Notas sobre o Poema ‘A Verdade’ do Marquês de Sade – Número 162 – 04/2018 – [42-51]

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Se quisermos nos dar conta das nossas ideias sobre a divindade, seremos obrigados a reconhecer que, pela palavra deus, os homens jamais puderam designar senão a causa mais oculta, mais distante e mais desconhecida dos efeitos que eles não viam: eles não fazem uso dessa palavra a não ser quando o funcionamento das causas naturais e conhecidas deixa de ser visível para eles. A partir do momento que o seu espírito não pode mais seguir a cadeia, eles resolvem a dificuldade e terminam as suas investigações chamando de deus a última das causas, ou seja, aquela que está além de todas as causas que eles conhecem. Assim, eles nada mais fazem do que consignar uma denominação vaga a uma causa ignorada, na qual sua preguiça ou os limites de seus conhecimentos os forçam a se deter.

Barão de Holbach, Sistema da natureza, II, i.

 

Instável, violento e depravado, um criminoso internacional vem, mais uma vez, declarar guerra à dignidade humana e à liberdade. Ele é sustentado por uma vasta rede de fieis prontos para servir seu mestre, determinados por beatice cega, outros por oportunismo egoisticamente megalômano. O cérebro terrorista do qual falo chama-se Deus – ou mais precisamente a ilusão coletiva de ‘deus’ que parece não ter servido senão pelos mais repreensíveis espasmos de violência e destruição. […] ‘Deus’, para dizer as coisas mais simplesmente, é uma doença social transmitida exclusivamente pelos humanos. Como uma sífilis não tratada, a crença em um deus leva à demência e à cegueira. Deus é uma projeção alucinatória da miséria do homem, de seu medo e de seu ódio voltando-se contra ele.

Don LaCoss, 9-11 & The Theology of terror.

Ao final de seu ensaio intitulado “O enigma Sade”, Eliane Robert Moraes é categórica quando afirma que “Sade nos obriga a pensarmos”(2006, p. 143). Seguiremos a pista deixada pela autora nesse trabalho reflexivo que empreenderemos sobre o curto poema filosófico A Verdade do marquês, surgido em 1787[?], estruturado em versos alexandrinos e rima emparelhada. Essa peça foi encontrada entre os documentos de La Mettrie, vindo a ser publicado em 1961, de acordo com o manuscrito inédito de Sade. Contudo, um simples coup d’oeil no texto permite perceber que, tanto pelo estilo como pelo conteúdo, o poema é de autoria do marquês, sendo atribuído à La Mettrie por motivos de prudência. Gilbert Lely menciona que “o simples aspecto do manuscrito, corrigido e rasurado, bastaria para identificá-lo como uma verdadeira obra pessoal” (1989, p. 7). Mostrando o quanto o marquês repudia todo e qualquer “corpo doutrinal seja filosófico, moral, social ou religioso” (LEVER, 1998, p. 7) e contendo as principais características do pensamento de Sade, A Verdade, mais do que uma sátira anti-religiosa, mostra um “conhecimento que alarga, querendo ou não, nossa concepção de humanidade.” (MORAES, 2006, p. 156.)

Abrindo o poema, Sade coloca o termo deus no altar das quimeras, sinônimo de impotência e infecundidade, imposto pelas instituições religiosas àqueles mais propensos a depositar a plena confiança em um ser que, uma vez idolatrado, torna-se uma espécie de delirium tremens do invisível, fazendo os homens verem por toda a parte o sagrado na e da natureza. O marquês inverte os termos: se fosse necessário imaginar algum deus que trouxesse consigo todos os atributos que sempre lhe são conferidos, mas de nula correspondência nas baixezas mundanas, sê-lo-ia para satirizá-lo e não para louvá-lo:

Mas que quimera é esta, estéril e impotente
Que divindade é esta imposta à néscia gente
Por sacerdotes vis, cambada de impostores?
Quererão eles contar-me entre os seus seguidores?
Ah, jamais-juro-o, e não faltarei ao já dito,
Jamais ídolo tão repelente e esquisito
Esse que do delírio é filho e da irrisão
A mim me causará a mais leve impressão.
Eu, glorioso e feliz com o meu epicurismo,
Só pretendo expirar no seio do ateísmo
E que o infame Deus feito para me alarmar
Seja ideado por mim tão só para o blasfemar.

(SADE, 1989, p. 15)

Quelle est cette chimère impuissante et stérile,
Cette divinité que prêche à l’imbécile
Un ramas odieux de prêtres imposteurs?
Veulent-ils me placer parmi leurs sectateurs?
Ah!Jamais, je le jure, et jê tiendrai parole,
Jamais cette bizarre et degoûtante idole,
Cet enfant de delire et de dérision
Ne fera sur mon couer la moindre impression.
Content et glorieux de mon épicurisme,
Je prétends expirer au sein de l’athéisme
Et que l’infâme Dieu dont on veut m’alarmer
Ne soit conçu par moi que pour le blasphèmer.

Imposição linguística, religiosa e moral oriunda de um erro deificado, o termo “deus” é o produto manifesto da cegueira e estupidez humanas. Em seu Sistema da natureza, Holbach já apontara os lamentáveis inconvenientes proporcionados por uma palavra que mais é falada do que propriamente entendida e suscetível de uma definição simples e evidente: “Talvez não existam dois homens em cem mil que tenham se perguntado seriamente aquilo que eles entendem pela palavra deus, ao passo que é muito raro encontrar pessoas para as quais a existência de um deus seja um problema: no entanto, como já foi dito, a convicção supõe a evidência, que é a única que pode proporcionar certeza ao espírito”. (2010, II, x, p. 738, grifo do autor.) Ver também II, ii e vii.

Jean Benoît, Costume pour l’execution du Testament de DAF de Sade (1959).

Neste trecho do poema, Sade não hesita em associar a criação de ídolos a devaneios que fazem com que aquele que crê seja atormentado por seus próprios fantasmas que supostamente causam-lhe impressões que são alheias a um ateu. Eliane Robert Moraes fala, neste sentido, sobre a disposição física do ateu: “Essa disposição física do ateísmo é, sem dúvida, a principal característica do sistema libertino de Sade, dando a dimensão radical de uma crítica que nunca admite ideia sem objeto, nem tampouco representação sem presença” (2006, p. 29).Pelo viés satírico e do deboche, o marquês faz do desamparo humano o ponto de partida do ateísmo, colocando o homem no nível de qualquer outra criatura da natureza, que depois virará verme e depois mosca. Nesse sentido, desfalecer feliz no seio do ateísmo é ter o entendimento claro de que olhando a espécie humana, não há nada que convença de que ela seja imortal. Assim, alcançando o ápice do prazer no momento da morte, onde a imortalidade agora é prolongada por meio da volúpia, Sade não hesitará em dizer que aí se dá o próprio triunfo da Filosofia. E idealizar, por sua vez, aqui equipara-se a blasfemar, a saber, levar até as últimas consequências todas as contradições de uma noção de divindade coberta de belos adjetivos, mas que em termos reais é indiferente à miséria dos homens. E qual o papel da filosofia aqui? Não ficar se esforçando para provar a existência de um deus contraditório, mas para justamente fazer vir à tona o que vai de encontro às suas imagens fornecidas e disseminadas pelas religiões:

Deífico tratante, em vão eu o analiso
Com filósofo olhar, em vão o estudo e viso:
Não vejo no motor de tais religiões
Mais do que um impuro nó de mil contradições,
Que cede e se desfaz mal a gente o encara
Gerado pelo temor e da esperança nascido
Que o meu espírito jamais teria concebido […]

(SADE, 1989, p. 17)

J’ai beau l’analyser, ce gredin deifique,
J’ai beau étudier, mon oeil philosophique
Ne voit dans ce motif de vos religions
Qu’un assemblage impur de contradictions
Qui cede à l’examen sitôt qu’on l’envisage,
Qu’on insulte à plaisir, qu’on brave, qu’on outrage,
Produit par la frayeur, enfanté par l’espoir,
Que jamais notre esprit ne saurait concevoir […]

Mesmo entendendo que não se tem muita dificuldade em ver o amalgama de contradições nos quais as doutrinas enredam-se para tentar dar um contorno mais preciso à ideia de um deus, a passagem supracitada pode ser interpretada em vários níveis argumentativos:

1) Sade toca num ponto delicado que é a ideia de um deus. Por mais quimérica que seja tal concepção de acordo com a razão, é inegável a eficácia psicológica e social de um termo que nada na experiência pode ser dito como seu correspondente direto. O marquês alude às guerras ou massacres religiosos para dar suporte ao argumento de que como uma ideia pode ser o móbil mais contundente de ações que tem como objetivo último agradarem aos deuses.

Holbach já 17 anos antes da aparição do poema do marquês – se levarmos em conta a data estipulada do surgimento do manuscrito segundo os estudiosos de Sade – já mostrara como um simples nome torna-se o resultado oriundo de toda sorte de paixões inflamadas no homem, da educação e da tradição:

 

Nós reconhecemos a incompatibilidade entre os atributos que a teologia lhe consigna; provamos que esse ser, do qual só o nome já tem o poder de inspirar o pavor, não passa do produto informe da ignorância, da imaginação alarmada, do entusiasmo e da melancolia. Nós fizemos ver que as noções que formamos sobre ele não devem a sua origem senão aos preconceitos da infância, transmitidos pela educação, fortalecido pelo hábito, alimentados pelo temor, mantidos e perpetuados pela autoridade. Enfim, tudo deve nos ter convencido de que a ideia de deus, tão geralmente espalhada pela Terra, não passa de um erro universal do gênero humano. (2010, II, viii, p. 674, grifos meus.)

2) A segunda questão seria o papel das paixões como as engendradoras de determinados sentimentos e ideias que por sua vez e, quase inevitavelmente, tornam-se o leitmotiv de ações individuais ou coletivas movidas por uma esperança ou temor em entidades invisíveis a partir do momento em que uma determinada noção de deus é inculcada. Nesse sentido, essa teoria das paixões sadiana parte do principio que determinadas ideias são concebidas à proporção de que ou quando se teme ou se espera algo, porém, sem garantia alguma de que esse algo aconteça;

Aqui é possível constatar a influência das teses de Spinoza a respeito da oscilação das paixões característica dos supersticiosos:

 

Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias, decidir pelo seguro ou se a fortuna se lhes mostrasse sempre favorável, jamais seriam vítimas da superstição. Mas, como se encontram frequentemente perante tais dificuldades que não sabem que decisão hão de tomar, e como os incertos benefícios da fortuna que desenfreadamente cobiçam os fazem oscilar, a maioria das vezes, entre a esperança e o medo, estão sempre prontos a acreditar no que for. (2003, p. 5)

3) Nas entrelinhas Sade delineia a tarefa da Filosofia, a saber, lançar mão de expedientes para, no mínimo, colocar na berlinda a autenticidade de certos termos que via tradição e via opinião, tornam-se lugares comuns cristalizados, universais e supostamente insuscetíveis de alguma reflexão. Na primeira nota ao poema, Sade descreve em termos mais radicais: “E não deverá a filosofia deitar mão a todas as armas para exterminar um Deus em prol do qual se imolam tantos seres que valem mais do que ele, pois não há seguramente nenhuma ideia mais estúpida, mais perigosa, mais extravagante, nada mais detestável do que um Deus?” (SADE, 1989, nota 1, p. 24, itálico meu). Na segunda nota, Sade reforça essa ideia concluindo que “O temor fez os deuses e a esperança manteve-os.” (1989, p. 24)

Sade desvincula o conhecimento das leis da natureza da necessidade de um fundamento sobrenatural dos mecanismos naturais. O discurso a respeito de uma natureza autosuficiente que dispensa um artífice criador moveu alguns autores do século XVIII francês a abalarem o já frágil vínculo entre natureza e divindade, como o barão de Holbach em seu Sistema da Natureza, por exemplo. No seu poema, Sade chega a um ponto que toda uma filosofia da natureza do século XVIII levou às últimas consequências, uma vez influenciada pelo deus sive natura spinozista, mas devidamente laicizado, evitando agora a equivalência entre uma coisa e outra. Aqui está em jogo qual a causa do sistema da natureza:

Com que direito aquele que a mentira adstringe
Pretende submeter-me ao erro que o atinge?
Careço eu do Deus que a sábia mente abjura
Para a mim mesmo explicar as leis da mãe natura?
Age sem precisar da ajuda de um motor
Este duplo embaraço algo me dá a ganhar?
A causa do universo esse Deus vem mostrar?
Se cria, também é criado, e assim fico,
Em recorrer a ele, como antes, interdito. (Ibid., p. 17)

Mais de quel droit celui que le mensonge astreint
Prétend-il me sousmettre à l’erreur qui l’atteint?
Ai-je besoin de Dieu que ma sagesse abjure
Pour me rendre raison des lois de la nature?
En elle tout se meut, et son sein créateur
Agit à tout instant sans l’aide d’un moteur.
A ce double embarras gagné-je quelque chose?
Ce Dieu de l’univers démontre-t-il la cause?
S’il crée, Il est crée, et me voilà toujours
Incertain, comme avant, d’adopter son recours.

Na Histoire de Juliette ou les prospérités du vice, à Juliette é recomendado o estudo da filosofia da natureza justamente para não mais se deixar enganar sobre uma ideia de deus vã e contraditória:

 

Je crains que les idées bizarres de ce Dieu fantastique dont on empoisonna ton enfance ne reviennent troubler ton imagination au milieu de ses divins écarts: ô Juliette, oublie-la, méprise-la, l’idée de ce Dieu vain et ridicule; son existence est une ombre que dissipe à l’instant le plus faible effort de l’esprit, et tu ne serás jamais tranquile tant que cette odieuse chimère n’aura pas perdu sur ton âme toutes les facultes que lui Donna l’erreur. Nourris-toi sans cesse des grands príncipes de Spinoza, de Vanini, de l’auteur de Système de la Nature; nous les étudierons, nous les analyserons ensemble; je t’ai promis de profondes discussions sur ce sujet, je te tiendrai parole: nous nous remplirons tous deux de l’esprit de ces sages príncipes. (1968, VII, p. 30)

Para Sade, o mais superficial estudo da natureza é convincente no que concerne à eternidade do movimento em seu âmago e um exame mais minucioso de suas leis mostra que nada nela morre, mas que tudo perpetuamente se transforma. Nesse sentido, as destruições lhe são necessárias e a própria morte torna-se uma palavra destituída de sentido. Somente havendo transmutações e não propriamente extinção, o movimento ininterrupto da natureza desautoriza toda ideia de um motor sobrenatural que lhe confira o seu dinamismo. Assim, Sade parece defender sob sua pena um certo bom senso cientifico, pois mesmo que não possamos a olho nu vermos nos mínimos detalhes as transformações mais sutis acontecidas na natureza, isso em nada autoriza a querer fundamentá-la ou atribuir-lhe uma causa extranatural que justamente entrava um estudo mais acurado de suas leis. Em outros termos, se a natureza basta a si mesma, não se faz necessário lançar mão de um recurso estranho à mesma para decifrar os seus códigos. Tudo o que seja estranho aos auspícios da “mãe natureza” é impostura: “Sai do meu seio, sai, infernal impostura,/ Desaparecendo cede às leis da mãe natura:/Ela só tudo fez, tu és o nada hiante/ Do qual, aos nos criar, sua mão nos pôs distante” (SADE, 1989, p. 17).

Sade conclama ao leitor a entregar-se às paixões ou ao que elas inspiram, sem exceção. Mas o próprio marquês não empreendeu uma crítica das paixões quando estas são as originadoras de sentimentos e ideias tão perniciosas aos homens? Aqui se dá uma viragem conceitual, pois agora paixões como esperança ou medo ficam escravas da consciência, a fonte mais cabal de todos os preconceitos. A consciência é aquela instância que, pelo remorso, transforma os mais belos gozos proporcionados pelas paixões nas coisas mais sórdidas e inconcebíveis. Ele afirma: “A consciência não é o órgão da natureza; apenas é, não nos ludibriemos, o órgão dos preconceitos; vençamo-los e a consciência ficará às nossas ordens” (Ibid., nota 4, p. 24). Sade dá o exemplo do selvagem, que não há nada que a consciência lhe censure. Quando ele mata ou devora o seu semelhante, é como se ele fosse o porta-voz da natureza, pois a consciência está emudecida. Ele não tem conhecimento do caráter convencional do que seja o crime, já que matar um semelhante aos olhos da sociedade é um dos crimes mais atrozes: “Nele tudo se cala, tudo está em sossego, ele serviu a natureza mediante a ação que mais agrada a essa natureza sanguinária cujo crime mantém a energia e que só de crimes se alimenta” (Ibid.) Logicamente, aqui se dá toda sorte de problemas, pois Sade está dando um exemplo específico de um indivíduo que não está em um determinado círculo social, regido por leis refratárias em relação a ações que perturbem a ordem social. Mais do que isso, poder-se-ia aqui defender essas teses do marquês como uma apologia vulgar do crime. Porém, nem de longe, Sade quis sustentar isso na sua concepção do que seja a natureza e, em particular, a natureza humana. Completamente em oposição aos que sustentam que Sade seja um prosélito do crime, ele diz na sua “Nota sobre os romances ou a arte de escrever ao gosto do público”, texto que faz parte da obra Os crimes do amor: “Nunca, repito, nunca pintarei o crime senão com as cores do inferno; quero que o vejam a nu, que o temam, que o detestem, e não conheço outro modo de fazê-lo senão mostrando-o com todo horror que o caracteriza.” (2000, p. 46.)

Se remetermos ao final de Justine ou os infortúnios da virtude, quando Justine é presenteada com um raio na cabeça depois de tentar ser a virtude encarnada num mundo que necessariamente não se ganha a recompensa necessária por agir virtuosamente, é possível perceber que Sade joga com as noções de virtude e vício, fazendo cair por terra a ideia de uma providência recompensadora de quem age bem e que pune quem age mal, ou contra os desígnios da natureza.

 

O relâmpago brilha, a grade cai, os ventos sopram impetuosos, golpes assustadores de tempestade de fazem ouvir. A senhora de Lorsange assustada…a senhora de Lorsange que teme horrivelmente a tempestade, suplica para a irmã fechar tudo o mais rapidamente possível; o senhor de Corville entrava neste momento; Justine, ansiosa para tranquilizar a irmã, corre para uma janela, ela procura lutar um minuto contra o vento que a rechaça e naquele instante um raio a derruba no meio do salão e a deixa sem vida sobre o assoalho. A senhora de Lorsange solta um grito lancinante..e desmaia. O senhor de Corville grita por socorro, os cuidados se dividem, trazem a senhora de Lorsange a si, mas a infeliz Justine fora atingida de tal maneira que não havia esperança para ela. O raio havia penetrado pelo seio direito, queimando o peito, e saído por sua boca, desfigurando o seu rosto de tal forma que causava horror contemplá-la. (SADE, 2008, p. 184-185.)

Nos antípodas de uma sociabilidade natural que levaria ao homem a agir sempre visando o bem, Sade é mais cuidadoso e nem fala que o homem seja mau por natureza, mas que a própria natureza não é boa nem má, simplesmente age, necessária e cegamente, alheia a qualquer veste moral que sempre tentaram lhe conceder.

Defendida por Aristóteles e Rousseau, por exemplo. Quanto a este último, Luis Contador Borges, na “Introdução” ao escrito Infortúnios da virtude, afirma que Sade mostra que “o ‘bom selvagem’ de Rousseau torna-se uma impostura” (2008, p. 12), devido a crítica de Sade aos romances de estilo “sentimental” cujo apogeu seria a Nova Heloísa do filósofo genebrino, surgida em 1762. Contudo, vale a pena conferir o honroso elogio que o marquês dedica a Rousseau, mesmo desprezando o seu idealismo sentimental. Na “Nota sobre os romances…”, Sade afirma:

 

Rousseau, a quem a natureza concedeu em delicadeza e sentimento o que dera em espírito a Voltaire, tratou o romance de modo bem diferente. Quanto vigor e energia na Heloísa! Quando Momus ditava o Cândido de Voltaire, o amor traçava com sua luz todas as páginas ardentes de Julie, e com razão pode-se dizer que esse livro sublime nunca terá imitadores. Possa essa verdade fazer com que a pena caia das mãos daquela multidão de escritores efêmeros que, há trinta anos, não param de nos dar cópias ruins desse original imortal; que eles sintam, pois, que é preciso ter uma alma de fogo como a de Rousseau e um espírito filosófico como o seu para atingi-lo, duas coisas que a natureza não promove duas vezes no mesmo século. (2000, p. 33).

O que seria o ponto de ruptura entre Sade e Holbach. E deste com La Mettrie e Diderot, à medida que entende que não crer em um deus não significa não saber discernir o que é vício e o que é virtude, indo mais além do que diferença entre estilos de escrita, como defende Gilbert Lely no préfácio de A Verdade. Holbach afirma:

Dizer que sem a ideia de deus o homem não pode ter sentimentos morais, ou seja, não pode disntiguir o vício da virtude, é pretender que sem a ideia de deus o homem não sinta a necessidade de comer para viver, não faça nenhuma distinção ou escolha entre os alimentos. É pretender que sem conhecer o nome, o caráter e a qualidade daqueles que nos prepara um prato, nós não estamos em condições de julgar se esse prato é nos agradável ou desagradável, se é bom ou ruim. Aquele que não sabe a que se ater quanto à existência e aos atributos morais de um deus, ou que o nega formalmente, não pode ao menos duvidar da sua própria existência, das suas qualidades próprias, da sua própria maneira de sentir e de julgar. Ele não pode igualmente duvidar da existência de outros seres organizados como ele, nos quais tudo lhe mostra algumas qualidades análogas às suas, e dos quais – por meio de certas ações – ele pode atrair para si o amor ou o ódio, os auxílios ou os maus tratos, a estima ou o desprezo: esse conhecimento lhe basta para distinguir o bem e o mal moral. (2010, II, ix, p. 717.)

No final da “Nota sobre os romances…”, Sade parece estar pari passu com a capacidade do homem ter discernimento entre vício e virtude, defendida por Holbach, quando afirma que mostrando com crueza o vício, está mais perto da moralidade do que aqueles que o adornam:

 

Devo, enfim, responder à censura que me fizeram, quando surgiu Aline e Valcour. Meus pinceis, disseram, são fortes demais: empresto ao vício traços demasiados odiosos. Querem saber a razão? Não quero que se ame o vício; não tenho, como Crébillon e Dorat, o perigoso projeto de fazer com que as mulheres gostem dos personagens que as enganam; quero ao contrário, que os detestem. É o único meio que pode impedi-las de se tornarem vítimas e, para ter êxito nisso, mostrei aqueles meus heróis que seguem a carreira do vício de um modo tão assustador, que certamente não inspirarão nem pena, nem amor. Com isso, ouso ser mais moral do que aqueles que se permitiram embelezá-los; as obras perniciosas desses autores se assemelham àquelas frutas da América que, sob o colorido mais brilhante, trazem a morte em seu seio; essa traição da natureza, cujo motivo não cabe a nós desvelar, não é feita para o homem. (Op. cit., p. 46)

Juliette seria o exemplo disso: a despeito de suas ações mais pérfidas, sempre era agraciada pela mãe natureza. Nesse sentido, crime e culpa agora ganham outra conotação para o marquês: ser culpado é quando não se obedece às impressões da natureza e crime é resistir aos impulsos naturais: “E como poderíamos nós sermos culpados quando mais não fazemos do que obedecer às impressões da natureza? Os homens e as leis que são obras podem considerar-nos como tal, mas jamais a natureza. Só se lhe resistíssemos é que poderíamos a seus olhos sermos culpados. É esse o único crime possível, o único de que devemos nos abster-nos”(SADE, 1989, nota 5, p. 25, itálicos meus)

***

Quando Holbach afirma que a poesia falou à imaginação de seus ouvintes “pelas suas imagens, pelas suas ficções, pelas suas cadências, sua harmonia e seu ritmo”, impressionando “o espírito dos povos e gravou na sua memória as ideias que quiseram lhe dar” e “pela sua voz, a natureza inteira foi animada, ela foi personificada, assim como todas as suas partes” (2010, II, ii, p. 460-461) talvez não tenha atentado para o caráter subversivo desse estilo literário, que tem o potencial absurdo de tanto cristalizar como, por outro lado, desmitificar determinadas palavras, noções, ideias ou conceitos. E Sade, sem meios-termos, subverte, senão mina, a ideia de deus em seu poema A Verdade. Em breves linhas, o marquês alia ateísmo e poesia, à luz de uma concepção de natureza admirável para ele não por ser boa ou má, mas por seu caráter necessário, alheia às afetações morais. Afetações tão repugnantes a um autor que, seja em qual estilo fosse, as afastava a cada descrição crua do que é ser natural, isto é, tudo que está nos antípodas do sagrado. Roubando o fogo dos deuses, Sade o lança de volta contra eles mesmos, reduzindo-os a meras palavras…

O que ao homem faz mal ou o que o leva à cova
Tudo por certo é meio de lhe agradar.
Por terra os deuses pôr, o seu raio roubar
E destruir com ele, o dardo faiscante,
Tudo o que nos despraz num mundo horripilante. (1989, p. 21.)

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Marcelo de Sant’Anna Alves Primo

DUCORNET, Guy. Surréalisme & Athéisme: “à la niche les glapisseurs de dieu!”. Paris: Ginkgo éditeur, 2007.
ESPINOSA, Baruch de. Tratado teológico-político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
HOLBACH, Barão de. Sistema da natureza ou das leis do mundo físico e do mundo moral. Trad. de Regina Schöpke e Mauro Baladi. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
JABASE, Ana Leila. “Spinoza y Sade: variaciones sobre el vicio y la virtud”, in: Spinoza en la literatura. Córdoba: Encuentro Grupo Editor, 2016, p. 9-67.
LEVER, Maurice. “Que suis-je à present…?”: Sade et la révolution. Paris: Bartillat, 1998.
MORAES, Eliane Robert. Lições de Sade: ensaios sobre a imaginação libertina. São Paulo: Iluminuras, 2006.
PAICE, Edward. A ira de deus: a incrível história do terremoto que devastou Lisboa em 1755. Trad. de Márcio Ferrari. São Paulo/Rio de Janeiro: Record, 2010.
SADE, Donatien Alphonse François de. Oeuvres complètes. Paris: Cercle de Livre Précieux, 1966.
______.A verdade e outros textos. Tradução de Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes. Lisboa: Edições Antígona, 1989.
_____. Os infortúnios da virtude. Trad. de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Iluminuras, 2009 (Coleção “Pérolas furiosas”)
______. “Nota sobre romances ou a arte de escrever ao gosto do público”, in: Os crimes do amor. Trad. de Magnólia Costa Santos. Porto Alegre: L&PM, 2000.
VIDEIRA, Mário. “A política na alcova: ecos espinosanos em Sade”, in: Trans/form/ação. Marília: UNESP, 2016, v. 39, p. 9-22.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.