Nanook – Número 131 – 03/2015 – [19-24]

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O médico e a mãe correm para fora do consultório e no hall de entrada encontram a destruição e o caos.

Mesas e cadeiras arremessadas se partem nas paredes. Os vidros das janelas se estilhaçam em muitos pequenos pedaços. O velho aparelho de televisão explode enquanto cacos de vidro e pedaços de plástico voam por todo lado. Pacientes, parentes e funcionários procuram se esconder em qualquer buraco.

Bernardo urra sem parar, como um animal feroz, e destrói tudo a seu alcance. Ele mostra a força de um elefante enlouquecido. Poucos minutos atrás, ninguém podia imaginar que ele tinha essa força e faria esse estrago todo.

Úrsula, a enfermeira que levava Bernardo, encolhe-se tremendo e chorando no chão, o uniforme branco manchado de sangue.

Dona Bruma, a mãe do rapaz ensandecido, desmaia como quem se desfaz ou se liquefaz, obrigando o médico a segurá-la para que ela não caia bruscamente no chão.

O enfermeiro mais forte, que nem é tão forte assim, desce correndo a escada, mas se assusta com a ferocidade do garoto.

Bernardo urra ainda mais alto e mais longo e se volta para Siqueira. Que segura dona Bruma sem saber se a solta e corre, se a levanta na frente como um escudo vivo ou se enfrenta aquele menino alto que parece um monstro de poder e rancor.

De repente dona Bruma levanta, se apruma e toma a frente ela mesma, para gritar uma ordem muito clara:

—      Pare!

Seu filho estaca mas os olhos ficam ainda mais injetados, enquanto flexiona as pernas e os braços como que se preparando para o ataque final.

A mãe completa, com voz mais clara e mais alta ainda:

—      Agora!

No mesmo instante Bernardo dobra a coluna, apaga os olhos, desliga o urro, abaixa a cabeça e abre os braços, crucificando-se a si próprio no ar.

O enfermeiro, já com a camisa-de-força na mão, olha para o doutor Siqueira, que responde com um aceno positivo. Em dois passos ele chega em Bernardo, puxa seus braços e pela frente lhe põe a camisa e a fecha, dando rapidamente todos os nós e laços. O garoto não opõe nenhuma resistência.

Embora machucada, a enfermeira Úrsula se levanta para tomar o paciente dominado pelos cotovelos amarrados. Imagina que deve levá-lo ao quarto preparado para receber casos como o dele, no segundo andar.

As paredes desse quarto foram cobertas com colchões, para impedir que pacientes descontrolados se machuquem. Na verdade, o jovem Bernardo inauguraria o quarto da fúria, como o chamam, se o doutor assim o decidir. A clínica ainda não tinha recebido alguém como ele.

—      Por favor.

Novo susto.

Siqueira começa a tremer, enquanto a mãe de Bernardo a seu lado volta a desmaiar, ou a se desmontar, obrigando-o a segurá-la novamente para que ela não caia no chão.

Porque Bernardo fala: por favor, não precisa nada disto.

Como não precisa, você quase destruiu toda a clínica, pensa o médico mas não consegue falar, ainda sem voz e atrapalhado com dona Bruma largada nos seus braços.

Educada e surpreendentemente, Bernardo procura explicar o que aconteceu:

—      Por favor, eu só queria avisar: Nanook está vindo para cá.

Que explicação maluca é esta?, quer perguntar Siqueira, vagamente percebendo a ironia da pergunta. Neste contexto e neste lugar, qualquer explicação é mais ou menos maluca.

O doutor Homem abre a boca e a fecha umas tantas vezes, sem conseguir formular a, b ou c. Os dois enfermeiros esperam ansiosos sua reação ou sua ordem. A mãe do rapaz desperta novamente do segundo desmaio e se arruma, mas não mostra a mesma segurança de quando gritou “pare” e “agora”.

O médico enfim consegue destravar a língua e pergunta à dona Bruma: ele está dizendo que a cidade de Nanuque vem para cá?

—      Nanook, Nanook, Nanook!

Repete o rapaz três vezes, nas três vezes destacando bem a vogal dobrada.

Ah, agora entendi, diz o médico, ironicamente. Não, não entendi nada!, reclama o médico, preocupado que ninguém entenda a ironia.

Ele olha para a mãe de Bernardo, que dá de ombros como se dissesse, não sei, ou então, sei lá, nada do que esse menino diz faz sentido.

Siqueira levanta o braço para os enfermeiros e aponta para cima, querendo mandar que eles levem logo o garoto, agora definitivamente seu paciente, para o quarto da fúria.

Sem que se espere, o garoto agradece:

—      Obrigado, aquele quarto é muito confortável.

E completa pedindo que o médico o visite em breve, para que eles possam conversar.

Como ele sabe para onde o levam?, se intriga Siqueira.

E como é que alguém amarrado numa camisa-de-força ainda me convida para visitá-lo, como se estivesse em sua própria casa?, se constrange o doutor.

O dono da clínica costuma se gabar da sua capacidade de prever os passos, os gestos e as palavras dos pacientes de maneira que eles nunca o surpreendam, mas Bernardo lhe aplica uma rasteira atrás da outra.

E ele ainda quer conversar calmamente, pensa estupefato, quiçá estarrecido!, depois de destruir tudo por aqui e quase matar um ou dois, incluindo a sua própria mãe.

O médico retorna com a senhora para o consultório, onde as coisas ainda se encontram inteiras. Aqui talvez ele consiga raciocinar melhor.

Respiram.

Pede um copo de água com açúcar para ela, um café forte para ele, que não gosta de café mineiro. Ninguém traz nem uma coisa nem outra, todos estão ocupados ou assustados.

Bruma se antecipa e pede, também por favor, para deixar o filho internado. Ela se vira para pagar, o falecido deixou algum pecúlio.

Pecúlio? Parece que escuto a minha avó, pensa Siqueira.

No momento não precisamos falar disso, ele a acalma. Trata-se de uma crise, talvez precipitada por trazê-lo à clínica, mas não deixa de ser o melhor lugar para que aconteça algo assim.

Enquanto tenta acalmá-la, ele percebe que ela não parece nem nervosa nem muito surpresa com o ataque enfurecido do seu filho. Ele já teve outro ataque desses, digo, alguma vez sofreu uma crise como essa?, pergunta, intrigado.

Como esse, não, responde a mulher. Mas acrescenta que muitas vezes, desde bem pequeno, ele parece que se transforma em um animal: anda ou corre de quatro, ronrona, rosna ou urra como hoje. Mas não tão alto nem de modo tão assustador, acrescenta.

Alguma vez ele falou em Nanook ao invés de Nanuque?, pergunta o médico, preocupado em dobrar direito a vogal da primeira palavra.

Ela responde que, entre frases sem sentido como “qanniq aputi quiquiquetaaaluque”, a única de que ela se lembra porque ficou gravada na cabeça da família toda, muitas e muitas vezes ele disse a palavra “nanuk”.

Repare, ela diz, não o nome da nossa cidade natal, com “q-u-e”, mas sim “nanuk”, com “u” e “k”. Bernardo desde sempre fez questão do “k”, sabe-se lá por quê.

Nos últimos meses, porém, ele vem alterando a palavra para “nanook”, com “oo” e com “k”, claro, fazendo questão de corrigir se alguém repete errado.

Como é que alguém, não escreve, mas sim fala com “k” e não com “q-u-e”?, se pergunta o médico, sem entender.

Bem, essas letras e essas palavras devem ter algum sentido para ele, pensa Siqueira, resta descobri-lo. Decerto precisarei conversar com o rapaz, embora tenha de tomar algumas precauções para que ele não fique novamente transtornado e me ataque ou ataque um dos meus funcionários.

A mãe de Bernardo se retorce na cadeira, ameaçando levantar-se e ir embora.

Ela quer ir para casa, conclui Siqueira. Ela quer deixar esse filho para trás, pelo menos por alguns dias. Quem sabe, pelo resto da vida. Triste, mas compreensível.

Como acha que dali, especialmente neste momento, não sai mais nenhuma informação relevante, o próprio médico sugere que a senhora vá para casa descansar.

Enquanto se despedem com alívio mútuo, vem à sua mente a imagem do sangue nas roupas de Úrsula, precisa perguntar à enfermeira como ela está.

Mas não agora. Ao fechar a porta e ficar sozinho, o médico sente as pernas tremerem e fica com receio de ser sua a vez de desmaiar. Corre à gaveta secreta da sua mesa para pegar a garrafa de cachaça, uma legítima Anísio Santiago – e também um santo remédio.

Senta-se e se serve de uma dose.

Bem, duas doses.

Com o controle remoto, liga a pequena televisão da parede. O noticiário fala de problemas meteorológicos, primeiro, e depois de um desaparecimento mundial, não percebe bem do quê ou de quem.

Na verdade o médico não presta muita atenção, preocupado com a clínica, com Úrsula e com Bernardo, mais ou menos nessa ordem.

Desliga a televisão e pensa em tomar mais uma dose, mas se lembra de ter marcado uma boa conversa etílica com seu amigo, no bar Benzadeus, aqui perto. Toma a terceira dose do mesmo jeito, fecha bem o casaco e sai do consultório e da clínica. Não sente tanto frio quanto esperava, decerto por causa do “agasalho” que acabou de pôr para dentro do corpo.

Sobe na direção do Largo do Coimbra, pega a rua da Conceição e desce até o Largo Marília de Dirceu, onde se encontra o bar de nome tão sugestivo. Apesar de o garçom insistir em chamá-lo de pub, trata-se de um ótimo bar – com ótimas cachaças, naturalmente.

No meio do caminho, um cão branco atravessa silenciosamente a sua frente, sem atrair o olhar do psiquiatra. Nem quando criança ele se interessava muito por animais em geral.

***
Gustavo Bernardo

* Trecho do romance inédito de Gustavo Bernardo, com previsão de publicação para o 2º semestre de 2015, pela editora Rocco.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.