geral, parece-me particularmente adequadas para esse tipo de atividade (e alguns dos semestres letivos de História da Filosofia poderiam igualmente ser destinados ao estudo de problemas gerais que foram relevantes para as épocas estudadas e envolveram diferentes autores e doutrinas.
Dever-se-ia dar também atenção especial, porém, àqueles problemas filosóficos que são problemas para nossos estudantes, questões que naturalmente os preocupam. Aliás, inseridos que estão e não poderiam deixar de estar no mundo contemporâneo, muitos dos problemas desses jovens refletem compreensivelmente parte da problemática com que estão lidando os filósofos de hoje. Parece-me, por exemplo, que os problemas de filosofia moral têm aí um lugar especial. Têm acaso sido eles objeto importante de nossos cursos e atividades de ensino e pesquisa? Temo sinceramente que não.
Em segundo lugar, é muito desejável que nossos estudantes sejam fortemente incentivados, desde o início, desde o primeiro ano, a exprimirem livremente nos seminários, nos trabalhos e nas aulas os seus próprios pontos de vista sobre os assuntos tratados. A tomarem posição, a criticarem, a ousarem criticar, se isso lhes parecer ser o caso, mesmo as formulações dos grandes filósofos e suas teses.
Tenho plena consciência de que estou quase pisando aqui num terreno minado, que minhas palavras podem horrorizar os bem- pensantes. E eles rapidamente alinharão, parece-me, argumentos e objeções inúmeras, que esgrimirão solertes contra o que estou dizendo. Uma dessas objeções pressinto que consiste em dizer que minha proposta favorece o achismo, isto é, a proliferação irresponsável de proposta do tipo “eu acho que…”, avançadas sem maior embasamento, sem rigor, mesmo sem comprometimento responsável de seus autores. E se acrescentará, também prevejo, que os estudantes, por não terem ainda suficiente formação historiográfica em filosofia, proporão argumentos toscos, ignorando na maior parte das vezes que versões mais sofisticadas e filosoficamente mais sérias das mesmas posições e argumentos que estão avançando foram formuladas de modo seguramente mais adequado e pertinente por grandes autores. E se dirá que, na falta de um método de progressão lógico-filosófica, dificilmente poderão dizer algo de filosoficamente relevante. E se dirá que, antes de tentar filosofar, é preciso adquirir uma sólida formação historiográfica, conhecer bem os grandes autores (e alguns médio e outros pequenos…), domesticar os impulsos filosofantes, cuidar de adquirir método e rigor, etc. Se tudo isso se faz e logra, poderá no futuro talvez sobrevir, então, quem sabe, o grande Dia D, o dia de começar a pensar filosoficamente com suas próprias forças…
O que pensar dessa orientação? Primeiramente, cabe lembrar um fato simples: o de que a maioria esmagadora dos pensadores filosóficos (os grandes, os médios e os pequenos…) não se prepararam desse modo para filosofar, não adquiriram primeiro uma sólida formação historiográfica haurida na prática austera do método estruturalista (inventado, aliás, quando já avançado em anos o século XX: não esqueçamos que a História da Filosofia, como tal, é coisa do século XIX) – a maioria, aliás, não adquiriu uma formação nem primeiro nem depois, não a adquiriu nunca, eles não tiveram a felicidade de ser nossos alunos… Ter-lhes-á isso causado um grande mal? Filosofia, não esqueçamos, é o que eles fizeram e fazem e nós os estudamos em nossos cursos.
E cabe recordar também os gregos, afinal os pais da Filosofia, praticaram fundamentalmente o método da discussão filosófica, da proposição de teses e antíteses, de perguntas e respostas, de argumentos e objeções. E tudo isso sobre problemas e questões que diziam respeito às preocupações efetivas dos homens de então. E levando em conta e tomando como ponto de partida as opiniões professadas pelos estudantes que acorriam aos cursos de Filosofia. Socráticos, platônicos, aristotélicos, céticos, neo-platônicos, a maioria, enfim, procedeu dessa maneira. E quem desconhece a prática medieval da argumentação contraditória, os estudantes enfrentando- se na defesa ou impugnação de teses sob a supervisão dos mestres, defendendo um e outro lado nas posições e teses consideradas? Para os gregos e medievais, para muitos modernos e para muitos contemporâneos, em muitas universidades, sobretudo nos países de línguas anglo-germânicas, aprender a filosofar é aprender a debater teses, a sustentar pontos de vista, a impugnar pontos de vista contrários aos que se estão defendendo.
Afirmar que os primeiros exercícios filosóficos serão forçosamente toscos, desajeitados, mesmo ingênuos, é proferir um truísmo banal, pois é forçosamente assim em todos os ramos do saber teórico, algo de análogo também ocorre em todos os ramos da sabedoria prática. Haverá outra maneira de aprender a fazer algo, no campo teórico ou prático, senão começando a fazer e fazendo, de preferência sob o acompanhamento e aconselhamento de um mestre, aquilo que se quer aprender a fazer bem? Não é, aliás, o mesmo que ocorre no aprendizado da historiografia filosófica? No que concerne particularmente ao aprendizado filosófico, caberá ao mestre apontar as necessárias imperfeições das primeiras tentativas, sugerir leituras que possam ser utilizadas como ponto de apoio para os passos seguintes, corrigir falhas de argumentação, estimular o debate filosófico entre os próprios estudantes. E, sobretudo, municiar os debates e discussões pelo recurso à utilização pontual de textos e passagens de obras filosóficas apropriadas ao tratamento dos temas em questão. Aliás, a impressionante proliferação de artigos sobre as mais variadas questões filosóficas na bibliografia filosófica contemporânea fornece um material abundante e mesmo inesgotável que poderá sempre servir de base de referência para tais propósitos.
É certo que tudo isso torna mais árdua a tarefa do professor. Ele não poderá mais limitar-se a expor os resultados de sua pesquisa historiográfica, a mostrar sua competência no tratamento erudito de certas questões. Ele deverá acompanhar uma literatura filosófica mais ampla e abrangente que aquela, já em si mesmo vasta, exigida pelo desenvolvimento de sua pesquisa. E ele não mais poderá valer-se de sua autoridade magistral: em História da Filosofia a autoridade parece contar muito, em Filosofia a autoridade não conta nada. Seja qual for a minha erudição historiográfica, minha opinião filosófica conta tanto, na esfera do saber e no domínio das verdades filosóficas, quanto a de qualquer um de meus alunos, minhas performances “magistrais” não garantem a verdade do que eu possa afirmar. E, se queremos de fato levar nossos alunos a filosofar, teremos de abdicar do desejo de brilhar, de exibir perante nossos alunos nossa capacidade retórica de construir aulas bem ordenadas, eruditas, magnificamente estruturadas, mas que são fundamentalmente estéreis, ou quase isso, no que respeita a sua eficácia pedagógica para a formação filosófica de nossos alunos. Professor de filosofia não tem de ser artista, aulas de Filosofia não têm de ser espetáculos de arte oratória. O modelo que muitos seguimos do aggregé de Filosofia francês é dos mais infelizes para o ensino da Filosofia. Nossos estudantes não devem ser tratados como basbaques que devamos deixar extasiados com a mágica de nossas palavras, o fulgor de nossa inteligência e a manifestação exuberante de nosso saber e erudição…
Ensinar a filosofar exige que se filosofe também. Que se tenha a coragem de pensar por conta própria, de propor ideias, de tomar posições, de fazer críticas e de recebê-las. Exige que nos exponhamos publicamente, oralmente e por escrito. É lamentável que alguns historiadores da Filosofia, ilustres e de indiscutível valor em sua área de pesquisa, nos tenham querido fazer acreditar que se pôr a filosofar pressupõe a crença na própria genialidade. Nada conheço de mais castrador do que essa tese, quando arremessada sobre a cabeça de um jovem que se propõe a estudar e praticar a Filosofia. Mas ela é falsa. Ela é tão falsa em Filosofia quanto é obviamente falsa em qualquer outro ramo do saber teórico ou prático dos homens. Para filosofar não se exige mais genialidade que a que se exige para ser astrônomo, antropólogo, engenheiro, cozinheiro ou jogador de basquete. Basta apenas que se tenha alguma inclinação, alguma capacidade e um certo amor pelo que se quer fazer. E é muito útil que se tenham professores que saibam ajudar-nos a percorrer o caminho escolhido.
Ensinar a filosofar exige ainda uma dose infindável de paciência, tolerância e compreensão para com os que estão começando. Exige um enorme respeito por eles. Exige que privilegiemos o ouvi-los, o entendê-los, que saibamos tranquilamente com eles conversar, sem agressividade, sem nos mostrarmos escandalizados com certas impropriedades que, como é muito natural, com alguma frequência serão levados a proferir. Os grandes carvalhos nascem pequenos, são de início plantas tenras que a floresta ajuda a fazer crescer, alimenta e protege. Se as condições de crescimento lhes são dificultadas, talvez não cheguem a se tornar as árvores potentes que tinham tudo para ser.
A atual geração dos professores de Filosofia do Departamento de Filosofia da USP teve negadas todas as condições que propiciam a boa iniciação à prática da Filosofia. Seus mestres, eu sou um deles, lhas negaram todas, os prepararam apenas para que se tornassem bons historiadores da Filosofia. E eles assim se tornaram, o que é muito bom. Mas foram educados – ou deseducados – no temor malsão da criatividade filosófica, o que foi muito mau. Sob esse aspecto, nós, os mestres deles, miseravelmente falhamos. Meu mea culpa vem muito tarde, eu sei. Embora da confissão da culpa se possa talvez dizer o mesmo que o poeta disse da liberdade: quae sera, tamen…
Mas por que não mudar? Nosso departamento é rico em recursos humanos e, sobretudo, é visceralmente democrático. Há muito espaço nele para a discussão filosófica, a polêmica filosófica séria, o debate amplo. Há espaço de sobra nele para a crítica e para a indispensável autocrítica. Basta abrir algumas salas que estão fechadas, as salas da discussão, da polêmica, do debate, da crítica, da autocrítica. Disseram-me que vocês têm as chaves.
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Oswaldo Porchat Pereira