Cárcere: abordagens sobre uma instituição fundamental para o capitalismo – Número 180 – 09/2021 – [84-95]

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O presente artigo visa demonstrar a conexão entre o capitalismo, o neoliberalismo e o encarceramento a fim de pensar a complexidade do sistema prisional a partir da argumentação de autores fundamentais para compreendê-la, sendo eles Michel Foucault, Angela Davis, Vera Malaguti e Loic Wacquant. O recorte histórico que se apresenta é do século XVIII até os dias de hoje.

 A trajetória do artigo se dá ao apresentar e tencionar os diferentes discursos que fundamentam a prisão, bem como a espetacularização dos crimes. Apresentam-se, assim, ferramentas teórico-conceituais que permitam pensar novas práticas que se oponham ao encarceramento em massa.

Portanto, faz-se necessário desvelar a relação intrínseca entre o capital, sua lógica excludente e sua intensa produção de corpos criminalizáveis. Desta forma, torna-se possível almejar uma sociedade que não seja pautada na privação de liberdade dos sujeitos.

A docilização dos corpos e a insuportabilidade do cárcere

Na passagem dos séculos XVIII e XIX, especialmente na Europa e nos Estados Unidos, desenvolve-se uma reformulação nas formas de punição, a saber, nas práticas do poder punitivo (FOUCAULT, 1987, pp.12). Pode-se considerar que a prisão tornou-se uma instituição basilar desta reforma na economia do castigo e está diretamente conectada à consolidação do capitalismo e às ideias iluministas, e, com isso, à constituição de uma nova sociedade, que inclui modos de vida e de produção adequados para o sistema capitalista.

Com o advento do iluminismo instaura-se uma ideia de maleabilidade da natureza humana. As novas formas de poder do século das luzes vão se valer de esquemas de domesticação social de séculos anteriores, aprofundando-os, construindo novas técnicas de controle sobre os corpos e desenvolvendo, assim, uma nova maquinaria do poder. Michel Foucault descreve essa nova sociedade como sociedade disciplinar

“A escala, em primeiro lugar, do controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao mesmo nível da mecânica – movimentos, gestos, atitudes, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo.” (FOUCAULT, 1987, pp.163) 

 A sociedade disciplinar seria, portanto, marcada pela implementação de formas de sujeição social de disciplinarização dos corpos – docilização – com o objetivo de maximização da operação do capital e extração de lucro. Todas as instituições devem ser construídas para vigiar e punir, produzir o disciplinamento dos corpos e transformar o homem em homem-máquina, útil para o sistema capitalista de produção.  

A noção de utilidade torna-se, assim, central para entendermos esta relação. A ideia não é só formar sujeitos domesticados, com formas coercitivas vistas em outros momentos históricos; a domesticação agora visa alcançar todos os domínios do corpo, fracionando-os no espaço e no tempo, desenvolvendo homens ordenados e úteis.  O tempo é cronometrado, controlado em minutos e segundos, em que a finalidade é o exercício do corpo e a potencialização de suas habilidades. Em outro trecho, Foucault diz “O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma anatomia política, que é também igualmente uma mecânica do poder está nascendo.” (IBID. pp. 164). O intuito é, portanto, de fazer com que os indivíduos internalizem as disposições necessárias para o sistema capitalista de produção e seus modos de vida.

Esse período é marcado pela necessidade de reformas sociais que devem repensar todas as instituições e práticas sociais, reformas que se adequem a esse novo sistema de produção e possam dar conta das desigualdades produzidas nesse processo. Jeremy Bentham (1748-1832) assume proeminência no âmbito das reformas através de sua doutrina utilitária. No movimento do utilitarismo, o Estado deve garantir o máximo de fruição das liberdades individuais e atuar somente na contenção das disputas entre indivíduos, através da justiça. A prisão, dessa forma, recebe um caráter utilitário, “Buscava-se uma utilidade também com a pena, e essa utilidade estaria dada no disciplinamento dos grandes contingentes humanos explorados nas fábricas e privados de qualquer benefício pessoal.” (ANITUA, 2009, pp.203)

O aparecimento e a consolidação das prisões podem ser visto como soluções dessas necessidades disciplinares. Através das ilusões reformadoras – reeducação, ressocialização e reintegração –, que carregam consigo um viés religioso, ascético, característica fundamental desse primeiro momento do capitalismo, especialmente na Inglaterra e nos EUA (WEBER, 2007), a prisão recebe seu aval ideológico, fundamento este necessário para sua manutenção. A prisão funciona, assim, como avalista de todas as outras instituições – escola, exército etc. -, e atua exatamente quando essas parecem falhar.

Em pouco tempo, a prisão parece ser o modelo de punição das sociedades civilizadas, e a privação da liberdade – que é um elemento fundamental na vida moderna e burguesa – se dá como um castigo igualitário. Aparece como a solução para os delinquentes, e essa moral de salvação, correcional de sujeitos perigosos, é outro elemento fulcral para a manutenção do discurso e do corpus prisional.

Assim, encarcerar os indivíduos é um duplo movimento: privação da liberdade e transformação técnica dos indivíduos, “os cárceres deveriam ser, portanto, máquinas republicanas, radicalmente distintas dos castigos do Antigo Regime”. (ANITUA, 2009, pp.204). A privação da liberdade não é o bastante e não acontece sozinha, o aparelho disciplinar deve ser exaustivo, ou, como Foucault apresenta, a prisão é onidisciplinar. Sem dúvida, o cárcere é a forma mais potente de docilização dos corpos. Essas instituições têm por objetivo desaparecer com o erro, com as deformidades, dessa forma a prisão maximiza a dinâmica expiatória que já foi importante no espaço público.

Foucault desenvolve uma arqueologia do sistema penal, em sua forma prisão, e a partir disso apresenta a insuportabilidade e a ineficiência dessas instituições. Se desvelado o cinismo do discurso moral que avaliza as prisões, estas tornam-se ambientes insustentáveis. Quando se decifra a prisão, percebe-se a sua inutilidade e a perversa lógica que rege o seu sistema.

O discurso do sistema penal de reformar sujeitos desajustados se atualiza e, com a introdução do neoliberalismo, parece sofrer uma nova ruptura. Se, por um lado Foucault previa que com esse deciframento das prisões elas estariam fadadas a desaparecer, o que se observa nas últimas décadas é um aumento exponencial da população carcerária e, consequentemente, das prisões. Se o recrudescimento e o poder punitivo avançam significativamente, a emergência de pensamentos e novas formas de organização em que se possa superar essa lógica punitivista e de controle sobre os corpos se fazem necessárias.

O Neoliberalismo e a Economia prisional

Diante do contexto de expansão da doutrina neoliberal pelo mundo e da introjeção dos instrumentos de controle e de disciplinarização dos corpos, a dinâmica das instituições asilares se atualiza para a maximização dos lucros do capital privado. O sistema prisional, antes encarado pelo Estado como destino último para enquadrar os sujeitos ao modo de produção capitalista, torna-se, além do destino de determinados corpos, considerados descartáveis pelo sistema, uma potente fonte de lucro em si.

No quinto capítulo do livro Estarão as prisões obsoletas?,Angela Davis propõe uma análise da economia que se estabeleceu entorno das instituições prisionais. Durante a década de 1980, com a crescente globalização do capitalismo, iniciou-se o deslocamento de capital para a economia correcional dos Estados Unidos. Com a crise do Welfare State (Estado de Bem-Estar social),serviços antes geridos e garantidos pelo Estado passaram a ser alvos de incentivos a privatizações e a corporativização. Foi neste momento que empresas de diferentes ramos, como de produção de dispositivos eletrônicos e produtos de higiene e de fornecimento de refeições e assistência médica, aprofundaram seus laços corporativos com o negócio de punição estatal. Nas palavras de Davis:

“No contexto de uma economia movida por uma busca sem precedentes de lucro, não importa qual seja o custo humano, e pelo desmantelamento concomitante do estado de bem-estar social, a capacidade das pessoas pobres de sobreviver ficou cada vez mais limitada pela presença ameaçadora da prisão.” (DAVIS, 2018, pp.98)

A fim de analisar o estabelecimento desta economia prisional e suas consequências é imprescindível compreender o que é o “complexo industrial-prisional”. Como afirma a autora (IBID, pp.91), ele é constituído pelas conexões entre governo, comunidades correcionais, corporações e mídia e a exploração da mão de obra prisional por empresas privadas é uma de suas características fundamentais.  O argumento da autora se desenvolve a partir da contestação de um discurso muito difundido na sociedade de maneira global: o de que o aumento da população carcerária e da construção de presídios (privados ou com profundas ligações com corporações) decorre do aumento dos níveis de criminalidade. Segundo a autora, a construção de prisões e o encarceramento em massa seriam, na verdade, guiados por duas chaves fundamentais: por ideologias racistas e pela busca desenfreada pelo lucro.

Portanto, o debate proposto por Angela Davis parte, primordialmente, da discussão de raça, classe e sistema econômico. O sistema prisional constitui-se como uma das potentes forças políticas e econômicas da sociedade contemporânea e, para entendê-lo em seu significado social, é preciso pensar a lógica punitivista para além da relação entre punição e crime. Estruturas e ideologias econômicas e políticas, como dito anteriormente, são cruciais durante o processo de punição, não somente a conduta criminal do indivíduo e os esforços de combate ao crime. Isto se torna explícito ao comparar, como fez Davis (IBID, pp.99), as taxas de criminalidade dos Estados Unidos com a taxa de encarceramento no mesmo período, o que a possibilitou chegar à seguinte conclusão: simultaneamente as taxas de criminalidade baixaram e a população carcerária tornou-se mais numerosa.

Uma vez percebida pelas empresas em associação ao Estado, à potência lucrativa que tinha o encarceramento em massa, somada à disponibilidade de corpos considerados descartáveis, justificou a construção desenfreada de presídios com o argumento de que se estava protegendo a sociedade de supostos assassinos, estupradores e ladrões. Segundo Loic Wacquant (WACQUANT, 2003, pp.86), o deslocamento financeiro para a economia prisional, na verdade, revelou o posicionamento do Estado norte-americano após o desmantelamento do Welfare State: “[…] a construção de prisões tornou-se, de fato, o principal programa de habitação social do país.” Com o apoio da espetacularização midiática sobre os níveis de violência, a sociedade norte-americana viu crescer o número de penitenciárias enquanto caiam as taxas de criminalidade. A conclusão que se chega, por meio da argumentação de Davis, é que, a fim de que se produza matéria-prima o suficiente que garanta o lucro das empresas – ou por meio da exploração da mão de obra prisional ou por meio de laços corporativos –, as políticas criminais devem garantir um número suficiente de pessoas encarceradas, independente da necessidade do cárcere destes indivíduos. 

“Precisamente aquilo que é vantajoso para as corporações, autoridades eleitas e agentes do governo com interesses óbvios na expansão desses sistemas é o que gera sofrimento e devastação nas comunidades pobres e racialmente dominadas nos Estados Unidos e em todo o mundo.” (DAVIS, 2018, pp. 95).

Tanto a presença de corporações na economia prisional quanto à abertura de prisões privadas, ambos os expoentes da tendência de privatização, estendem a lógica empresarial do sistema neoliberal àquelas pessoas consideradas dispensáveis do mundo “livre”. As prisões privadas, construídas, mantidas e operadas por empresas privadas, são fonte direta de lucro destas; as prisões públicas, que, fruto da onda das privatizações, são equipadas e operadas pelo setor privado também constituem uma importante fonte de capital para as empresas. A distinção entre elas não se dá mais de forma tão evidente, em ambas o lucro é fruto da destruição social. E é este modelo de perversão atualizada de privação da liberdade estadunidense, analisado por Angela Davis, que atualmente influencia o sistema prisional de forma mundial.

Por uma criminologia crítica

A persistência do sistema prisional que se firma no encarceramento em massa se deu em meio a oposições. Vera Malaguti é uma autora brasileira fundamental para se pensar a crítica à economia de um sistema prisional baseado na busca desenfreada pelo lucro e na necessidade da presença de corpos descartáveis na sociedade. A partir de uma leitura marxista, a autora analisa em profundidade o enraizamento do modelo de criminologia vigente.

Com a globalização do capitalismo e com o aprofundamento das políticas neoliberais, estratégias de criminalização e políticas mais duras de controle social foram sendo incorporadas e enrijecidas com objetivo de obter-se lucro por meio destas. No livro “Introdução crítica à criminologia brasileira”, no capítulo VIII (“O marxismo e a questão criminal”), Malaguti observa que o capitalismo se estabelece a partir de um processo de dominação do corpo, do trabalho vivo e do tempo do homem; é desta forma que o capital se expande. A fim de efetivar este controle de almas, um padrão de conduta social rígido foi estabelecido e ratificado pelo Estado utilizando-se da divisão de classes.

Em consequência disso pode-se perceber que a abordagem marxista sobre a questão criminal é dada a partir da relação entre o capital e o trabalho vivo exercido pelo corpo do indivíduo dominado por técnicas de controle social. Atualização da exploração destes mesmos corpos de classes subalternas constitui o foco da crítica à criminologia. A exploração do trabalho do encarcerado, em sua maioria em péssimas condições, sem direitos ou organização, é um exemplo do mecanismo do funcionamento atual do sistema prisional que surgiu para disciplinar contingente humano a fim de garantir o acúmulo do capital.

Juntamente com o marxismo, a teoria do Labelling Approach constitui a base da criminologia crítica explicitada por Vera Malaguti. Também conhecido como teoria do etiquetamento, o Labelling Approach trata do processo de criminalização de um sujeito. Segundo esta teoria, o comportamento criminoso não é uma realidade natural, mas uma realidade social atribuída a determinadas práticas e sujeitos pelo sistema de Justiça Criminal. O autor Ervin Goffman aprofunda esta teoria do Labelling Approach para além do cárcere a partir do desenvolvimento do conceito de desindentificação (GOFFMAN, 1974, 35-36). Este conceito analisa o antes e o depois da mentalidade do sujeito na penitenciária: fica evidente, segundo o autor, uma diferença entre a percepção do sujeito sobre si próprio, como sua auto-percepção se transforma em meio ao encarceramento devido à realidade de rotulações e de abandono na qual se encontra. Esta teoria crítica mostra que o crime não é uma qualidade da ação (crime natural), mas uma ação qualificada como crime pelo Legislador; o criminoso não é um sujeito portador de uma qualidade intrínseca (criminoso nato), mas um sujeito qualificado como criminoso pela justiça criminal (rotulação institucional): criminoso é o sujeito que se aplica com sucesso o rótulo criminoso. Assim, se o crime e o criminoso são realidades sociais construídas por mecanismos de interação social, ao nível da definição legal de condutas como crimes (Poder Legislativo) e ao nível da constituição judicial de sujeitos como criminosos (Justiça criminal), então o Estado cria o crime e produz o criminoso.

Portanto, é perceptível que o modelo de prisão atual é pautado no modelo de sociedade capitalista e neoliberal, na qual o controle da população de determinadas classes e raças produz uma necessidade de punição resultando em histórias de miséria, exclusão e de mazelas sociais. Na visão de Loic Wacquant:

“Nessas instituições totais, o público que é alvo tende a ser a população pobre, e a atribuição de um rótulo a determinadas classes reforça o argumento de que o sistema penal cria os espaços para esta massa empobrecida: o cárcere. Na lógica capitalista contemporânea, estes sujeitos não suscitam o acúmulo de capital, e por não possuírem lugar cativo no mercado, podem ser excluídos, e conduzidos à prisão.” (WACQUANT, 2003, pp.21)

A ebulição política, contudo, dos anos de 1960 e 1970 na Europa e nas Américas gerou diferentes formas de se pensar a criminologia ao propor modelos e condutas de uma política criminal que não se baseie na repressão e ou até mesmo na privação da liberdade dos sujeitos. É nesse contexto que a criminologia crítica produz projetos coletivos de redução de danos causados pelo poder punitivo. Com intento de promover alternativas que vão de encontro à lógica punitivista da tradição neoliberal na criminologia, a autora Vera Malaguti considera primordial, dentre outras, transformar as políticas de segurança pública, implementar medidas de redução de danos às pessoas encarceradas e colocar em prática modelos que não tenham como referência a privação de liberdade dos sujeitos.

As propostas antipunitivistas apresentadas pela autora em seu texto pressupõem uma transformação social para uma realidade no qual a punição não seja a única solução. Tais medidas expostas mostram a existência de discursos e autores contrários a tal exploração, como também a frequência desses debates nos dias de hoje. Contudo, este panorama crítico demonstra como o capitalismo, ao transformar os sujeitos em mercadorias a serem exploradas, e o modelo neoliberal, que enfatiza e aprofunda as desigualdades, não permitem um sistema prisional que funcione mediante as concepções alternativas da autora.

Considerações finais

Como anteriormente apresentada, a argumentação deste artigo se deu a partir da ideia do cárcere como uma instituição essencial para o funcionamento do sistema capitalista. Partindo deste pressuposto, foram demonstrados alguns dos argumentos basilares da manutenção das prisões.  Por meio do pensamento de Michel Foucault, foi explicitado o processo de formação dos corpos dóceis, isto é, o desenvolvimento de dispositivos de poder que corroboraram para a maximização do controle sobre os corpos de tal maneira a produzir homens máquina, estes absolutamente úteis para a exploração no sistema capitalista.

 Em seguida, já no contexto do capitalismo em uma nova fase, a neoliberal, o sistema prisional também se atualiza. Além do objetivo já estabelecido de reformular os indivíduos encarcerados, as prisões, neste novo cenário, parecem ser construídas com a finalidade de administrar a pobreza, evidenciando, segundo Wacquant, “a atitude dos poderes públicos em relação às classes mais pobres […].” (WACQUANT, 2003, pp. 65) Somado a isso, o sistema carcerário revela-se como uma instituição lucrativa para o capital privado, sendo, desta forma, conveniente disseminar discursos espetacularizados que fomentam a produção de sujeitos criminalizáveis.

Por fim, a partir da argumentação de Vera Malaguti, tornou-se evidente a necessidade da proposição de uma nova criminologia. Denominada criminologia crítica, esta acarretaria diretamente a desmistificação e a superação da lógica de encarceramento das sociedades ocidentais capitalistas, como Estados Unidos e Brasil. Como discorrido, o sistema de privação da liberdade, no que diz respeito às taxas de criminalidade, já se mostrou ineficiente no setor público e só se mostra eficiente no setor privado no que diz respeito ao acúmulo de capital das grandes corporações. Faz-se, portanto, necessário pensar fora da lógica punitivista e não otimizá-la para garantir o lucro.

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Lara Mendonça

Rebeca Neves

Yargo Marino

[1] ANITUA, Gabriel Ignacio. História dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

 [2] BATISTA, Vera Malaguti. Introdução a Criminologia Crítica. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

[3] DAVIS, A. O complexo industrial-penal. In.: Estarão as prisões obsoletas? 2018, 2ª ed., Rio de Janeiro: DIFEL.

[4] GOFFMAN, E. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4a.ed.[S.I]: LTC, 1974. 

[5] FOUCALT, M. Os corpos dóceis. In.: Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. 1991. 9ª ed., Petrópolis: Vozes.

[6] WACQUANT, Loic. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2003,Rio de Janeiro: Editora Revan

Reconhecimento de identidades, teoria e prática – Número 179 – 08/2021 [74-83]

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Introdução. 1. Uma definição rasa, uma razão espessa. 2. Controvérsia em torno do conceito de reconhecimento. 2.1. Reconhecimento ou morte violenta; 2.2. Reconhecimento entre teorias da justiça; 3. Movimento LGBT, luta por reconhecimento de identidades e estratégias institucionais.

Introdução.

Para interpelar a relação identidade, movimento social e reconhecimento, adotarei como estratégia partir de uma exposição dos cânones da teoria contemporânea que trata do tema do reconhecimento. Entendo-o como campo teórico de elaboração de ferramentas úteis tanto para a análise de estratégias práticas de construção de identidades para os movimentos sociais, quanto para a construção individual de identidades dos sujeitos. Partirei, assim, de uma definição de reconhecimento, isto é, da recuperação do tratamento moderno dado ao tema, o qual remonta, segundo Hegel, a Thomas Hobbes, para interpelar, especificamente, os tratamentos dados ao reconhecimento por Nancy Fraser e Axel Honnet. Com isto, pretendo apontar o fato de que as consequências do mal reconhecimento são, no presente, as mesmas identificadas no passado pela teoria política moderna, isto é, a morte violenta, e preparar o terreno, digamos, para tratar de uma específica expressão do movimento LGBTQIA+. A escolha da expressão niteroiense de tal movimento não repousa exclusivamente sobre sua pertinência em que pese a relação entre reconhecimento e suas agendas. Ela se deve também às estratégias mobilizadas contemporaneamente pelo movimento, que se caracterizam por uma forma específica de interação do movimento com instituições estatais, e o inscrevem no que se convencionou chamar de “novos movimentos sociais”. Tal traço é de interesse em razão de ser problematizado por Evelina Dagnino que, no debate que que o localiza na noção de “amornamento” do ethos contra-cultural original do movimento, interpreta as operações do movimento LGBTQIA+ como estratégias de participação.

1. Uma definição rasa, uma razão espessa.

O reconhecimento tem ao mesmo tempo uma dimensão psicológica  e uma normativa.  Se alguém quer ser reconhecido em razão de determinado traço, quer não só que se admita que tem tal traço, como que se adote sobre ele uma atitude positiva. Quer que o reconhecimento produza obrigações. Essa dimensão de expectativa é a normativa. Mas o reconhecimento não importa apenas normativamente. Ele também importa psicologicamente. A maioria das teorias sobre o reconhecimento assumem que para desenvolver uma identidade prática, as pessoas dependem do retorno de outros sujeitos, da sociedade como um todo. Deste ponto de vista, aqueles a quem é negada a experiência do reconhecimento, ou que dela usufruem em chave negativa, terão mais dificuldade de desenvolver sobre si mesmos aceitação e perceber seus projetos como valorosos. A ausência ou o mau reconhecimento destrói o relacionamento de uma pessoa com ela mesma e, consequentemente, com o entorno. É o típico de impacto sofrido por vítimas de racismo, colonialismo, sexismo etc. que faz com que o reconhecimento seja, segundo Charles Taylor, uma “necessidade humana vital”.

2. Controvérsia em torno do conceito de reconhecimento.

2.1. Reconhecimento ou morte violenta.

A mutualidade é o que está no centro da discussão contemporânea sobre reconhecimento. A maior parte das teorias remonta a Hegel, o qual esteve neste aspecto fortemente influenciado por Fichte. De acordo com Fichte, nós nos tornamos conscientes de nossa própria autonomia quando somos desafiados pelas ações de outros sujeitos. Apenas ao compreendermos que as ações dos outros são intencionais poderemos nos apropriar de nossas próprias ações como expressões de um ser intencional. Essa proposição foi expressa com mais fama na Fenomenologia do Espírito, de Hegel, na qual essa luta interpessoal culmina logicamente no limite entre vida e morte. Na Fenomenologia, essa ideia assume a forma da tese de que atingimos autoconsciência enquanto agentes autônomos apenas pela interação com outros sujeitos autônomos. O que, por seu turno, levou Hegel a considerar a importância de distinguir entre as formas de reconhecimento mútuo.

Para expor a primeira, Hegel expande a proposição fichteana recorrendo a um argumento que tem lastro hobbeasiano. A ideia de luta fundamental, que remonta a Hobbes com frases conhecidas como guerra de todos contra todos ou coisas desse tipo, em Hegel não tem que ver com o auto-interesse de seres apetitosos, tal como define a antropologia filosófica de Hobbes. Ela tem que ver com o reconhecimento. Na narrativa do história do estado de natureza feita por Hegel, já há relações sociais. Uma pessoa que atenta contra a propriedade de outra, não o faz somente visando àquele bem, mas também visando lembra-la de que ela é uma pessoa dotada de statuto moral a qual foi negligenciada pelo ato do proprietário de apropriar-se. O limite disto, como em Hobbes, é a morte violenta. Numa linha, isso quer dizer o seguinte: você não me reconhece e por isso acha que pode ter o que eu não tenho. E eu, porque não te reconheço, te mato.

É uma proposição forte, porque guarda a ideia de que o reconhecimento da identidade se faz na interação. Mas, posta assim, leva a um impasse. Como em Fichte, para Hegel é na disputa que se constrói a autoconsciência. Ao recorrer a Hobbes, Hegel extrapola o ponto de Fichte e faz o seu: essa disputa não põe a possibilidade do reconhecimento mútuo. O que faz todo sentido para um autor como Hegel, que não participa da expectativa do XVIII de que os homens alçarão o aperfeiçoamento moral pela etapa da autonomia. Deixados livres, um dos envolvidos na moderna disputa por reconhecimento sempre morre. Para Hegel, o reconhecimento adequado só pode ser atingido numa ordem institucionalizada de direitos que assegure genuinamente o reconhecimento mútuo. Não por acaso, a reflexão hegeliana sobre o reconhecimento será sistematizada e amadurecida na Filosofia do Direito.

2.2. Reconhecimento entre teorias da justiça.

Feito esse ponto sobre o pensamento moderno, gostaria de dar um salto relativamente grosseiro para um diálogo famoso da teoria do reconhecimento contemporânea, notadamente entre Nancy Fraser e Axel Honnet. Não pretendo com isto estabelecer qualquer nexo entre as teses destes e aqueles autores. Gostaria apenas de apontar que os modernos anteciparam elementos centrais das teorias contemporâneas do reconhecimento, sobretudo em que pese a associação entre reconhecimento e formação da autoconsciência e entre reconhecimento e as consequências da justiça deixada a cargo da liberdade. Embora, ao final, pretenda fazer o ponto de que as consequências contemporâneas da ausência ou do mau reconhecimento seguem sendo as mesmas.

As teorias do reconhecimento são entendidas como especialmente bem equipadas para iluminar os mecanismos psicológicos de resistência social e política. As ocorrências de mau reconhecimento e consequentes violações da identidade dos sujeitos faz dos afetados sujeitos particularmente motivados a resistir e se engajar em lutas por reconhecimento. Pelo menos desde os anos 1990, as teorias do reconhecimento prometem iluminar uma variedade de novos movimentos sociais, como as lutas de minorias étnicas ou religiosas, de LGBTS etc.

Em princípio, nenhum desses grupos, lutaria por uma mais favorável distribuição de bens. Lutariam antes pela afirmação de uma identidade particular e seriam então pensados como engajados numa nova forma de política, conhecida como “política da diferença” ou “política da identidade”. Entretanto, as muitas abordagens acabam por produzir um papel consideravelmente mais fundamental ao conceito de reconhecimento, cobrindo com ele a inteireza da moralidade das relações humanas, inclusive em sua dimensão material. Deste ponto de vista, as lutas por direitos iguais, sejam de trabalhadores, mulheres ou negros, devem ser entendidas todas como lutas por reconhecimento.

O centro do famoso debate entre Nancy Fraser e Axel Honnet reside precisamente no significado de reconhecimento, isto é, nas expectativas sobre suas potencialidades. Bem cedo no diálogo entre eles, Nancy Fraser coloca a seguinte questão: o reconhecimento é uma questão de justiça ou de auto-consciência? Ambos, Fraser e Honnet, sem dúvida, fundam suas concepções de reconhecimento numa teoria da justiça. Entretanto, para este último, como para, antes dele, Charles Taylor, o reconhecimento é uma necessidade humana vital, um profundamente assentado fato antropológico pertinente à natureza intersubjetiva dos seres humanos. Nós não apenas desejamos reconhecimento, precisamos dele de muitas formas: respeito na esfera política, estima na esfera social e cuidado a esfera íntima da família. Não gozar destas experiências interligadas de reconhecimento impede os sujeitos de alcançar plenamente sua realização pessoal. Não nos tornamos quem queremos ser, não realizamos a vida que queremos para nós. Para Honnet, o estrago produzido pela ausência de ou pelo mau reconhecimento é a pior forma de injustiça social. De fato, para o autor, é a chave que destranca a injustiça social como um todo. Experiências de não ou mau reconhecimento violam putativamente expectativas normativas transhistóricas que marcham no sentido da confirmação social ou da afirmação das identidades que reclamamos. Sem tais confirmações, não seremos capazes de desenvolver identidades pessoais intactas e, por consequência, não seremos agentes completos de nossas próprias realizações.

Nancy Fraser guarda um lugar importante, mas limitado, para o reconhecimento na sua teoria da justiça, ampliando o significado e a prática da igualdade.  Seu empreendimento requer uma virada: de um esquema ético-normativo de justiça, ao centro do qual está o hiper-bem auto-consciência, para um esquema deontológico em cujo centro está o ideal moral democrático de “paridade participativa”. Em lugar de tratar o reconhecimento como instrumental para a auto consciência individual, ela o instrumentaliza para a aquisição de um status completo como um parceiro completo na interação social. O reconhecimento é melhor tratado como uma questão de status social do que como uma constante antropológica que funciona como a condição necessária e, aparentemente, suficiente, para a formação de uma identidade pessoal intacta. Deveríamos, ao contrário, estar atentos aos padrões culturais valorativos que constituem alguns indivíduos ou grupos como “inferiores, excluídos, outros, ou simplesmente invisíveis”. Em tais casos, pode-se genuinamente falar em mau reconhecimento e status de subordinação. O remédio para a injustiça, nesses casos, requer a “desinstitucionalização” de tais padrões culturais valorativos que abrigam o mau reconhecimento e o status de subordinação. Não se trata de reparar subjetividades distorcidas ou identidades adulteradas de atores sociais, mas de restaurar seus status como parceiros completos na interação social. É deste ponto de vista que Fraser parte para conceber o reconhecimento como redistribuição.

3. Movimento LGBT, luta por reconhecimento de identidade e estratégias institucionais.

Um dos movimentos sociais contemporâneos mais expressivamente dedicados à luta pelo reconhecimento é o movimento LGBTQIA+. De fato, após a reabertura política, ou redemocratização, verifica-se considerável aumento na diversidade de movimentos sociais no Brasil. Em sua maior parte com agendas de redistribuição. Daí a referência eles como movimentos sociais populares, como os denomina Maria da Gloria Gohn. Entretanto, o movimento LGBTQIA+ é de interesse para os fins desta exposição por dois motivos. Primeiro porque é da natureza mesma da pauta LGBTQIA+ lutar pelo reconhecimento de identidades que não encontram assento em nenhuma daquelas esferas de que falava Honnet: nem na casa, nem na rua, nem na política. Sem descuidar das questões distributivas, o movimento LGBTQIA+ demanda direito à diferença, às identidades específicas, a novos direitos e uma nova cidadania. E, em segundo lugar, porque as estratégias contemporaneamente adotadas pelo movimento proporcionam uma instigante interlocução com a necessária autocrítica que os movimentos devem permanentemente fazer em que pese sua interação com o Estado.

Naturalmente que, porque se pauta por uma agenda de reconhecimento, a luta LGBTQIA+ está dirigida à sociedade, combinando convocar os militantes a defender e assumir a identidade homossexual, pela importância política de assumir-se homossexual. Não obstante, a trajetória do movimento ensejou estratégias de luta que aproveitam canais institucionais, marcando suas práticas de uma forma de interação com o Estado que, em certa medida, contraria a resistência no gueto e o ethos de contracultura que lhe foram originais. No Brasil, uma evidência dessa relação é o “Programa Brasil Sem Homofobia – Combate à Violência e à discriminação contra LGBT e Promoção da Cidadania Homossexual”, fundado em 2004 como fruto da atuação de uma comissão formada por representantes do Governo e da sociedade. Foi a primeira ação desencadeada pelo Poder Executivo Federal especificamente dirigida a gays, lésbicas, travestis e transexuais, e conta com 11 ações, divididas em 53 propostas de combate a discriminação e à violência contra LGBTs, envolvendo Secretarias Especiais de Direitos Humanos, de Políticas para Mulheres e de Promoção de Igualdade Racial.  No município de Niterói, por exemplo, o movimento LGBTQIA+ está em permanente interlocução com a Prefeitura. Suas conquistas incluem o avanço de suas pautas por uma Coordenadoria específica e que muitas de suas ações sejam apoiadas pelo poder público. 

Há quem remonte tal estratégica ao surto de AIDS nos anos 1980, o qual teria forçado o Estado a inaugurar uma interlocução responsiva com o movimento LGBT. Não obstante, a ciência contemporânea produz fartas evidências de que mais próprio seria recuá-la à chamada crise das instituições representativas tradicionais. De acordo com Evelina Dagnino, a dinâmica da construção democrática, alimentada pela visibilidade dos movimentos sociais daquela década, ensejou um processo de alargamento da democracia que se expressa na criação de espaços públicos e na crescente participação da sociedade civil nos processos de discussão e tomada de decisão relacionadas com questões de políticas públicas. O marco formal desse processo seria a Constituição de 1988, a qual teria consagrado como princípio a participação da sociedade civil. Por este motivo, as décadas subsequentes teriam sido cenário de um “trânsito da sociedade civil para o Estado”.

Entretanto, uma consequência desse “trânsito” pode ser que o confronto e o antagonismo que haviam marcado a relação entre Estado e Sociedade Civil antes da redemocratização cederam lugar a uma aposta na possibilidade da ação conjunta para o aprofundamento democrático. Tratar-se-ia, segundo Dagnino, de uma aposta que deveria ser entendida num contexto segundo o qual os próprios constituintes teriam desconfiado do Parlamento como arena capaz de garantir a redemocratização, fixando, então, na constituição um elenco de direitos fundamentalizados amplíssimo e ferramentas jurídicas capazes de fazê-los decantar sobre a realidade. Tudo com a finalidade de assegurar a democracia, a despeito de eventuais vícios do Parlamento. Neste contexto, também teriam sido criados espaços públicos nos quais o poder do Estado pudesse ser compartilhado com a sociedade.

É nesse sentido que Dagnino fala na necessidade de delimitar com precisão os projetos políticos que hoje convivem na vida pública brasileira, os quais, por partilharem do vocabulário democrático, tornam-se opacos em orientações ideológicas sub-reptícias. O aproveitamento do argumento de Dagnino é especialmente interessante, porque atribui chave positiva para a história política recente do Brasil, e porque produz uma possibilidade analítica política das estratégias de um movimento que, a par das muitas conquistas, continua a representar uma população relegada ao ‘gueto’. E que, embora lute hegelianamente por direitos, e nos canais institucionais, não o faz porque se amornou, mas porque a alternativa continua a ser a morte violenta.

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Paula Pimenta


Sentido da relação Entre Autoritarismo Político e Conservadorismo Moral: Expressão específica da forma geral de estabilização de organizações sociais excludentes – Número 178 – 07/2021 [33-73]

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1. Problema e hipótese de pesquisa:

Em 1973, Chico Buarque e Ruy Guerra tentaram encenar a peça Calabar, o Elogio da Traição. Um musical sobre o senhor de engenho da Capitania de Pernambuco, que toma o partido dos holandeses, no conflito com a Coroa Portuguesa, durante a Insurreição Pernambucana do século XVII. Dizemos que “tentou” porque a peça foi proibida, e boa parte das canções que compõem o repertório do musical tiveram suas letras censuradas, em parte ou por completo, no álbum em que foram gravadas. Algumas das partes suprimidas são emblemáticas do problema que buscamos tratar neste artigo.

Na canção Fado Tropical, foi suprimida a frase “além da sífilis”; em Bárbara foi mutilada a passagem que insinuava relação homossexual entre as personagens Bárbara e Anna. Considerando os temas, não achamos suficiente caracterizar essa ocorrência simplesmente como um episódio da censura que compôs as práticas repressivas da ditadura civil-militar. É necessário apontar que ela se estendeu a uma grande variedade de manifestações artísticas e culturais no período, muitas das quais foram censuradas sem que manifestassem qualquer indício de oposição ao regime. As razões da censura não estão dadas no ato de censurar; mais do que uma ocorrência daquelas práticas, trata-se de uma evidência do problema obscurecido na relação entre autoritarismo político e conservadorismo moral que pretendemos analisar. Na proibição da peça e na supressão das músicas, o objeto de controle não eram contestações ao regime, manifestações políticas ou críticas ao governo. A proibição é justificada em razão da defesa da moral e dos costumes.

A preocupação moralizante orientou ações censórias em todos os ramos da produção cultural. Entre os escritores, a autora individual com mais títulos censurados escrevia literatura de bancas de jornal com temática homossexual feminina. O mercado editorial não tinha permissão para estampar nu frontal feminino no interior de revistas do gênero. Em um período em que a televisão ainda não estava massificada, o teatro possuía posição de relevo na difusão da cultura, e as Divisões de Censura de Diversões Públicas dedicaram considerável atenção a esse campo. Nos trabalhos sobre censura ao teatro, abundam referências ao papel exercido por “senhoras da sociedade”, na demanda por censura dos órgãos públicos a peças que atentassem contra a moral e os bons costumes da família brasileira.

Há um problema teórico aqui que pretendemos evidenciar, pois um regime político autoritário não guarda relação auto evidente com uma pauta de costumes. A ditadura civil-militar instaurada a partir do golpe de Estado de 1° de abril de 1964 se estruturou com o propósito de estancar e reverter os avanços políticos e econômicos de caráter popular do período precedente, garantindo os interesses materiais de determinado setor da sociedade. Assim, a pergunta que moveu a análise que apresentaremos da relação entre autoritarismo e conservadorismo se põe nos seguintes termos: Por que uma forma de exercício do poder político, que se erige para preservar interesses, dedica recursos e busca o controle de manifestações sociais que não resistem a esses interesses, ou a essa forma política? Nossa pergunta parte da validade da descrição da forma de governo por essa específica causa final, a qual problematizaremos a seguir. E coloca como possibilidade a hipótese de que o controle moral sobre costumes teve um papel na consecução dessas finalidades.

Uma forma de exercício do poder político, reconhecendo o que caracteriza uma organização social, existe para mantê-la ou alterá-la com vistas a determinadas finalidades. O que ela é, quando adequada à sociedade, ou bem-sucedida quanto à consecução das finalidades, varia em nomenclatura a depender do que deve ser reconhecido, mantido ou alterado. Assim, é possível afirmar, genericamente, que a forma de governo será, por exemplo, adequada, se produzir as condições conservadoras ou transformadoras necessárias à consecução de suas finalidades. Mas apenas a finalidade de ser duradoura pode ser tomada como constante em qualquer forma de exercício do poder político. Por este motivo, sua definição parece ainda incompleta, porque descuida de evidenciar que adequação e finalidades resultam de decisões tomadas segundo determinados critérios. Numa sociedade de classes, como a descrita no caso em questão, a forma de governo atendeu desigualmente aos interesses em disputa: o critério de definição de adequação e finalidades foi posto pelos atores que mais vantagens auferiam da desigualdade. Em atenção à empiria que orienta a análise, escolhemos nos referir a essa dimensão do exercício do poder político como autoritarismo político.

Autoritarismo é um conceito largamente utilizado, ainda que não conte com uma definição rigorosa que se possa utilizar como referência[1]. Tratamos por autoritário o exercício excludente do poder político, mediante o uso das instituições de forma fechada e infensa ao contraditório, mantendo o grupo dominante isento do exercício de negociação, composição, concessões mútuas e incorporação das demandas de outros grupos que também serão afetados pelos resultados concretos das decisões. A forma de governo que se verifica durante a ditadura civil-militar pode, nesses termos, ser caracterizada como autoritária, a despeito de preocupações com um verniz institucional que variaram ao longo dos mais de vinte anos de sua duração. Como qualquer outra, a forma de exercício do poder político vigente durante a ditadura civil militar poderia ser bem descrita segundo a chave adequação-finalidades: reconhecendo o elitismo como característica histórica da sociedade brasileira, produziu condições de manutenção e alteração dessa sociedade segundo as finalidades elitistas para cuja proteção passou a existir. Mas essa descrição não alcança todo o fenômeno, pois os critérios fixados para a definição da adequação e das finalidades atenderam exclusivamente aos interesses da elite.

Durante a ditadura civil-militar, a forma autoritária de governo se erigiu para criar uma ordem política que governasse a organização social brasileira mediante uma operação necessariamente ambivalente. A sociedade não se caracterizava apenas pela radical desigualdade material, como também por transformações que apontavam para a possibilidade de popularização do acesso a bens, a direitos e ao exercício do poder político. Neste caso, a adequação da ordem autoritária se deveu à sua potencial capacidade de forçar a manutenção de uma sociedade impopular. A impopularidade impõe essas operações interessantes, como a de um juízo que, para ser adequado a uma realidade em processo de transformação, não deve ser realista, mas normativo.

Desde seu momento inaugural, a forma autoritária da ditadura civil-militar se caracterizou por esse tipo de ambivalência. Os operadores do golpe de Estado de 1964 se valeram do argumento contrarrevolucionário, isto é, da justa contenção de uma injusta ruptura. Não obstante, do ponto de vista da relação da transformação com o tempo, o movimento dotado de sentido propriamente conservador seria o de preservar a popularização. Mas o golpe que rompeu com ela se apresentou como contragolpe. Mais ainda, o fez mediante uma suposta defesa dos interesses gerais da nação, como atua ideologicamente a burguesia para encobrir seu particularismo com o manto da universalidade, desde o surgimento dos nacionalismos modernos no final do XVIII[2]. A operação tem a ver com a forma de apresentar as medidas necessárias à preservação de interesses excludentes. Era do interesse de frações dominantes que se mantivesse restrito o acesso aos bens sociais e políticos, mas a forma de governo necessária à manutenção dessa restrição foi apresentada como correspondente a toda a organização social. Trata-se de uma operação curiosa, caso se faça a identificação rápida entre autoritarismo político e sua afirmação pela força. Porque evidencia o reconhecimento de um último elemento que caracteriza as formas de exercício de poder político em geral, cujo impacto para a forma autoritária é central para a relação que analisamos: será duradoura a organização social excludente cuja forma de governo seja capaz de alcançar algum grau de adesão dos membros excluídos. No gesto do golpe que instaurou a ditadura em 1964, tratou-se de reforçar o elemento de coerção, ao remover um governo eleito pela via de um movimento armado; o que não dispensa o recurso a formas ideológicas que permitam a recuperação de algum consenso, sem o qual o regime instaurado não se estabiliza.[3]

No regime autoritário a manutenção que se espera, da forma de exercício do poder político, é dificultada pela instabilidade fatalmente imposta pela natureza postiça da sociedade que ele existe para preservar. Desta maneira, a ruptura que instaura a ditadura civil-militar não faz dela automaticamente um regime. Foram muitas as operações que visavam garantir potencial duradouro àquela forma autoritária de exercício do poder político. No plano da sociedade civil, a ação do governo autoritário se materializou pela interferência na livre associação, na formação de grupos organizados, ou ainda na manifestação de interesses, expressão de ideias ou práticas comportamentais. Não fazemos aqui a defesa abstrata de uma liberdade de expressão e organização absolutas, como o adversário oculto que estava sendo suprimido. Esse controle é autoritário na medida em que decorre de decisões políticas de um regime fechado, são expressões interligadas. O resultado é um regime elitista, que preserva os interesses do setor dominante através do controle exclusivo dos mecanismos políticos. Mas seu sucesso depende de que a neutralização do potencial inclusivo da atividade associativa não comprometa a possibilidade de consenso. Compreendendo a construção da hegemonia como a articulação entre os momentos de coerção e consenso, identificamos a censura forjando uma área transitória entre ambos, à medida em que se vale da ameaça de violência para o controle dos canais de expressão das ideias.

Partindo da exposição do que entendemos por autoritarismo, isto é, exercício excludente do poder político, chegamos à identificação de que a estabilidade que lhe é imprescindível impõe a adoção de estratégias pelas quais suas formas são conservadas. Observamos ainda que tais estratégias serão bem-sucedidas à medida que sejam capazes de induzir a adesão dos excluídos. Assim, a operação característica da forma excludente de exercício do poder político é o deslocamento do conflito que, originado pelas consequências da exclusão, garante a subordinação política necessária à manutenção estável da forma excludente de governo e, consequentemente, da forma impopular da organização social que ele se erige para preservar.

Do exposto, entretanto, não se compreende ainda a natureza da relação entre autoritarismo político e conservadorismo moral. Explorá-la depende da descida às especificidades históricas que determinaram o caso concreto, como recurso para melhor apreender o alcance dessa relação.  O poder instituído dispõe de recursos, estrutura e legitimidade para realizar as operações de controle conservador da moral. A materialização dessa capacidade em estrutura institucional se dá através de mecanismos de censura. Criação de agências, dotação de recursos, recrutamento de funcionários, definição de escopo de atuação formam um campo de intervenção que, via de regra, confere poder a instrumentos que apresentam um variado grau de arbitrariedade nas decisões. Apesar da preocupação formal em instituir o objeto de atuação do controle censório, não são raros os casos de atuação que escapam a esse foco, atendendo tanto a interesses particularistas quanto aos objetivos não declarados de consolidação do poder excludente.

No caso de interesses particularistas, temos exemplos marcantes na ditadura civil-militar de 64, dos quais dois merecem destaque. O primeiro exemplo é a peça “O Berço do Herói”, de Dias Gomes. Sua interdição no momento em que estava prestes a estrear foi interpretada como manifestação do ressentimento do governador da Guanabara, Carlos Lacerda[4]. Apesar de ser uma crítica camuflada e bem humorada à manipulação do sentimento popular por parte das estruturas de poder, mirando no mandonismo e clientelismo do “Brasil profundo”, a peça foi interditada com recurso a justificativas moralizantes, por ataque ao decoro e aos bons costumes. Mesmo com os ajustes feitos visando sua aprovação, a encenação continuava vetada, submetendo autor e produtores ao labirinto burocrático estabelecido para obter aprovação de instâncias estaduais e federais. Avaliando pareceres e declarações do período, Laura Matos conclui que não restava outro elemento para compreender a manutenção do veto, a não ser o ressentimento de Lacerda. O governador da Guanabara havia se tornado um conservador militante após ser expulso do PCB, quando se recusou a se desculpar publicamente por uma entrevista que expôs dirigentes do Partido à repressão durante o Estado Novo. Dias Gomes, autor da peça, era figura de destaque da célula de cultura do Partido Comunista[5].

O segundo caso emblemático diz respeito à cassação de professores da Universidade de São Paulo, após a edição do Ato Institucional número 5. Apesar de formalmente enquadrados nos dispositivos legais do AI-5 e da Lei de Segurança Nacional, professores cassados e até mesmo presos sequer tinham envolvimento com atividade política. A Associação dos Docentes da USP (ADUSP), sindicato da categoria, realizou minucioso levantamento dos processos desde o golpe até o fim da vigência do AI-5, e identificou a prevalência de motivações muito distantes das alegadas infrações subversivas. Na raiz da perseguição aos docentes estavam, principalmente, a intenção de eliminar da concorrência profissionais competentes que não poderiam ser derrotados em concursos públicos, e o projeto de remover dos quadros da instituição os membros do grupo em torno do candidato a reitor que tinha a proposta de reforma universitária que modernizaria a USP e diminuiria o peso corporativo dos Institutos mais tradicionais (e tradicionalistas). Revanchismo e ressentimento encobertos com o manto da defesa da pátria[6].

O espaço deixado ao arbítrio, graças ao poder conferido a agentes locais desembaraçados de mecanismos de controle, combinado ao incentivo à delação, proporcionou a proliferação de casos caricatos, compilados com humor por Stanislaw Ponte Preta nos volumes do seu Febeapá[7]. O autor, ator, músico e militante comunista Mário Lago também registrou em duas obras um catálogo de absurdos cometidos por esses tiranetes locais acobertados. Frequentador recorrente dos cárceres da repressão, seu objeto não é propriamente a censura, mas a perseguição e prisão de cidadãos logo após o golpe e durante a ditadura. Com a leveza de sua escrita, denuncia os casos de colegas de cárcere que, diferente dele, não tinham qualquer envolvimento com militância política[8]. Escolhemos estes exemplos, entre uma grande profusão de tantos outros, apenas como ilustração das preocupações que o regime autoritário teve para a restrição da formação ideológica, e o papel que a repressão e a censura tiveram para efetivá-lo. Evidências anedóticas que sinalizam um processo mais abrangente na construção da hegemonia, como estabilização e rotinização da dominação, e o inevitável subproduto de proliferação da arbitrariedade para além dos limites declarados. O recurso à censura como instrumento de conservadorismo moral não é, contudo, criação da ditadura de 64. Há uma trajetória histórica, tanto do fenômeno quanto do seu desenvolvimento institucional.

2. Especificidades históricas do sentido da relação entre autoritarismo político e conservadorismo moral

A censura oficial, como prática de governo, emerge no Brasil entre as primeiras instituições que são fundadas com a chegada da Corte. O alvará de criação da Intendência Geral de Política, em maio de 1808, estabelece a censura das casas de diversão com poder de polícia. Ainda que a Constituição Imperial tenha proclamado a liberdade de expressão, o primeiro registro de censura data de poucos meses após o início de sua vigência, ainda em 1824. Durante o período do Primeiro Reinado a censura ao teatro era realizada localmente, ofício garantido com a manutenção de camarotes financiados publicamente nas salas. No regulamento do Teatro de São Pedro, no Rio de Janeiro, constava do artigo 4° que se qualquer ator, por gestos ou palavras, ofendesse ou cometesse algum abuso contrário à moral e ao respeito devido ao público, seria preso e condenado à cadeia. Em 1843 é estabelecido o Conservatório Dramático Brasileiro com atuação no Rio de Janeiro, sede da Corte, e se definia como uma associação de intelectuais, não remunerados, “desejando promover os estudos dramáticos e o melhoramento da cena brasileira de modo que se tornasse a escola dos bons costumes e da língua.” Em seu artigo 8°, apresentava o fundamento da ação censora: “A veneração à nossa Santa Religião – o respeito devido aos Poderes Públicos da Nação e às autoridades constituídas – a guarda da moral e decência pública, a castidade da língua – e aquela parte que é relativa à ortopedia.”

A atuação do Conservatório na censura teatral oferece uma imagem dos antecedentes históricos do fenômeno que estamos interpretando neste artigo. Justificando o veto à peça Maria Tudor, o censor apresenta o seguinte parecer, em janeiro de 1844:

“O drama Maria Tudor apresentando o deplorável espetáculo de uma princesa soberana, digna de censura pelos escândalos de sua moral pervertida, como mulher, e como rainha, não pode deixar de deprimir, e muito, o prestígio da realeza, se chegar a representar-se. E como, segundo meus princípios, só devam aparecer em cena os atos heroicos, morais e virtuosos dos soberanos, capazes de inspirar no Povo sentimentos de mor, veneração e respeito, não posso convir em que se autorize a representação do referido drama, e muito principalmente no Teatro de São Pedro de Alcântara, honrado frequentes vezes, e sem previa participação, com a Augusta Presença da Família Imperial[9].

Como é possível identificar nessa passagem, a trajetória das instituições censórias é historicamente constituída, por sua estrutura e seu conteúdo, da dotação de poderes arbitrários aos seus agentes. A justificativa do censor, baseada em suas considerações subjetivas sobre o que deve ou não ser encenado, serão reproduzidas de diversas formas nos pareceres da censura após 64. Exemplos eloquentes dessa permanência estão nos pareceres de censores para justificar a proibição de Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, que entende não ser adequado expor ao público palavreado chulo, descrição de cenas com teor sexual e criminalidade[10]. É relevante atentar para a ligação entre o conteúdo dessas intervenções arbitrárias e um traço ideológico marcante dos regimes autoritários, particularmente no papel conferido à censura. A percepção de que o povo é ignorante, deseducado, incapaz de identificar de forma autônoma o que atende a seus próprios interesses, é uma justificativa fundamental para o exercício do poder excludente, por uma elite esclarecida capaz de tutelar a “multidão criança”. A tipificação das classes baixas como não portadoras de racionalidade e moralidade plenas acompanha a justificativa de sua exclusão da comunidade política desde os fundamentos do liberalismo moderno com Locke, e em cada quadra histórica a argumentação se ajusta às necessidades de justificar e consolidar instituições, que lidem com a contradição entre fundamentar o dever político universal e preservar o controle político para os proprietários.[11]

A censura, como prática de governo, acompanha o desenvolvimento da estrutura institucional nas diferentes fases da formatação do Brasil moderno. O aparato oficial de censura ganha corpo com o Estado Novo de Getúlio Vargas e o DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda. O rádio, como principal veículo de comunicação de massas, concentra a atenção das camadas populares e médias urbanas. Em 1942, 108 programas radiofônicos e 373 letras de músicas foram proibidos. A estratégia do Estado Novo, contudo, foi marcada pelo intenso trabalho de cooptação de artistas e intelectuais, e sua instrumentalização para a propaganda ideológica do regime para as massas. Em artigo de 1942, na Revista Cultura Política, é expressa uma indicação da nossa hipótese, sobre a relação entre interesses do grupo político no poder e a formação de uma base de apoio, através da comunicação direta com valores tradicionalistas: “o governo pede apenas a colaboração de todos os homens de boa vontade para a consecução da enorme tarefa que a si mesmo se propõe. Quem não quiser ajudá-lo, pelo menos não o impeça[12]. Nesse contexto é criado o DIP, em 1939, apresentando no discurso de sua justificação a defesa do caráter não arbitrário do Estado, e a prioridade à propaganda em lugar da repressão. O órgão se torna encarregado da censura das produções de teatro, cinema, atividades recreativas e esportivas, radiodifusão, literatura social e política e imprensa. No balanço das atividades de 1941, após mencionar os dados referentes à censura e proibição de programas de rádio e letras de canções, é mencionado que “foram efetuados numerosos cortes em textos que se achavam em desacordo com a orientação do DIP, que procura imprimir ao rádio uma orientação moralizadora e útil[13].

Ainda que a orientação estadonovista tenha sido marcada pelo esforço de cooptação, mobilizando a produção cultural para a difusão da ideologia do regime com o culto do trabalho, a política foi simultaneamente paternalista e repressiva. A apologia do trabalhador sufocava o espaço que a figura do malandro ocupava na representação artística popular, particularmente no samba. Os censores do regime se reuniam com os compositores e assinalavam passagens que deveriam ser suprimidas e alteradas. Alterar composições não foi uma inovação dos censores do período, mas é no Estado Novo que esse gesto alcança o status de política cultural institucional. Tratava-se de um Estado que encarnava o papel de guia cultural das massas, orientado por um conjunto de valores morais que deveriam ser partilhados por toda a Nação. Em outra publicação da Revista Cultura Política, de 1940, as manifestações musicais populares são consideradas bárbaras por excelência, e reclamam domesticação, em uma reiteração da orientação elitista que não reconhece racionalidade nas classes baixas. Cabe ao Estado “a elevação do nível artístico e intelectual das massas (…) o samba, que traz em sua em sua etimologia a marca do sensualismo, é feio, indecente, desarmônico e arritmo. (…) lancemos mão da inteligência e civilização. Tentemos, devagarinho, torná-lo mais educado e social.”  É ainda relevante registrar que as preocupações com o papel de guia ético moral da nacionalidade não são atributo exclusivo dos regimes abertamente ditatoriais, pois a regulamentação legal da censura, vigente durante a ditadura civil-militar, foi herdada da Constituição de 1946[14].

A mobilização de recursos e uma estrutura institucional voltada para o controle moralista (contemporaneamente tratado como “pauta de costumes”), nos marcos temporais da ditadura civil-militar de 1964, despertam a atenção analítica ao se considerar as motivações para o golpe e os interesses que sustentaram a ditadura que o seguiu. Como pretendemos ressaltar sumariamente a seguir, a destituição do Governo Jango e a edificação de uma ordem autoritária tinha como horizonte atualizar os mecanismos e táticas da modernização conservadora brasileira. Tratava-se de conter a conscientização e organização política autônoma das classes trabalhadoras, para remover os obstáculos a uma política econômica recessiva. Os ajustes liberais e o arrocho salarial eram a solução das elites para a inserção da estrutura econômica brasileira na nova etapa do circuito capitalista internacional, recuperando as elevadas taxas de acumulação que tradicionalmente impulsionaram a formação de capital, os investimentos e os lucros de uma burguesia de nação periférica dependente.[15]

Do ponto de vista estritamente mercadológico, a obstrução conservadora da produção cultural é um contrassenso. Proibir livros, discos, peças de teatro, jornais e filmes, elimina a circulação de mercadorias culturais e impede a realização do lucro para produtoras, editoras, gravadoras, casas de show, e toda a cadeia de produtos associados ao seu consumo. Do ponto de vista político são atingidos até mesmo aliados do regime em questão, como Nelson Rodrigues, Rubem Fonseca e a Rede Globo de televisão, criada em associação com capital estrangeiro graças à proximidade do empresário das comunicações Roberto Marinho com as autoridades da ditadura.[16] Essa segunda consideração permite descartar a campanha característica da guerra fria – ou no mínimo questionar a sinceridade de suas razões declaradas. Incorporada ao ideário da segurança nacional através da Escola Superior de Guerra, tal campanha asseverava que o ataque à moral e aos bons costumes era uma estratégia comunista dissimulada, buscando a corrosão dos valores tradicionais para fazer ruir a família brasileira, o que facilitaria sua penetração insidiosa em uma cultura avessa a seus propósitos subversivos.

Dessa aparente contraposição entre horizonte capitalista e ação prejudicial aos negócios, emerge o questionamento quanto aos propósitos que sustentaram a atuação censória ao longo de todo o período. Como demonstrado anteriormente, a censura precede o golpe de 10 de abril de 1964, e perseverou após a redemocratização e mesmo na vigência da Constituição de 88. Buscamos circunscrever a análise não apenas por questões metodológicas de delimitação do objeto, mas a própria definição dos limites temporais atende às questões levantadas por esse fenômeno: por que um regime abertamente ditatorial recorre a tal expediente? Como a atenção a demandas do conservadorismo moral difuso se encaixa em uma manifestação histórica da autocracia burguesa que dispensa o verniz democrático e se apresenta em toda a sua composição de arbítrio e violência?

Capitalismo e modernização autocrática

Três aspectos da formação histórica do capitalismo brasileiro informam nossa análise da relação entre autoritarismo político e conservadorismo moral:  sua constituição histórica de forma dependente, sobre bases coloniais e escravocratas. O padrão de acumulação adotado, com baixa tecnologia e produção voltada para o fornecimento de produtos primários ao mercado externo, é assentado na hiperexploração da força de trabalho – cuja manutenção é garantida pela subordinação política das classes trabalhadoras. Apenas este último aspecto é mobilizado como operador analítico no presente artigo. Nossa interpretação repousa na identificação de que a mão de obra primeiro escravizada e, depois, de baixa remuneração, mas sempre socialmente excluída do acesso a bens e serviços elementares e politicamente subordinada, é condição para a consecução das finalidades que determinaram as formas e as estratégias assumidas pelo exercício do poder político no Brasil. Tal identificação é chave, portanto, para investigar a natureza da relação entre a forma autoritária e sua decisão de empregar recursos em políticas que não têm outra finalidade aparente, senão atender a valores conservadores.

A subordinação política das classes trabalhadoras foi garantida através da reiteração do controle pelo alto de processos históricos decisivos, desde a gênese da nacionalidade. Na América espanhola ocorreram guerras de libertação que, conduzidas por elites locais, envolveram setores subalternos em processos que fomentaram as bases de uma “formação nacional”. No caso brasileiro, eventos como Independência, abolição da escravatura, Proclamação da República e Revolução de 1930, resultaram de acordos internos às elites, mediante a ausência das massas e a manutenção do exclusivo agrário. Este padrão de deslocamento e controle das massas é a constituição histórica da autocracia burguesa, e se verifica em cada etapa da incorporação do Brasil a uma ordem social competitiva de mercado, um processo também tratado na literatura em analogia com a “via prussiana” ou ainda “modernização conservadora”.

Nessa chave interpretativa adotada, a Independência não é o desfecho de lutas nacionais por libertação, mas o resultado de um acordo. Elites locais que se potencializaram com a abertura dos portos buscavam continuar integradas ao mercado internacional, sem a mediação onerosa da Coroa Portuguesa; o chefe máximo do Estado recém criado era o príncipe herdeiro da antiga metrópole. A abolição da escravatura passou ao largo das campanhas abolicionistas e lutas por libertação dos trabalhadores escravizados, atendendo à racionalidade da formação de um mercado de trabalho assalariado mais ajustado às demandas do capital invertido na lavoura de café; foi assinada pela Princesa Imperial, e os libertos não lograram integração econômica ou política. A Proclamação da República e a Revolução de 1930 derivaram de rachas internos dos blocos no poder, e consequentes alterações na sua composição.

Com a República de 1946, os processos modernizantes de 1930-45 foram aprofundados em registro democrático, o que moveu engrenagens sociais vistas como ameaças de fissuras da ordem controlada. Não apenas porque esta garante a desigualdade necessária a processos de acumulação, mas porque o padrão exclusivista de controle político agora era confrontado com a necessidade de se preservar em uma democracia de massas. Os beneficiários desses processos se valeram daquela ordem para assegurar que o capitalismo industrial urbano gestado nas décadas de 1940 e 1950 continuasse se alimentando da sobrevivência do atraso, o qual garantia a renovação das bases materiais da coalizão entre elites agrárias e urbanas[17]. Tal convergência de interesses será responsável politicamente pela reação contra as ameaças à concentração fundiária e às margens de acumulação, promovendo o golpe de Estado de 1964 e sustentando a ditadura que o sucedeu.

A forma de exercício do poder político que emerge do golpe tem, necessariamente, que manifestar caráter autoritário para cumprir seus propósitos. No âmbito institucional, depende de um governo centralizado e forte para realizar a reversão violenta dos processos de popularização do acesso a bens sociais e políticos que ameaçam as margens de acumulação, tornando-se impermeável às demandas populares. Uma impermeabilidade que leva às preocupações pertinentes ao segundo aspecto autoritário. Para o sucesso da forma de governo constituído para preservar interesses elitistas, não é suficiente que ela seja autoritária e violenta. A rigor, não é prudente que a pretensão permanente de sua função excludente seja autodeclarada, sob risco de incitar resistências e comprometer sua estabilidade. Cabe ao Estado autoritário se tornar regime autoritário, mas para tanto, deve administrar o conflito resultante do padrão excludente de organização social que ele existe para proteger, produzindo as condições que tornem estáveis e duradouras a sua interação com a sociedade civil. Isto depende de estratégias capazes de produzir consenso entre excluídos e ordem excludente. Distinguimos entre três as estratégias poderosas que, embora extremamente repressivas e dispendiosas na origem, franquearam processos autônomos de reprodução de consenso que desobrigaram o governo do ônus da administração do conflito: controle sobre vida associativa, neutralização de espaços de formação da consciência dos interesses e deslocamento do conflito.

Nesse sentido, o período João Goulart (1961-64) é ilustrativo dos “problemas” a serem sanados da perspectiva autocrática, ao engrenar ameaças a um dos pilares do desenvolvimento capitalista brasileiro. Com intensa mobilização de setores populares, as reformas pretendidas acenavam com a possibilidade de ganhos diretos e indiretos para a força de trabalho, desde sempre embutida em um padrão de desenvolvimento escorado no alto índice de exploração. A convivência de um capitalismo urbano implementado (ainda que não maduro) com um setor agrícola com traços pré-capitalistas, era a manifestação concreta da sobrevivência do atraso financiando a expansão de um setor moderno. No modelo brasileiro pós-30 o Estado cumpre papel fundamental, principalmente através da atuação das estatais, mas tem uma base fiscal estreita, problema contornado com a emissão monetária. A instabilidade da moeda atenta contra os interesses dos setores financeiro e ligados ao comércio exterior, com o controle inflacionário e a obtenção de divisas despontando como horizonte político a ser perseguido. A estratégia de estabilidade, oferecida por agências financeiras internacionais para a concessão de crédito, conformava uma política econômica de austeridade, que resultava em depreciação do salário real[18]. No contexto de intensa politização das classes trabalhadoras no período, essa opção dependeria de uma solução autoritária que anulasse o potencial de contestação e negociação dos assalariados[19]. O controle rígido da força de trabalho, através da neutralização de suas entidades de classe torna-se, portanto, tarefa política para a realização de uma agenda que tem como horizonte a compressão de seus ganhos.

O atraso da estrutura agrária impunha a necessidade de uma reforma, deprimindo o custo da reprodução da força de trabalho, o que nas condições políticas do período deságua em um impasse, em virtude do equilíbrio de forças no pacto partidário PSD-PTB que sustentava o governo. É uma aliança de classes que desloca a burguesia brasileira do centro decisório, e estabelece por fim uma limitação à expansão capitalista inaugurada na era Vargas, por se mostrar incapaz de garantir as margens de acumulação que permitiam a formação de capital. Como reverso da moeda (em outras palavras, sua antítese na dialética histórica da formação do capitalismo brasileiro), concomitantemente o proletariado urbano experimentou um adensamento demográfico inédito, particularmente na industrialização dos anos JK (1955-60), organizando sindicatos e partidos que representavam seus interesses, e caminhando para a superação da condição de subalternos resignados. Paralelamente emergem vigorosos movimentos agrários que atuam para retirar da servidão parcelas significativas da população brasileira[20]. O golpe emerge como opção para as forças que rompem com a aliança de classes visando gestar uma nova aliança, entre setores da burguesia, agrários e capital externo, com exclusão das classes trabalhadoras rurais e urbanas[21].

O regime que emerge depende de suas feições autoritárias para cumprir o programa da nova composição estabelecida.  Visando garantir os índices de acumulação, nos moldes do padrão brasileiro de desenvolvimento, seria preciso não só impedir os avanços que as Reformas de Base significariam, mas reverter os avanços obtidos no período anterior. A política econômica deveria manifestar os interesses do capital e produzir ganhos de produtividade com o arrocho salarial que restabeleceria a lógica concentradora. Trata-se de uma opção que não poderia encontrar obstáculos na política econômica executada pelo governo, nem ser contestada pela oposição de movimentos da sociedade civil, organizada em forças capazes de exercer pressão. No campo institucional, o controle militar do governo garantiu a condução de uma política econômica favorável à orientação do novo bloco que se estabeleceu no poder; no campo da sociedade civil, significou a intervenção e repressão a entidades em que as classes trabalhadoras se organizavam para defender seus interesses. Perseguição e prisão de lideranças políticas e sindicais, intervenção direta em sindicatos e censura aos canais de expressão da crítica foram os recursos mobilizados para garantir a imposição das medidas de ajuste ao plano econômico da ditadura civil-militar. Sua execução redundou na combinação de altas taxas de crescimento econômico, particularmente no período do “Milagre”, com intensa concentração de renda[22]

Diante dessa exposição quanto aos motivos do golpe, e o sentido da ditadura de mais de duas décadas que se seguiu, qual o papel do conservadorismo moral nesse arranjo político? Como podemos compreender a atenção (materializada em repartições, pessoal e recursos) dispensada aos costumes e produções culturais, para além da propaganda anticomunista de preservação da família como fortaleza contra a penetração do inimigo vermelho? Em síntese, quais os fundamentos políticos dessa atividade censória para além do discurso ideológico?

Entendemos a preocupação com esse campo, aparentemente alheio aos interesses do regime, da perspectiva da necessidade de produção de consenso para a rotinização da dominação, o recurso a uma escora ideológica que ofereça a sua justificação para a consolidação de apoio. O discurso moralista, que se adequa a um conservadorismo difuso, forjado na influência cristã histórica, oferece pontos de convergência para criação de uma identidade de grupo, e deste com o regime. O recurso ao discurso conservador se deve, em parte, porque cumpre papel como expressão ideológica de setores deslocados com a modernização acelerada a partir de meados dos anos 50. Por essa “derrota” relativa, estes grupos têm interesse em se levantar contra os que se identificam com a modernização, simbolizados no governo de João Goulart. É uma derrota relativa, considerando que tais grupos são efetivamente incorporados aos setores modernos do capital monopolista e financeiro que articulam o golpe e garantem o regime ditatorial que se segue.  A atenção a esse campo temático opera como deslocamento do conflito, escamoteando os mecanismos de dominação resultantes da luta de classes e desviando o foco para batalhas ideológicas de outra natureza.[23]

3. Estratégias de reprodução autônoma do consenso entre ordem excludente e excluídos da ordem.

Necessária à manutenção da organização social excludente, a estabilidade da forma autoritária reclama o consenso de parte dos excluídos. Sua possibilidade é franqueada por uma propriedade da política e de uma lição de esclarecimento. Aprendemos com as filosofias da história do século XVIII, que a descrição do que nos é contemporâneo pode ser feita mediante uma seleção de eventos históricos. Esta pode ser operada segundo a acentuação de determinados traços do real que sejam culturalmente significativos para a leitura do presente à luz de um sentido dado do passado. Por seu turno, esta reunião arbitrada de relações e acontecimentos da vida histórica forma um universo não contraditório de relações que não são senão pensadas, mas que autorizam uma espécie de antecipação, uma maneira determinada de interesse no passado, a partir de uma construção ideal do presente, a qual franqueou uma possibilidade de pensar o futuro imprimindo-lhe um sentido. A essa qualidade de operação do esclarecimento se soma sem dificuldades a atividade política, cuja variedade de experiências guarda pelo menos uma característica constante: sua afinidade com a opacidade.

Em princípio, parece remota a possibilidade de que encontre estabilidade social e política uma ordem social impopular e governada por uma forma autoritária de exercício do poder político, cuja razão é a promoção e a manutenção da exclusão em benefício de uma elite. Ninguém gosta de ser excluído. Não é razoável supor que processos de exclusão se darão sem resistência, ou que esta não será conflitiva, ou não produzirá instabilidade. A esta possibilidade disruptiva, é preciso somar a presença de elites interessadas em formas de garantir acumulação, que historicamente se movimentam segundo processos fiadores das oportunidades de ampliação da acumulação. Estas vêm acompanhadas do recrudescimento dos efeitos da exclusão social e política, e impõem o aprofundamento das condições adversas postas pela desigualdade que as elites produzem, e da qual dependem. A consideração de que a massa de excluídos o suportaria mansamente, só pode ser tratada como discurso ideológico para camuflagem dos resultados geradores de contenda. Elites econômicas jamais cessaram de temer o levante dos excluídos, cuja violência sempre foram capazes de antecipar – possivelmente em atenção à condição brutalizada que foram responsáveis por lhes impor. A produção de estabilidade apresenta duas possibilidades: pelo arrefecimento das causas do conflito, ou pelo controle sobre os agentes do conflito. A primeira encontra nos argumentos anteriores dois obstáculos algo intransponíveis, a saber, de que a desigualdade é condição para a acumulação e que esta tende à ampliação. A segunda possibilidade é limitada na sua expressão violenta, porque de baixa durabilidade e de custos que se elevam com o tempo. É uma operação com ampla margem de manobra em sua expressão ideológica, porque em razão de operar nesse campo dado à opacidade que é a política, é herdeira privilegiada daquela lição do esclarecimento mencionada. Trata-se, portanto, de assegurar o direcionamento das formas de articulação coletiva, que os excluídos da decisão política possam desenvolver em busca de defesa de seus interesses.

3.1. Controle sobre a vida associativa

Ter consciência das relações sociais a que está submetida dota uma classe de força dinâmica para sua transformação. Quando compreende as reais condições a que está subordinada, a classe explorada começa a elaborar as estratégias para modificá-la. Para que a classe trabalhadora atue politicamente, depende da possibilidade de enxergar o sistema social e de seu lugar nesse mesmo sistema, para assim identificar seus interesses específicos. Em defesa de sua parcialidade, a classe explorada transcende os limites de sua posição em uma perspectiva mais ampla para transformar essa condição estrutural de exploração, e ao realizar esse empreendimento, coloca em risco os interesses que se beneficiam da estrutura que garante os interesses exploradores. É por esse papel, potencialmente disruptivo, da tomada de consciência, que os espaços onde ela pode ser elaborada são vistos como ameaça permanente pelas classes interessadas na manutenção da ordem. Os canais de formação da consciência precisam ser obstruídos, pois é essa a única forma de os subalternos chegarem a desenvolver clareza sobre seu lugar na estrutura social. Não há um processo mecânico de formulação ideológica da experiência sensível, ou da vida submetida a relações sociais assimétricas em uma sociedade de classes. Essa experiência social precisa ser adequadamente tratada, elaborada e apresentada, em sua totalidade e nas especificidades que tangem à classe trabalhadora, para que dessa forma ideologicamente elaborada constitua parâmetros para a formação de uma consciência de classe, fundamente uma posição política, esclareça quais são os seus interesses e seus antagonistas, propiciando a visão de um programa político, o agente que será seu portador e o processo político de sua execução. O que defender, contra quem lutar, de que forma lutar, como vencer, que tarefas cumprir, são passos percorridos no trajeto que vai da tomada de consciência à emancipação.

A consciência que se desenvolve em uma sociedade de classes produtora de mercadorias é marcada pelas relações que lhe são características. Uma consciência, portanto, alienada, que formata os agentes sociais para a sua reprodução. A quebra desse ciclo depende de um gesto inicial, que o polo dominado, em seu interesse por autonomia, promova sua própria emancipação; um projeto que fica obstado pela própria lógica de reprodução de uma consciência alienada. A identificação de seus interesses depende de um agente externo, que proporcione o vislumbre da totalidade social e do papel de subalterno que desempenha em uma ordem social baseada em sua atividade criadora, embora isso não esteja dado de forma imediata[24]. Tal agente cumpre o papel de elaboração ideológica que sintetiza a totalidade social e destaca o papel da classe na ordem que se pretende superar.

Uma ferramenta histórica à disposição da classe trabalhadora, para organizar sua atividade política e articular suas demandas, é o movimento sindical. É fenômeno constitutivo do movimento operário desde seus primórdios no cenário europeu, no contexto do reconhecimento de uma situação compartilhada dos efeitos nocivos da industrialização, para a classe trabalhadora. Vivendo nos mesmos bairros sem estrutura, trabalhando nas mesmas fábricas insalubres, submetidos às mesmas jornadas extenuantes e remunerados igualmente de forma insuficiente, os trabalhadores puderam vislumbrar que suas tragédias não eram pessoais, mas coletivas; a conclusão foi que suas necessidades eram também coletivas, e igualmente coletivo deveria ser seu instrumento de reivindicação. Na Inglaterra pioneira da revolução industrial, essa foi a trajetória das revoltas individuais à conformação de um movimento sindical do proletariado na primeira metade do século XIX. À luz do que estamos tratando nesse artigo, esse itinerário ilustra uma das possibilidades elaboradas para forçar a entrada, na disputa política, de uma classe cuja participação é obstada e os interesses são suprimidos.

O movimento operário brasileiro emerge de forma autônoma na virada do século XIX pro XX, a par da industrialização em germe, e dá sua contribuição para a turbulência política das primeiras décadas da República. Uma ordem social que se diferenciava com a incipiente modernização, gestava novas frações de classe que se deparavam com um sistema político refratário à incorporação de suas demandas. A um patronato acostumado a lidar com a força de trabalho escravizada, o nascente operariado contrapunha a organização sindical, e tinha como resposta a repressão policial, perseguição, prisão e eventual deportação de lideranças. A “legalização da classe trabalhadora” e o reconhecimento do status de cidadão do operário se dará com a versão brasileira de corporativismo do período Vargas. Concomitante à outorga de direitos trabalhistas e a carteira de trabalho como documento de reconhecimento oficial, é desmantelada a estrutura sindical autônoma e a imposição de uma estrutura oficial de sindicatos atrelados ao Ministério do Trabalho. Um movimento institucional de domesticação do instrumento de classe, através da incorporação à estrutura institucional e cooptação de lideranças.

Na redemocratização pós-Vargas, o sindicalismo permanece oficialmente atrelado ao Estado, mas logrou vivenciar uma autonomia relativa. O Partido Comunista, mesmo sendo cassado e tornado ilegal a partir de 1947, torna-se a corrente hegemônica. Militantes do PCB dirigiam uma grande quantidade de sindicatos, se articulando através do Comando Geral do Trabalhadores, um instrumento extra-oficial que teve a existência tolerada nos anos da política de conciliação antes do golpe. Em um período em que a linha política dos comunistas indicava apoio ao projeto nacional reformista[25], os dirigentes de sindicatos e do CGT se mantiveram próximos dos governos desenvolvimentistas, chegando ao auge no último governo antes do colapso da aliança de classes. A intensa atividade política do CGT marcou a posição do sindicalismo no apoio à posse de João Goulart, em defesa da Revolução Cubana e na luta pelas Reformas de Base. Este último ponto pode ser entendido como uma síntese do aprofundamento do projeto reformista, e que iria despertar a reação das forças articuladoras do golpe de Estado.[26]

Se a finalidade do golpe era garantir as margens de acumulação, que tinha como elemento estruturante a manutenção das baixas taxas de remuneração da força de trabalho, um objetivo político central era impedir as Reformas de Base e reverter políticas em execução com o mesmo sentido. Ao mesmo tempo, entre as táticas fundamentais de ação, seria necessário neutralizar os mecanismos disponíveis à classe trabalhadora para defender coletivamente seus interesses. Na perspectiva do regime, era inescapável atacar o sindicalismo brasileiro e extinguir essa fonte de resistência organizada da classe trabalhadora.  A ditadura civil-militar se voltou contra o movimento sindical e suas lideranças desde seu primeiro momento. As entidades extra-oficiais como CGT e pactos intersindicais foram suprimidas, lideranças depostas, sindicatos sofreram intervenção e as eleições de novas diretorias passaram ao controle do Ministério do Trabalho. Com uma lista de trabalhadores considerados inelegíveis, as novas lideranças eram indicadas pelo Ministério do Trabalho, em eleições acompanhadas pela polícia. Em junho de 1964 é promulgada a lei 4.330, que definia critérios extremamente rigorosos para que uma greve fosse considerada legal. Na prática, revogava o direito de greve. Foram medidas preparatórias para as iniciativas que interferiam concretamente na remuneração da força de trabalho: o decreto 54.018 estabeleceu as bases da lei de salário, a extinção da indenização por demissão sem justa causa e o fim da estabilidade no emprego após dez anos de contrato.[27] Em conformidade com os propósitos do golpe e da ditadura instaurada, em 1974 a produtividade industrial brasileira havia subido 56%, ao mesmo tempo em que o salário-mínimo real havia decrescido 55%.[28]

Os hábitos de associação, organização e participação, engendrados por setores que emergem com o adensamento da vida urbana e a diversificação da estrutura social em contexto democrático, seriam focos de contestação à orientação excludente do regime. A ditadura poderia perder suas bases mínimas de sustentação e se tornaria inviável, pois os custos para a estabilidade se tornariam excessivos e permanentes. Para consolidar a estabilidade da rotina de dominação, torna-se necessário forjar a hegemonia do regime, controlando a vida associativa e evitando o florescimento de consciência autônoma e organizada. Recuperando as características do processo de formação da hegemonia, por mais repressivo que um regime político se apresente, não pode prescindir do elemento de consenso, capaz de apresentar em termos generalistas o recurso ao controle violento. O tratamento que a recém-instaurada ditadura dispensa aos sindicatos é emblemático da dimensão coercitiva, como medida de neutralização de possíveis fontes de consenso dissidente no processo de consolidação da hegemonia. Buscaremos fundamentar nossa hipótese para a relação entre autoritarismo e conservadorismo moral no elemento de consenso, que mobiliza a combinação dos instrumentos de censura e de propaganda como recursos.

3.2. Conservadorismo moral como deslocamento do conflito

O conservadorismo a que nos referimos é a defesa de posições tradicionalistas, derivadas de certas considerações morais ahistóricas. Para o caso brasileiro, tais posições têm raízes no cristianismo católico, a fonte de referência ideológica hegemônica praticamente monopolista durante nosso processo de formação nacional nos períodos colonial e imperial. Optamos por esse qualificativo de “conservadorismo moral” para marcar a diferença quanto ao conservadorismo filosófico, referente à postura em relação à mudança social e ao tempo histórico. Ainda que guardem alguma relação, não se confundem. Retomando o problema: assumindo que o regime autoritário tem um propósito concreto, qual seja, garantir o padrão elitista e excludente da nossa modernização, assegurando as margens de acumulação, como se compreende a atenção dispensada às questões morais?

Enunciamos anteriormente que pensamos em termos de preocupação com a estabilidade, portanto, busca por formação de consenso, ainda que localizado, socialmente restrito. O regime que promove a acumulação é politicamente excludente, porque pretende preservar a exclusão econômica. A não ser que os excluídos sejam incorporados em alguma outra esfera, sua adesão ao regime estará perdida, e as probabilidades de manutenção da estabilidade, baixas. O regime autoritário buscou forjar suas bases de apoio recrutando clientela em meio ao conservadorismo popular difuso, lapidado por um cristianismo popular mobilizado de forma oportunista. Incorporando pela via moral, os setores populares excluídos política e economicamente dos resultados, o regime exporta o conflito para fora do campo dos interesses materiais. A partir dessa necessidade política de produção de consenso, o conservadorismo moral se configura como estratégia de deslocamento do problema, criando dessa forma as bases para o apoio social a um regime concentrador, excludente e violentamente arbitrário, incluindo as classes exploradas. 

À medida em que o conflito que é inerente à sociedade de classes precisa ser mantido fora do alcance da compreensão dos explorados, a lógica política demanda sua substituição por outra dinâmica conflitiva, visando a conformação de outras definições do “outro”.  O deslocamento do conflito cumpre o papel de criar a identidade e apontar o inimigo a ser combatido, sem que dessa dinâmica possam emergir ameaças à estrutura que se busca preservar. A neutralização dos espaços de formação da consciência é complementada por esse outro passo, que reproduz a dinâmica com outro foco. A defesa da família, da moral e dos bons costumes cria uma identidade forjada a partir de referencias ideológicas tradicionalistas, sem qualquer referência à luta de classes, e estabelece um “inimigo da nação” que demarca a fronteira entre “nós” e “eles”.[29] No zênite desse processo, o inimigo corruptor está se valendo de estratégia insidiosa para fazer ruir a nacionalidade corrompendo a família, mas a trajetória até sua identificação passa ao largo da sua atividade política como articulador da classe trabalhadora. A categoria “classe” sequer é mobilizada, substituída por outras que dispensam o recurso às divisões e conflitos, reforçando o sentimento de unidade e bem comum com as ideias de família, povo e nação. O comunista e o sindicalista, ao fim e ao cabo, não dizem nada sobre exploração, mais-valor e emancipação; são na verdade inimigos da família e da fé cristã manipulando artistas e intelectuais para invadir o país. O conflito estrutural de uma sociedade dividida em classes desaparece, e é substituído por outra apresentação do “nós x eles” que movimenta a dinâmica política.

Para os “peões” da repressão e da censura, os agentes policiais e censores, e principalmente, os colaboradores na sociedade civil, sua tarefa estava de fato impedindo a instauração do comunismo no país. Acreditavam que sindicalistas e camponeses fariam a revolução, como no Brasil contemporâneo a base popular de apoio ao bolsonarismo acredita na propaganda ideológica que alerta contra o inimigo comunista. A correspondência entre os grupos de períodos históricos distintos avança em seu conteúdo, pois os indícios do perigo vermelho são tão distantes do programa político comunista hoje quanto nos anos 60/70, em ambos os casos, recorrendo a elementos de um conservadorismo moral que desloca o conflito, ao remover os temas da luta de classe. A propaganda anticomunista da Guerra Fria mantem sua estrutura renovando os símbolos que mobiliza, preservando o núcleo moralista de defesa da família, da religião cristã e da Pátria que se ergue sobre esses alicerces. No plano institucional, os operadores da conexão entre o governo e a população eram os deputados da ARENA. São estes que respondem mais de perto às bases conservadoras, das quais obtêm a legitimidade política ecoando o discurso moralista. Atuam como coletores das expectativas moralizantes que suas bases eleitorais exprimem, e as reverberam em discursos no plenário da Câmara, tanto quanto no apoio a medidas censórias e repressivas. A estrutura oficial da censura, potencializada para o controle ideológico, atende a essa demanda política.

Coerção, propaganda e censura constituem, portanto, momentos distintos do trabalho de construção da hegemonia. O movimento pendular, de um pólo a outro, depende de avaliação estratégica da conjuntura, com a justificativa pública ficando a cargo da propaganda. Para os dirigentes e ideólogos do regime, a funcionalidade desses três aspectos deriva de uma leitura sobre o despreparo e a incapacidade da sociedade civil, demandando a ação tutelar do Estado que é dirigido pela reserva moral da nação. Como já referimos anteriormente, o tratamento da massa como incapaz para decidir sobre seus próprios interesses é um elemento historicamente constitutivo do elitismo filosófico, e esteve presente na leitura sobre o “povo” que orientou o pensamento autoritário e os regimes que se serviram de suas interpretações. Em diversos dos pareceres técnicos elaborados pelos censores, transparece a ideia da multidão criança[30], replicando um padrão histórico de justificativas da censura, seja na França pré-revolucionária, na Índia da dominação britânica ou no Brasil da ditadura civil-militar[31]·. É uma visão autocrática e excludente que também informa a justificativa para a repressão, constituindo a legitimidade apresentada para o próprio golpe de Estado de 1° de abril, assim como os motivos para que a abertura fosse “lenta, gradual e segura”, ou o veto às Diretas. Em cada uma dessas situações históricas, o tema da multidão criança é reposto, como elemento ideológico que acompanha o bonapartismo soft do liberalismo em geral[32], e a autocracia burguesa no Brasil em particular, mobilizado como fonte de legitimidade para o controle autoritário em democracias formais e ditaduras abertas.

 O povo moralmente frágil não dispõe da racionalidade requerida para realizar juízos maduros e seguros, tanto nos temas de costumes, como nas decisões políticas. Precisa ser preservado da exposição a produções culturais que deformariam seu caráter, na mesma medida em que não deve ser instado a tomar decisões políticas em que não dispõe dos elementos necessários para um posicionamento correto. No papel de formulador ideológico, confluem os dois tipos de censura: a de caráter político, por óbvio, obstrui a expressão divergente; a de fundo moral desloca o conflito e atende demandas da base de apoio ao regime, formado ideologicamente por um cristianismo popular conservador.

Conclusão técnica ou conclusão-justificativa:

Diante do reconhecimento de que a estratégia de deslocamento do conflito, não raro se vale da imprecisão semântica, reconhecemos como insuficiente dizer que era autoritário o regime que se inaugurou em 1964. É necessário precisar as suas operações. A ditadura tem uma vasta bibliografia, e seus ecos estão presentes ainda hoje, em razão da profundidade e extensão de sua intervenção no desenvolvimento histórico brasileiro subsequente, e dos entulhos que deixou e nunca foram recolhidos. O golpe, tanto quanto o regime violento e autoritário que se seguiu pelos 21 anos seguintes, se configuram como a solução encontrada por frações dominantes, para estancar o ascenso organizativo das massas populares, sua articulação em sindicatos e partidos, e a consequente luta política que se adensava. Essa era uma tarefa histórica inescapável para tais setores no Brasil, associados minoritários e dependentes do capital estrangeiro, para a incorporação ao circuito internacional do capitalismo monopolista e financeiro em sua nova fase, em bases que garantissem aos representantes locais a margem de acumulação possível a uma burguesia da periferia imperializada. Nesses termos, ainda que a ditadura civil-militar pague tributo e carregue o atraso consigo, é um regime que atende principalmente aos setores mais modernos, em movimento tático para realização de sua estratégia autocrática de modernização do conjunto da economia brasileira.

Se é da própria caracterização de um regime autoritário, que ele se valha de obstrução da atividade política autônoma e recorra a instrumentos violentos para a garantia de uma ordem fechada, não há registro na história contemporânea de qualquer manifestação desse fenômeno que tenha prescindido do recurso ao trabalho ideológico para a conformação da hegemonia. Mesmo os regimes exemplares da brutalidade no século XX, como foram as variantes de fascismo, empenhavam grande esforço na combinação de censura e propaganda para a formação de consenso. A ditadura civil-militar inaugurada em 1° de abril de 64 não desviou do padrão, atuando permanentemente na combinação de censura e propaganda, inclusive nos períodos de “distensão” e “abertura”, que caracterizaram toda a segunda década do regime.

No papel de instrumento de controle ideológico, a censura se configura como área de transição entre os dois pólos de conformação da hegemonia. Não recorre à violência aberta da coerção repressiva, por outro lado também não é o confronto de ideias característico da formação de consenso ou propaganda. Opera um amálgama de elementos presentes em ambos, e através de restrições e ameaça de violência, estabelece parâmetros mutilados para a formação de consensos pré-determinados. A propaganda do período ditatorial recorreu a elementos da obra de Gilberto Freyre para a caracterização de um caráter nacional festivo, emotivo e avesso à pompa, como estratégia deliberada para escapar a comparações com o DIP varguista de produção ostensivamente política. Buscava consolidar a imagem das Forças Armadas como condutor moral, com uma mensagem que fixava um governo tutor e guia da formação nacional[33], o que apontava uma vez mais para o que chamamos de deslocamento do conflito. A ditadura criou um padrão de propaganda que se apresentava como “despolitizada” como tática de disseminação, erguida a partir da referida concepção do que seria a brasilidade, calcada em valores extraídos de um imaginário assentado em produção ideológica que antecede a própria existência do Brasil como nação[34]. É esse o mesmo substrato do ideário que o conservadorismo difuso socialmente tem a pretensão de proteger, contra as ameaças de corrosão, por ser a legítima expressão de “nossas tradições”.

Nesse sentido podemos recuperar a ideia esboçada a respeito da hegemonia operando nos polos do consenso e da coerção. A partir de 1974, a combinação de fatores externos e internos leva à estagnação do modelo econômico implementado pela ditadura para integrar a economia brasileira ao circuito internacional do capital, e garantir as margens de acumulação que tinham sido comprometidas com o esgotamento do modelo de substituição de importações. O impacto político do fim desse ciclo é a erosão do apoio de classes médias e burguesia ao regime militar, como se pode verificar com o adensamento das manifestações críticas, os resultados eleitorais nesse mesmo ano, e do ponto de vista do grande capital, a emergência da primeira mobilização de caráter neoliberal, capitaneada pelo industrial Eugenio Gudin. É uma questão analítica de relevo, a ser melhor desenvolvida, buscar compreender por que motivos os setores dominantes optam pela “distensão”, em lugar de recrudescer o controle violento, como foi o caso em 1968. Nos termos em que estamos tratando, a estratégia de manutenção da hegemonia, nesse momento histórico, recorre ao polo do consenso, e a chave interpretativa dessa escolha passa pela dissidência das frações burguesas, cuja expressão mais clara é a “Campanha Pela Desestatização”. Os representantes do capital monopolista e financeiro deixam de reconhecer no governo militar a efetivação de seu projeto econômico, e se em 1969 fornecem recursos para a Operação Bandeirantes, a partir de 1974 começam a elaborar o caminho seguro para a “Transição”. Certamente não se trata de uma reorientação homogênea, e persistem setores que resistem à orientação do governo Geisel no sentido da distensão. A demissão do general Sylvio Frota do Ministério do Exército em 1977 simboliza a derrota da “linha dura”, ampliando espaço para a política da “Abertura” como ficará conhecida a partir do governo de João Baptista Figueiredo, o último do ciclo militar. Essa opção política demanda um trabalho ideológico mais intensivo, ainda que não prescinda completamente do elemento repressivo. Se a estratégia de renovação da autocracia burguesa se desloca do controle ostensivamente repressivo para a institucionalidade democrática[35], é preciso garantir o controle da formação da hegemonia no campo do consenso.

Para forjar o consenso favorável, a obstrução dos espaços autônomos de elaboração ideológica é buscada combinando censura e propaganda. O movimento pendular de alternância entre os pólos da hegemonia, a partir do fechamento do regime em 1968, até o momento da “Abertura”, parece seguir um planejamento estratégico militar. O primeiro momento foi de coerção intensificada, para o aniquilamento dos movimentos armados, perseguindo, torturando e eliminando fisicamente os militantes da guerrilha urbana e em seguida o foco rural. Posteriormente a mesma repressão severa foi direcionada ao histórico operador político da classe trabalhadora brasileira, na adequada forma que Milton Pinheiro se refere ao Partido Comunista Brasileiro[36].  O Partido que mesmo tendo seguido uma linha de “política de massas”, contrária à luta armada, teve seus militantes perseguidos e torturados, com a execução de um terço de seu Comitê Central[37]. Cumprida a tarefa de eliminação da resistência política organizada, o regime volta a centrar esforços no controle ideológico quase que concomitante ao início do processo de “distensão”, intensificando a censura a partir de 1974.

A avaliação pormenorizada dos motivos e caminhos trilhados pela estratégia da “Abertura” extrapolam os propósitos específicos deste trabalho, apesar de manterem relação de proximidade; contudo, seguindo as indicações de Florestan Fernandes, trata-se de garantir a continuidade da autocracia por outras vias, controlando sua formatação para manter o conteúdo de classe e o caráter excludente, prescindindo do aparato repressivo característico da ditadura aberta[38]. São indicativos desse movimento de atenção e tutela dos caminhos a serem seguidos para a “redemocratização”, tanto o controle ideológico que aqui nos ocupa, quanto medidas de intervenção na institucionalidade, como o “Pacote de Abril”, o retorno ao multipartidarismo e o veto à realização de eleições diretas.

O Conservadorismo moral, associado à propaganda do otimismo renovado[39], forjam o discurso ideológico de referência para a base social da ditadura. Cria as justificativas, atende aos anseios tradicionalistas, oferece a identidade de grupo, elimina do horizonte a luta de classes do conflito distributivo que a censura e a repressão mantêm submersa. Uma situação que permite paralelos robustos com o conservadorismo moral do neofascismo dos dias de hoje, e não é fortuito que vários dos elementos do anticomunismo envelhecido de meio século tenham sido revigorados na campanha presidencial de 2018 e se mantenham na intervenção pública do presidente Jair Bolsonaro, seus “ideólogos” e apoiadores[40].

A tese que buscamos defender nesse artigo trata a censura como um campo transitório entre consenso e coerção, carregando elementos de ambos, cumprindo função tática nas estratégias de consolidação da hegemonia. Dota o aparato institucional de mecanismos para a intervenção direta nos instrumentos de conformação ideológica da sociedade civil, interferindo diretamente na percepção da dinâmica social, direcionando a opinião e o apoio ao regime. A efetividade de tal interferência, em grande medida, é garantida pelo terror instaurado por outra estrutura institucional do regime, o aparato repressivo, em uma atuação combinada que nos leva a essa caracterização como campo transitório. Nesse sentido, o papel da censura moral, que aqui buscamos avaliar, é cuidar de arregimentar apoio a um regime autocrático excludente, que precisa se rotinizar para garantir estabilidade. Forjando uma identidade, que não carrega em seus traços distintivos qualquer menção ao conflito de classes que está na base da sociedade, o recurso ao conservadorismo moral contribui para a consolidação de uma base de apoio, ao mesmo tempo em que o inimigo do regime é caracterizado sem qualquer referência às razões materiais de sua oposição política. Como caso particular da forma geral do deslocamento do conflito, em formas autocráticas do exercício do poder político, a relação estudada oferece uma chave de interpretação para o estado atual do potencial democrático da sociedade brasileira. E abre a reflexão para a busca por caminhos alternativos.

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Leonardo Silva Andrada
Paula Campos Pimenta Velloso

Bibliografia

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[1] A imprecisão abre o conceito para apropriações interessadas, permitindo sua instrumentalização política mediante a caracterização negativa de um adversário teórico ou ideológico – torna-se autoritário aquele que não se pauta pelos preceitos estabelecidos como corretos. Buscamos esclarecer as características que tomamos por autoritárias, para evitar que a ausência de conteúdo abra espaço para esse uso. FERNANDES, 2019.

[2] Hobsbawn, Naçoes e Nacionalismo

[3] Tratando do fenômeno político que sintetiza no conceito de hegemonia, Gramsci entende que se refere a uma combinação de consenso e coerção. Ao analisar o complexo IPES-IBAD, Dreifuss interpreta o golpe como reforço do momento de consenso, operado a partir da intensa atividade ideológica cujo núcleo irradiador eram esses dois think tanks. Jacob Gorender discorda e analisa em termos de predomínio do polo coercitivo, considerando o inegável recurso ao gesto de força do próprio golpe, somado aos processos subsequentes de perseguição e intervenção na vida associativa dos trabalhadores. Optamos por uma via interpretativa que incorpora as duas análises, pensando no processo histórico de mais de duas décadas, entre o golpe e o fim dos governos militares, como um pêndulo que que se movimenta entre um polo e outro. É relevante deixar claro que mesmo nos momentos de intensificação de atuação em um dos polos, não é eliminada a atuação no outro. DREIFUSS, 1981; GORENDER, 2014; MORAES, 2011. O fenômeno que buscamos tratar aqui é uma expressão clara do esforço por consenso, mas é fartamente praticado no período de auge do predomínio maior da coerção, que foi o intervalo 1968-1974.

[4] MATOS, Laura – “Herói Mutilado”. 2019, Cia. das Letras.

[5] Idem. A trajetória da peça segue tortuosa por longo período. Dez anos após a tentativa de encenação, em 1974, o autor faz profundas alterações nos personagens e no enquadramento histórico, para sua transformação em telenovela ser transmitida pela Rede Globo em horário nobre, com elenco de peso e destaque na programação. Dez capítulos já haviam sido gravados, com custo de superprodução, quando a censura proíbe sua exibição no dia programado para a estreia, sob o título de Roque Santeiro. A novela só iria ao ar dez anos depois, no último ano da ditadura.

[6] ADUSP, 2018.

[7] PONTE PRETA, 1966.

[8] LAGO, 1964. E idem, 2001.

[9] O histórico da censura ao teatro no período colonial e imperial foi retirado de KHEDÉ, 1981.

[10] SILVA, 2010.

[11] A raiz da contradição entre discurso universalista e preservação de prerrogativas particularistas pode ser vista em MCPHERSON, 1979; sobre a trajetória histórica das adaptações do liberalismo, tanto no discurso ideológico quanto em suas manifestações históricas concretas, dois trabalhos de Losurdo oferecem uma analise muito bem informada: LOSURDO, 2004 e Idem, 2011.

[12] RIBEIRO DA SILVA, 2008.

[13] idem

[14]  O crítico e professor de teatro da UniRio, Yan Michalski, em depoimento a Sonia Khéde, oferece uma ilustração do que estamos discutindo aqui. Ao responder uma pergunta sobre a arbitrariedade da censura, que resultava de interpretação da lei por conveniência, declara: “a feroz ofensiva contra o teatro, antes concentrada na temática política, passou a dirigir-se com igual ou maior ferocidade contra as realizações consideradas moralmente não ortodoxas. Com o agravante que nesse terreno, mais do que no outro, as autoridades contavam com a solidariedade ativa de amplos setores conservadores da opinião pública; e de que organizações em tese clandestinas de extrema direita começaram também a ocupar-se, a seu modo, do assunto. Delações individuais passaram a ser suficientes para provocar a suspensão de produções anteriormente autorizadas”.  KHEDÉ, 1981.

[15] A dinâmica econômica do capitalismo brasileiro e sua intrínseca necessidade de superexploração para a manutenção de altas taxas pode ser vista na análise de OLVEIRA, 2015; a contrapartida política dessa dinâmica, que compele a burguesia brasileira ao recurso permanente da autocracia é bem avaliada por FERNANDES, 1976, e MAZZEO, 2015.

[16] Nelson Rodrigues, jornalista e escritor declaradamente reacionário, é autor da peça teatral com o mais longo processo na divisão de Censura do estado de São Paulo; Rubem Fonseca, escritor simpático ao regime ditatorial, cujo primeiro livro foi lançado por um editor do IPES, teve dois livros censurados durante o AI-5. A Rede Globo, braço televisivo do grupo de comunicação Globo, nasceu da consonância de interesses entre o empresário e jornalista Roberto Marinho, e o regime militar, que via na criação de uma rede de televisão cobrindo o território nacional, um poderoso instrumento de propaganda ideológica. Isso não impediu que uma superprodução como Roque Santeiro tivesse sua transmissão vetada. KHEDÉ, 1981; REIMÃO, 2011; MATOS, 2019.

[17] Como aponta Francisco de Oliveira, no momento de consolidação do novo padrão político que emerge em 1930 não podia prescindir das divisas da exportação agrícola, única fonte de recursos de vulto para o Estado. Com o avanço da urbanização no período subsequente, o capital industrial dependia das relações prevalecentes na economia agrária para a baixa remuneração do trabalho que caracteriza seu padrão de acumulação. OLIVEIRA, 2003.

[18] SINGER, 1977.

[19] GORENDER, 2014.

[20] MORAES, 2011.

[21] OLIVEIRA, 2014.

[22] SINGER, 2014.

[23] LOSURDO, 2004.

[24] LENIN, 1979.

[25] PINHEIRO, 2015.

[26] TOLEDO, 1982; MORAES, 2011; GORENDER, 2014.

[27] NAGASAVA, 2018.

[28] SINGER, 1977.

[29] LOSURDO, 2004.

[30] SIMÕES, 1999.

[31] DARNTON, 2016.

[32] LOSURDO, 2004.

[33] FICO, 1997.

[34] Idem.

[35] FERNANDES, 1982.

[36] PINHEIRO, 2015.

[37] Como aponta Pinheiro, “a Operação Radar foi um instrumento dos órgãos de repressão do Exército para destruir a imprensa comunista e as direções nacional e estaduais do PCB.A operação, que estava parada foi retomada no final de 1973 pelo DOI de São Paulo em colaboração com outros DOI e com o CIE”. PINHEIRO, 2021.

[38] FERNANDES, 1982.

[39] FICO, 1997.

[40] LACERDA, 2019.

Por uma possibilidade trágica da amizade – Número 177 – 06/2021 [29-32]

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“O amor é uma paixão agradável e o ressentimento, desagradável: e, por isso, não desejamos tanto que nossos amigos aceitem nossa amizade mas que partilhem de nossos ressentimentos.” (Teoria dos Sentimentos Morais. Smith)

  1. Em seu “Teoria sobre os sentimentos morais” a Simpatia funciona como a mola propulsora do argumento Smithiano. Para além da polissemia do conceito – Simpatia -, delineia-se um significado muito específico, que, recusando a noção de um sentimento originado de determinada forma de sociabilidade humana, toma-a como caraterística própria da natureza dos homens. Ora, concentremo-nos por um instante em abstrair de todas as possibilidades de desdobramentos desse argumento para ressaltar um aspecto de singular interesse, a saber, o conceito de amizade.
  2. No excerto aqui selecionado da “Teoria”, consideramos apresentar elementos suficientes do tipo de amizade Smithiana, qual seja, uma relação que encontra suas bases no ressentimento mútuo. Nesse sentido, uma forma de relação – a amizade – de importância vital para a sociabilidade humana, ocorre antes por ressentimento do que por um sentimento de alegria e/ou vitalidade compartilhada. Para seguir uma intuição Nietzscheana e Laboetiana, propomo-nos investigar outra possibilidade para tal relação, a saber, uma amizade que se estabeleça pelo ímpeto da criação, ou, fora de amarras morais. Tomando de empréstimo termos do filósofo alemão, o que denominaremos como amizade trágica ou amizade extra-moral. Para tal, escolhemos uma peça ficcional, a série Hannibal, e a relação que se estabelece entre seus dois personagens principais, Hannibal Lecter e Will Graham.
  3. Hannibal tornou-se conhecido através das telas de cinema, como um psiquiatra canibal, encarnando em si o cume da maldade humana. Nesse sentido, e, que de certa forma permanece na série, apresenta-se um personagem que parece impossibilitado de estabelecer qualquer vínculo de sociabilidade que não se funde em bases da crueldade. Onde há tamanha maldade, portanto, não poderia existir amizade (no sentido majoritariamente utilizado). Ora, observemos então os índices do relacionamento que se desenvolve entre os dois personagens citados. Realçam-se aspectos nietzscheanos no personagem Hannibal, que, para além de todas as obviedades, é preciso que se diga, não há qualquer tipo de apologia ao canibalismo nos textos do filósofo. Se quer perceber uma experimentação estética, que recusa a moral ressentida, ou para melhor dizer, que se mobiliza ativamente em formas de conjuração da moral do escravo. 
  4. De um momento preciso, a primeira conversa entre os dois, aparece no horizonte a possibilidade de uma amizade. Hannibal, personagem diagnosticado como psicopata, tem a possibilidade de qualquer vínculo de empatia ou simpatia negada, mas, sobretudo, essa impossibilidade parte de uma postura ativa da própria persona. Nessa primeira conversa, o interesse de Hannibal desperta quando Will diz sobre a atitude de uma jornalista sensacionalista “Mau gosto”, ao que Hannibal retruca “Você tem problema com gosto?” Ora, parece-nos que é neste exato instante que surge a centelha de uma amizade por vir. O gosto, nesse sentido, não encontra suas bases na moral, portanto, muito menos no ideal de belo por ele estabelecido. Antes de tudo ele serve para denunciar a décadence, o mau gosto e mal cheiro do homem da moral. Tomemos então esse tipo de gosto, como marcador de vitalidade, extra-moral.
  5. Hannibal em conversa com sua psiquiatra diz sobre as razões da impossibilidade de formar vínculo com o outro, reside no fato de que para tornar-se amigo, é preciso desnudar-se, mostrar sua verdadeira face, ou seja, para isso é necessário que alguém mereça acessar o mais obscuro de seu ser. Assim, para confirmar sua amizade com Will, ele submete-o a um sem número de testes, que são, em última instância, para provar seu valor, a sua força. Nessas experiências, existe a chance de Will não sobreviver. Isso não quer dizer que Hannibal deseja sua morte, pelo contrário, ele quer fazer Will experimentar uma transmutação, para que assim, ele seja capaz de apresentar-lhe sua perspectiva própria, sua visão de mundo e da existência. 
  6. Enquanto na amizade moral (simpática) o vínculo se dá pelo ressentimento, no tipo que aqui denominamos trágica, a possibilidade da amizade acontece pela experimentação da vitalidade. Isso implica perceber toda uma nova experiência da relação, como, por exemplo, na amizade La Boétie e Montaigne. Se é amigo enquanto se cria, enquanto experimenta-se, não torna-se amigo para compartilhar tristezas, ressentimentos, mas para fazer fluir o pensamento e a vida.
  7. Nietzsche diz em seu canto:

“[…]Ó saudade da juventude que não compreendeu a si própria!
Aqueles por quem eu ansiava,
Aqueles que eu julgava transformados tal como eu,
O fato de terem envelhecidos afastou-os:
Só quem se transforma continua meu amigo.

  1. Quanto se impõe à amizade que precisa continuamente se transmutar. Torna-se outro quando constantemente leva-se a experiência ao limite, assim também-o é a amizade. Se a vida é um combate entre forças – ativas e reativas -, é necessário mobilizar-se ativamente para se transformar, fugir por dentro, denunciando o decaimento do homem com suas relações que se dão no território do ressentimento. Hannibal, como canibal, devora o outro, mas não no sentido de um antropófago, ele não quer deglutir as forças do inimigo para se fortalecer. Ele devora o decaído, o homem escravo, o animal pequeno, que contamina o mundo com sua fraqueza. Exige, assim, do seu amigo (Will), uma prova de força, um índice de transmutação para coabitar em seu mundo, sua perspectiva própria.
  2. No quarto episódio da série, Hannibal como psicólogo trata de uma de suas pacientes (Abigail), que tem medo de desenvolver traumas psicológicos por ter perdido seu pai, que era um serial killer. Demonstrando o que parece ser um aspecto Nietzscheano responde “trauma psicológico é sinal de fraqueza”. Em “Genealogia da Moral”, Nietzsche apresenta-nos a categoria do Esquecimento, um mecanismo ativo do homem nobre, que impede a formação do ressentimento e da má consciência. O homem pequeno remói continuamente os maus encontros, enche o seu corpo de bílis, até que se forme o ressentimento, característica de uma vida rebaixada. Se a vida é caos, bons e maus encontros, tornar-se traumático, ressentido é sinal de fraqueza.
  3. No decorrer da primeira temporada, Will, que é funcionário do FBI, descobre que o Serial killer que ele persegue o “Estripador de Chesapeake” é o Hannibal. A essa altura, Hannibal já o considera seu amigo, ou para melhor dizer, Will o acessa exatamente porque ele deixa, ele demonstra sua face oculta, seu modo de ver as coisas. Nisso, a relação fica obscura, Will entrega-o para o FBI, mas Hannibal consegue escapar, não antes de feri-lo fisicamente, deixando-o à beira da morte. Quando curado de seus ferimentos, Will volta a procurar Hannibal. Mas, dessa vez, não para persegui-lo, ele foi transmutado, não queremos com isso dizer que se tornou um canibal, um assassino, mas ele partilha de uma certa postura diante da vida. 
  4. Extraindo os elementos ficcionais, os assassinatos que Hannibal comete, demonstra-se aquilo que Nietzsche disse em “Nascimento da tragédia”, que a vida só se justifica como fenômeno estético. Isso quer dizer entender a vida como um todo artístico, tomar o homem como artista, experimentando intensamente sua principal característica, a invenção. Hannibal é, sobretudo, um artista, que experimenta os limites da existência, para com isso extirpar a moral do homem inferior, que aprisiona-o, limita suas possibilidades, o faz fraco. 
  5. Com isso exige do seu amigo, não uma simpatia para com suas dores, mas um compartilhamento de vitalidade, ou seja, uma amizade de forças, em que a própria formação do ressentimento é impossibilitada. Consequência prática da amizade Smithiana, é a acomodação do vínculo, e um fortalecimento da identidade, porque relaciona-se com aquele que nutre os mesmos pesares, ressentimentos, e a amizade perpetua-se no que se permanece o mesmo, o eterno animal que carrega fardos, torna a vida pesada. Por outro lado, na amizade trágica, o amigo é sempre aquele que se transmuta, que se libertou da moral. O que se compartilha são as forças em intensidade, a experimentação do corpo que compõe sua arte, a amizade enquanto puro devir.

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Yargo Marino

As Ferramentas Metodológicas em Lene Hansen – Número 176 – 05/2021 – [24-28]

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Resenha do livro: Security as Practice: discourse analysis and the bosnian war, de Lene Hansen

O texto de Lane Hansen aborda os estudos pós-estruturalistas, a dimensão epistemológica e metodológica e -principalmente – as esferas particulares dos assuntos sobre identidade e política externa e como eles se interlaçam. Para isso a autora usa como exemplo a guerra da Bósnia, para poder aplicar o seu estudo de caso. Portanto o livro praticamente se divide entre capítulos que falam sobre teoria e os capítulos finais sobre a aplicação desta teoria. Continue Lendo

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Conexão (Leblon-)Japeri – Número 175 – 04/2021 – [20-23]

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Em 21 de março, os principais veículos de informação noticiaram a suposta ocorrência, dias antes, de uma festa num trem da Supervia. A rigor, as reportagens não o noticiaram assim. Como é costume, menos comunicaram informações do lhes imprimiram um sentido elitista. E, seguindo a praxe, não o fizeram com muito refinamento. Nas reportagens, o uso gratuito de marcadores discursivos negativos para falar dos pobres ficou evidente até para o pior e mais fiel dos leitores – que, obviamente, segue na vida a mesma linha editorial. Afirmá-lo é possível por uma razão simples: notícia é atividade econômica. E, como qualquer comércio, procura não desagradar o comprador, ao mesmo tempo em que vende seus produtos para uma demanda que ajuda a criar. Até os bancos, que não vendem nada e não perdem nada desagradando seu público, participam ativamente de nos transformar a todos no correntista necessário. Uma das operações criadoras dessa qualidade de media é a naturalização da específica carga semântica dada a tudo que é notícia sobre o mundo dos pobres[1].

Não é exagero. Uma das reportagens faz referência à festa como um ‘“evento”’, grafado entre aspas[2] – talvez por supor alguma relação entre a autenticidade do evento e a classe social de seu público-alvo. Não sabemos. Nossa hipótese é que um dos protocolos adotados em notícias assim opera no registro da sugestão. Para tanto, adota medidas muito explícitas. O primeiro gesto da reportagem é a citação textual da divulgação elaborada pelos organizadores do evento: ‘“Achei a solução, galera!”’. Como se sabe, essas primeiras linhas compõem o momento mais nobre de um texto, quando ele ainda não perdeu nenhum leitor para a distração, a indicar que é pouco provável que algo seja escrito ali ingênua ou desinteressadamente. É nesse espaço que a notícia apresenta a síntese de que um “baile funk” da “galera”, com “muita bebida alcóolica” e “quase nenhum” “passageiro” “de máscara”, foi divulgado pelos organizadores como “solução”. O sentido posto pela citação integral[3] da passagem é certamente mais eficiente do que qualquer comentário. Dificilmente a atenção não será atraída para a conclusão de que há ali uma contradição, exatamente porque suposta e apresentada como fato e sem comentário. Se descuidado, o leitor pode, ainda, ser tocado pelo tom jocoso impresso por essas escolhas tanto ao evento e seus organizadores, quanto a quem a ele compareceu.

De novo, não é exagero. O evento noticiado tem seu nome alterado no texto da reportagem de Trem do Funk para “uma espécie” de “Trem Fest”. Parece de interesse mencioná-lo. Primeiro porque nada é oferecido como motivo a justificar a autoridade da reportagem para mudar o nome de fenômenos sobre os quais claramente sabe pouco. Segundo porque a escolha do nome original, Trem do Funk, pode conter um gesto, tão relevante quanto belo, pelo qual um evento que recupera o funk clássico rende homenagem a um outro, atualizando a histórica tradição do Trem do Samba. Alterá-lo parece, de um lado, uma manifestação de lamentável e elitista ignorância e, de outro, de truculento silenciamento de uma das mais relevantes tradições da cultura carioca. Esta discussão enseja um outro ponto de interesse, pertinente ao áudio do registro de vídeo disponibilizado pela reportagem. Nele, mulheres e homens negros aparecem entoando a canção Rep do Festival, cuja letra transcrevemos:

“Massa funkeira, não me leve a mal

Vem com paz e amor curtir o festival

O festival daqui é muito bom

O festival é um jogo de emoção[4].”

Algum tempo atrás, em julho de 2020, quando da reabertura limitada de bares no Rio, aquele mesmo comerciante da desinformação noticiou uma outra ocorrência de aglomeração na noite carioca. E, da mesma forma, acompanhava a reportagem a disponibilização de um vídeo publicado em redes sociais – um dos recursos preferenciais desse tipo de jornalismo interessado, preguiçoso e sem ‘furo’ – nos quais homens e mulheres eram vistos bebendo e conversando em pé, numa calçada do Leblon. Mas, ao contrário dos registros do Trem do Funk, não se ouve música nos vídeos da Zona Sul, apenas pessoas falando. Entre elas, ouve-se a voz de uma moça que torna pública sua opinião desinformada sobre medidas de segurança sanitária. Registramos abaixo um excerto do áudio de outro vídeo o qual, embora mencionado, não foi disponibilizado na reportagem. Nele, um rapaz fala das imagens que registra, como se as descrevesse para quem as vê – entenda quem puder:

 “vai tomar no cu, corona e vai tomar no cu, máscara“

Na linha Japeri trabalhadoras voltam do trabalho que não podem escolher interromper ou fazer remotamente, num trem caro e aglomerado que não podem optar por não pegar, às 19:00 da noite, enquanto bebem cerveja e cantam palavras de respeito e paz sob um ritmo caro à cultura da cidade que constantemente lhes é negada. No Leblon, um jovem profere xingamentos sexistas e homofóbicos a um vírus e a um dos instrumentos capazes de detê-lo.

No Leblon, o problema é posto em termos de alguém pôs “regras” que outrem “ignorou”[5]. Para ele, a solução – não expressa – é, quando muito, a multa. No trem da linha Japeri, o problema é o baile funk, ao som do qual as pessoas “até” dançam. Para ele, a solução é a policial, gentilmente sugerida no encadeamento do texto, ineficiente apenas porque o governo do estado desconversou – sugerida da mesma forma[6].  Na notícia de ontem, o comerciante é a Supervia, apresentada não como concessionária prestadora de serviço público essencial de transporte – o que, aliás, faz de maneira escandalosamente sub-humana -, mas como indignada e disposta a mover as medidas jurídicas (desoneradoras) cabíveis (e selecionadas à conveniência de sua desobrigação).

Espanta a desfaçatez. Os trabalhadores da linha Japeri são instados à aglomeração diariamente e de muitas formas. Todos sabemos e muitos de nós usufruem do sacrifício que lhes é imposto. Não é notícia. Mas, quando cantam, rimam, dançam… a atenção que lhes é dedicada é bem outra. Provocam incômodo nas supostas elites. Por que estes querem aqueles como gado, submetidos aos caprichos de uma moral estruturalmente excludente. Essencialmente racista. E a Pandemia é mais que apenas um contexto, uma oportunidade, para o fel de sua hipocrisia. De encobrir sua memória golpista e co-responsabilidade no caos circundante. Como aqueles que, ao guiarem a nau para os arrecifes cortantes, são os primeiros a se lançarem esbaforidos aos botes salva-vidas. Mas, como se sabe, os naufrágios são precedidos da procissão de ratos a balançar as cordas do navio. Esperam, em meio a agitação das ondas, que se esqueça da desordem que provocaram desde sempre nos porões.

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Lênin Pires
Paula Pimenta


[1] Chamamos à atenção o leitor para um destes dispositivos ‘jornalísticos’, selecionado pelo acesso facilitado por ser ‘gratuito’ e online, porque o a notícia disponibilizada em seu site foi uma das mais visitadas ontem e por adotar como praxe o expediente da comunicação demofóbica.

[2] Talvez pela suposição de que nenhuma reunião é possível neste momento – um suposto contrafactual, obviamente, e cretino, vide a fartura de ocorrências em que festas clandestinas de outras classes sociais recebem sem aspas a designação de evento.

[3] “Achei a solução, galera!”. Era assim que partia uma das convocações para uma espécie de “Trem Fest”, um baile funk realizado na sexta-feira (19), em um trem da Supervia, no ramal Japeri, e que desrespeitava todas as normas sanitárias recomendadas em tempos de pandemia.

O “evento” começou às 19h, saiu da plataforma 8 da Central do Brasil e contou com DJs, aparelhagem de som, muita bebida alcoólica e quase nenhum passageiro de máscara.

A divulgação foi feita pelas redes sociais e prometia muito funk antigo no “Trem Fest”. O trem escolhido deixou a Central do Brasil por volta das 20h15 e, em vídeos compartilhados em redes sociais, é possível ver muita aglomeração, nenhum tipo de fiscalização e até passinhos dentro dos vagões.”

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/03/20/rio-tem-trem-fest-com-aglomeracao-funk-e-bebida-em-trem-da-supervia.ghtml

[4] Disponível em : https://www.letras.mus.br/danda-e-taffarel/68599.

[5] Bares ignoram regras e passam do horário no 1° dia de reabertura no Rio; clientes se aglomeram e dispensam máscara

Regras da Prefeitura determinam que estabelecimentos funcionem até 23h, mas clientes continuavam em bares da Zona Sul depois da meia-noite desta sexta (3). Em vídeos, frequentadores chegam a debochar da pandemia que já matou 10,3 mil no RJ.

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/07/03/1a-noite-com-bares-liberados-tem-aglomeracao-e-desrespeito-a-regras-de-distanciamento-no-rio.ghtml

[6] A Secretaria de Estado da Polícia Militar informou que o Grupamento de Policiamento Ferroviário (GPFer) não foi acionado para o episódio, e que a Corporação segue atuando em apoio aos demais órgãos fiscalizadores de ordenamento público e vigilância sanitária no trabalho de conscientização relativo às regras de convívio social durante a pandemia de Covid.

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/03/20/rio-tem-trem-fest-com-aglomeracao-funk-e-bebida-em-trem-da-supervia.ghtml

A Agenda Política de Segurança do Terceiro Mundo – segundo Mohammed Ayoob – Número 174 – 03/2021 [17 – 19]

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Resenha: AYOOB, Mohammed, The Third World Security Predicament: State
Making, Regional Conflict, and the International System, Lynne Rienner Publishers, Boulder, CO, 1995.

Mohammed Ayoob inicia seu livro apresentando que desde a década de 1950 a agenda política continha o tema da segurança no 3º mundo prevista em sua análise, e atribui este fato aos processos de descolonização que ocorriam na época. O autor atribui à insegurança sentida pelo 3º mundo há uma série de fatores, dentre eles os mais citados ao longo do livro são o tardio state-making e também a tardia entrada destes Estados no sistema político internacional. O desejo de poder para estes Estados foi classificado por Ayoob como um instrumento facilitador para alcançar os anseios dos Estados de diminuir suas vulnerabilidades tanto no âmbito doméstico quanto internacional.

O autor chama a atenção para o processo de building states, que ocorre justamente quando as elites locais procuram alcançar autoridade política. Ele descreve como esse processo se deu durante cerca de quatro séculos na Europa e nos Estados do 3º mundo isso foi realizado em menos de cem anos, e atribui a isso grande parte da diferença que existe atualmente entre os Estados modernos do norte e os do sul. Além do tempo utilizado o autor também afirma que quando surgiram os Estados modernos na Europa não existia um sistema internacional recriminando suas práticas coercitivas domésticas ou lhes impondo prazos, e isto também dificulta o desenvolvimento das periferias.

O autor ainda traz a problemática da insegurança regional e do conflito dentro dos Estados do 3º mundo e traça uma relação simbiótica aqui entre os conflitos externos e internos. Também afirma, o que há muito tempo é debatido nas ciências sociais, como o processo de descolonização, da maneira como fora feito, foi responsável por grande parte dos conflitos separatistas e regionais que se manifestam até os dias atuais no sistema internacional.

No quarto capítulo do seu livro, Ayoob apresenta o que talvez seja sua maior contribuição neste trabalho que é a possibilidade de mudança da ordem no sistema internacional que os Estados do 3º mundo têm em mãos, todavia, como são incapazes de realizar este feito. Isso se dá porque apesar de serem mais numerosos que os outros Estados, eles ainda são muito dependentes dos Estados do 1º mundo, nas esferas política, econômica e militar, principalmente.

Na segunda parte do livro The Third World Security Predicament, Mohammed Ayoob analisa as implicações do fim da Guerra-Fria para a agenda de segurança dos países do 3º mundo. Baseando-se conscientemente em um conceito bastante tradicional de segurança, estadocêntrico e referente à esfera da política restrita (policies), Ayoob traça o equilíbrio político estabelecido durante a Guerra Fria e tenta prever eventuais desdobramentos na política internacional a partir de tendências que se encontram presentes em 1995. O autor também opta por fazer uso do conceito de 3º mundo, criado no contexto da Guerra Fria, o que, por um lado, o permite uma compreensão geral da situação desses Estados, mas por outro acaba pecando pela generalização excessiva.

A partir dessa divisão entre centro e periferia, Ayoob analisa diversas questões fundamentais para a agenda de segurança do 3º mundo, como a transferência de armas que durante a Guerra Fria era movida por razões estratégico-ideológicas e depois pelo crescente peso da racionalidade econômica; a questão da proliferação nuclear radicalizada com o fim da bipolaridade e com a própria busca por autonomia dos Estados do 3º mundo.

Ao analisar a Guerra do Golfo, Ayoob defende, de maneira bastante acertada, que uma das lições que podemos extrair desse evento é que o conceito de collective security, legitimador das intervenções humanitárias na prática se traduz no conceito de selective security, onde os interesses das potências são determinantes para definir se haverá ou não a intervenção e apontando, ao mesmo tempo para o fato claro de que estas intervenções se configuram sempre como “o forte corrigindo o fraco”.

Um das conclusões centrais dessa parte do livro é a de que, mais do que problemas externos, o principal fator responsável pelas turbulências no 3º mundo é o estágio inicial de state making no qual esses Estados se encontram. Coesão social incipiente e falta de legitimidade política dos regimes típicos dos primeiros estágios de construção do Estado, segundo Ayoob, são a força fundamental que gera todos os outros problemas de segurança nessas regiões.

Quando o autor analisa as influências externas exercidas sobre o 3º mundo e as implicações dessas mudanças com o fim da Guerra Fria, ele deixa claro que tais influências agem sempre no sentido de intensificar ou limitar conflitos cujas razões fundamentais são, na maior parte das vezes, alheias a elas. Inclusive no que diz respeito às intervenções humanitárias Ayoob afirma que é a falta de um Estado soberano e coeso – quasi-states e Estados falidos – nessas regiões que possibilita a intervenção do 1º mundo.

Outra conclusão importante traçada pelo autor é que a agenda de segurança, no sentido restrito que o autor propõe, é a agenda mais importante para Estados do 3º mundo no pós Guerra-Fria. Seguindo argumento a respeito das turbulências advindas da fase inicial de state making desses Estados, Ayoob afirma que, se a democracia e defesa dos direitos humanos tem se tornado um pré-requisito para a construção e legitimidade de Estados soberanos, um Estado bem aparelhado e minimamente detentor do monopólio da força é a peça-chave para a consolidação desses Estados.

A análise de Ayoob está voltada claramente para as elites do 3º mundo cuja responsabilidade nesse processo é enfatizada pelo autor. É para as elites do 3º mundo que ele fala e são os desafios que terão que ser enfrentados fundamentalmente por estas elites que o Ayoob tenta traçar.

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Tamires Alves

O Universo Onírico de Buñuel, o Descompasso entre Palavra e Mundo – Número 173 – 02/2021 – [10 – 16]

Yasmim Salles

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Resumo
É mais que necessário a consciência que a arte surrealista não pode ser reduzida a fórmulas explicativas semelhantes às equações matemáticas, pois a linguagem do inconsciente é complexa ao ponto de não ser possível resumi-la a ordem sistemática de uma lógica racional. Assim sendo, partiremos do princípio lacaniano de que apesar da arte produzir somente signos e significantes, o artista consegue expressar o inconsciente na obra sem deixar de jogar com as possibilidades dos sentidos. Tomaremos aqui os modos retratistas do surrealismo apresentado no filme Un Chien Andalou, especificamente, o seu conteúdo onírico e vanguarda como um ato político. Aqui, defenderemos uma interpretação interdisciplinar entre psicanálise, o saber antropológico e as representações metafóricas do inconsciente confrontando a censura em universo que não se deixa etiquetar pela palavra e a naturalização dos sentidos estéticos.

Palavras-chave:
Surrealismo, vanguarda, política, signos e arte.

Introdução
O movimento surrealista, através das suas expressões oníricas, está comprometido a nos mostrar singularidades próprias do sujeito. É claro que a arte de um modo geral trata-se de composições que ultrapassam as fronteiras da razão e é impossível separa-la de seu criador, digo, enquanto processo de criação. A criatividade burla a censura, podemos descreve-la suscintamente como algo que atravessa, algo que emerge e que consegue encontrar “furos” na barreira da consciência1 (na vigília). A partir daí, podemos afirmar que princípio da livre-expressão dado, em especial neste movimento artístico, pode ser compreendido como uma subversão do sujeito. Consideramos aqui o surrealismo e seu estímulo ao desprendimento das convenções e oposição à vigília como um ato que além de vanguardista é político.

Através da repressão os sonhos se mostram criptografados. Freud encontrou nos sonhos uma via condutora para aquilo que não temos direto acesso. Como disse Freud (1900/2006), sonhos são um período mais ameno de continuação do estado de vigília, que após o despertar é submetido a uma deformação com intuito de recalcar o desejo. A racionalidade censura questões do inconsciente, impede o sujeito de conhecer aquilo que contravém sua moral. Dito mais claramente, as relações entre o surrealismo e os sonhos são particularmente íntimas.

Un chien andalou foi um filme duplamente revolucionário: revolucionário porque introduziu pela primeira vez na história do cinema fragmentos oníricos (fragmentos do próprio Buñuel e do pintor Salvador Dalí, sendo a famosa e angustiante cena do olho cortado pela lamina proveniente de um sonho de Buñuel e a cena das formigas de um sonho de Salvador Dalí), ambas cenas absurdamente desprendidas dos valores estéticos tradicionais. É mais que necessário destacar que o filme não pode ser resumido em meras retratações oníricas, mas sim devemos pensa-lo como um manifesto original de um material trabalhado pelo inconsciente, que apesar de ter seu conteúdo deturpado, consegue expor sem o decoro estético as singularidades do sujeito.

Os surrealistas estavam interessados nos sonhos como significantes sem a preocupação em adquirir uma leitura interpretativa. O Manifesto Surrealista de Breton (1924) descreveu o surrealismo como uma “manifestação pura e real do pensamento” sem o controle da razão repressiva, sem a necessidade cumprir expectativas morais e ordinárias. Assim, o manifesto político de Buñuel está, para fins de imitar as articulações da lógica onírica, em libertar o sujeito das amarras da lógica tradicional repressora.

É fundamental destacar que uma obra não pode representar o artista que a compõe. Segundo o próprio Lacan (1998), ainda que a arte possua elementos do inconsciente de seu criador, quando um artista termina sua obra, a arte deixa de pertencê-lo e passa a ser do mundo. A psicanálise assume que, além de também ser um desbravador das questões da análise, podemos descrever o artista como uma espécie de “pescador” da realidade, aquele que através das obras captura profundezas do inconsciente. O filme Um Cão Andaluz (1928) foi e continua sendo revolucionário por romper com as expectativas dos padrões do sentido. Nele, a preocupação de Buñuel é em ser expressivo sem a necessidade de ser coerente, assim como os sonhos de fato são.

Por sua essência onírica a obra afronta a lógica tradicional, expõe através dos insights elementos caóticos típicos do psiquismo. As obras surrealistas são até hoje  acusadas de serem manifestações artísticas sem valor pelas cenas absurdas e confusas, tal qualificação assume uma perspectiva reacionária e empobrecida do que foi o movimento. O propósito da arte surreal é libertar o sujeito dos padrões, o que prontamente nos faz logo perceber a relação desta com o saber psicanalítico.


Os artistas ligados a esse movimento rejeitavam os valores e os padrões impostos pela sociedade burguesa, seguindo a exploração dadaísta de tudo o que fosse subversivo na arte. Fortemente influenciados pelas teorias psicanalíticas de Sigmund Freud, os surrealistas seguiram alguns métodos para impedir o controle do consciente na ação artística, desprendendo o inconsciente (OLEQUES, 2012).

O movimento surreal é um movimento contracorrente dos paradigmas normativos. A psicanálise dialoga eloquentemente com o surrealismo, pois se revela em comunhão com o caráter revolucionário da psicanálise de ter concedido espaço de fala ao sujeito.

Segundo Freud (1908/1996), a sensibilidade artística permite a manifestação do inconsciente a partir da edificação linguística dos devaneios do artista. A arte antecede a psicanálise justamente pelo fato do inconsciente está atrelado à criação e respectivamente ao fazer artístico. Freud, sabendo que a racionalidade impede o contato com as profundezas da psiqué, defendia que a arte tinha que ser irracional, defendia a liberdade criativa. Apesar de tudo, é preciso destacar que a arte e a psicanálise são campos independentes um do outro, a esfera artística não dependente da psicanalítica, nem a psicanálise da arte. Ambos campos são independentes, mas se atravessam.

Assim como a arte, a psicanálise também possui sua autonomia, porém ambas se entrelaçam ao ponto de tornarem-se enredadas pelas expressões da linguagem. Arte é a materialização do processo criativo do artista, onde nela o inconsciente paralelamente se faz presente, dois campos distintos que dialogam um com o outro, duas esferas que se organizam independentemente, mas que em um ponto se imbricam. Tanto a arte surreal quanto a psicanálise expõem algo se encontra no plano do insuportável para o Ego. O Ego é o responsável pelas distorções para evitar conflito com o Id, entretanto mesmo depois de reprimido o desejo ainda está lá, se faz presente e sempre escapa de algum modo.

O cinema produz um sentido. Numa leitura de cunho freudiana há uma relação bastante íntima com o inconsciente e obra, relação que se mostra ainda mais forte no caso da arte surreal. Quando tratamos das produções surrealistas, é perfeitamente possível estampar questões tão profundas ao ponto de serem capazes de até de causar estranhamento a quem às produziu. O surreal é uma linguagem multifacetada e absurda que utiliza a subversão do sujeito como meio.

Podemos definir linguagem como aquilo que é adquirido e perverte a natureza da pulsão. A linguagem toma por completo o sujeito uma vez que nosso inconsciente é estruturado como linguagem. É meio a linguagem que expressamos nossas angústias, desejos e sexualidade sendo através dela que o inconsciente se expressa, embora faça manifestações de maneira simbólica é através dela que o inconsciente se expressa. Lacan nos ensina que o ser humano, por não possuir instinto, é excepcionalmente diferente dos outros animais. O que na verdade possuímos é uma força multifacetada que exige satisfação e que revela várias maneiras de “deixar sua marca” no mundo pela linguagem. O homem encontra-se entre a pulsão e a linguagem, sendo a educação promotora do afastamento entre o sujeito e sua força pulsional primitiva.

Breton (1924) desenvolveu manuscritos sobre como o surrealismo um manifesto de liberdade do inconsciente. O espírito surrealista é iconoclasta. Logo no início do manifesto de 1924 encontramos no seu discurso a negação da lógica, valores burgueses, morais, estéticos, religiosos e qualquer outro plano que se encaixe arquétipo decoroso. Trata-se de capturar elementos imagéticos da inconsciência e sem muito requinte introduzi-los ao plano material. Segue abaixo um fragmento importante  sobre a dinâmica surrealista:


Ainda vivemos sob o império da lógica, eis aí, bem entendido, onde eu queria chegar. Mas os procedimentos lógicos, em nossos dias, só se aplicam à resolução de problemas secundários. O racionalismo absoluto que continua em moda não permite considerar senão fatos dependendo estreitamente de nossa experiência. Os fins lógicos, ao contrário, nos escapam.
Inútil acrescentar que à própria experiência foram impostos limites. Ela circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil faze-la sair. Ela se apoia, também ela, na utilidade imediata, e é guardada pelo bom senso. A pretexto de civilização e de progresso conseguiu se banir do espírito tudo que se pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de quimera; a proscrever todo modo de busca da verdade, não conforme ao uso comum. Ao que parece, foi um puro acaso que recentemente trouxe à luz uma parte do mundo intelectual, a meu ver, a mais importante, e da qual se afetava não querer saber. Agradeça-se a isso às descobertas de Freud. Com a fé nestas descobertas desenha-se afinal uma corrente de opinião, graças à qual o explorador humano poderá levar mais longe suas investigações, pois que autorizado a não ter só em conta as realidades sumárias. Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar seus direitos. Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo interesse em captá-las, capta-las primeiro, para submete-las depois, se for o caso, ao controle de nossa razão (BRETON, 1924; p.4).

Com o objetivo de burlar o “império da lógica”, técnicas de automatismo tornaram-se um artifício para libertação do artista das exigências da vigília de modo que permita o maior grau possível de espontaneidade e superação ao controle racional. Em síntese, podemos deduzir que o conteúdo político no onirismo surreal, em especial na cinematografia, está em seu entrelaçamento com a subjetividade, enfrentando ao poder normativo das instituições e tradições como um ato de ruptura e de protesto.

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Yasmim Salles

Referências

BRETON, André. Manifesto do Surrealismo. Ano: 1924; No.1. Online em <http://www.culturabrasil.org/zip/bretonpdf>. Acesso em 03 de abril de 2019. FREUD, Sigmund, “A interpretação dos sonhos”, Obras Completas, Standart Edition Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Imago, v. IV, p. 106.            . Escritores criativos e devaneio. Coleção Obras Completas de Freud, 1996; Edição standard brasileira. Volume 9. P. 133-43. Ano de publicação original: 1908.
    . Pulsões e seus destinos. Col. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Ed. Autêntica, 2013; Trad. Pedro Heliodoro.
    . O Estranho. História de uma neurose infantil. Ano: 1919. Vol. XVII, RJ. Editora: Imago, 1969.
     . O Estranho Vol. XVII, 1919; Editora: Imago. RJ, 1977.
     . O inconsciente. Ano publicação original: 1915. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1996. Rio de Janeiro; Editora: Imago.
     . A Interpretação dos sonhos. Ano de origem: 1990. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1996. Rio de Janeiro; Editorial: Imago.
INSIGHT.PSICANÁLISE. Cinema e psicanálise. Associação Brasileira de Psicanálise e Insight. 2018; Online disponível em: http://insight.org.br/3101-2/ > Acesso em 27 de março de 2019.
LACAN, J. Escritos. Editora: Jorge Zahar; RJ, 1998.
     . O seminário. Livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise; RJ, Editora: Zahar.
MENDONÇA, F.       O Sonho surrealista no cinema. Recordando a parceria entre Dalí e Hitchcock.Perspectivas,2012.
PONGE, Erika. Breton e os primórdios do surrealismo. Revista contingencia, Vol.3;No2.2008.
SANTOS, Lúcia. A experiência surrealista da linguagem: Breton e a psicanálise. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica; vol.5, no.2; Rio de Janeiro Dez. 2002.
WERNER, Vitor. Associação Livre. Blog Expressões Psicanalíticas, 2013; Online em:< https://expressoespsicanaliticas.wordpress.com/ >. Acesso em 03 abril de 2019.


[1]Freud (1908/1996) descreveu a censura como uma instancia de vigília do psiquismo.

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O Pensamento Pluralista de Montaigne e a Perspectiva de Educação Escolar de Moreira e Candau – Número 172 – 01/2021 – [2 – 9]

Taísa Bezerra

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“ Cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua  terra”.
— Montaigne

” O anormal […] é no fundo um monstro cotidiano, um monstro banalizado. O anormal vai continuar sendo, por muito tempo ainda, algo como um monstro pálido”.
— (Foucault, 2001, p.71)

Resumo
Este artigo desenvolve o seu argumento em torno da seguinte questão: Em que sentido se podem identificar compatibilidades de ideias entre o pensamento pluralista de Michel de Montaigne e a análise de Antônio Flávio Moreira e Vera Candau sobre a educação escolar e as suas culturas de referência? O que movimenta essa investigação parte da produção de um trabalho para a disciplina de Prática e pesquisa em ensino, onde foram realizados laboratórios ao longo de um semestre. O fenômeno aqui é discutido a partir da perspectiva teórica e análises bibliográficas que apontam possíveis compatibilidades de ideias entre o ensaio “Dos Canibais”, de Montaigne e o artigo “Educação escolar e cultura/s: construindo caminhos”, de Antônio Flávio Moreira e Vera Candau.  Em linhas gerais, a discussão aponta que é preciso desenvolver uma educação escolar que realize, como Montaigne propõe na citada obra, uma relativização do “outro”, de sua cultura, visão de mundo e práticas. Culturas são plurais e irredutíveis a comparações valorativas. Será um grande passo rumo à construção de uma educação democrática se a escola básica admitir, efetivamente, esta proposta em seu cotidiano pedagógico.

Palavras-chave: Montaigne, pluralismo, educação escolar, cultura.

Introdução
A Sociologia escolar muito tem nos ajudado a pensar como trabalhar a cultura como eixo central curricular. Entendemos aqui a sala de aula como espaço de lutas, disputas e conflitos e por isso, compreendemos todas as tensões e barreiras que se vivencia na mesma.  Tendo essa perspectiva, como entender as diferentes referências socioculturais que habitam uma sala de aula? Frente à questão, penso que visão pluralista de Montaigne em Dos Canibais poderia nos ajudar a refletir sobre a educação escolar nos tempos contemporâneos.

Montaigne ilustra bem a associação entre um subjetivismo e a abertura para o outro, o diferente. Tanto que, no período colonial europeu, Montaigne pode em vários endereços de seus Ensaios e antes mesmo da criação do termo “etnocentrismo”, fazer críticas agudas aos seus contemporâneos (Birchal, 2012). Entendemos Montaigne como pluralista tendo em vista que o mesmo nos mostra a diversidade de costumes e de experiências humanas em seus diferentes contextos. A oposição com o Outro cria uma identidade por oposição, homogeneizando esse “outro” e apagando as diferenças. Montaigne, ao contrário, mostra as variações nos costumes e suas diferentes possibilidades de forma que, na consideração das culturas, não se trata de estabelecer uma alteridade, o que seria meramente dicotômico, mas uma pluralidade de culturas (Marcondes, 2012).

Nesse sentido, analisaremos o ensaio “Dos canibais”, onde podemos encontrar um pensador crítico que caminha com o leitor diante a descoberta do “novo mundo”. Com a descoberta do novo mundo, o pensamento europeu sofre um impacto ao dissolver sua ideia de unidade humana. Nossa proposta aqui consiste em analisarmos como o pensamento trabalhado por Montaigne pode nos ajudar a identificarmos a possibilidade da descoberta do “novo mundo” também na sala de aula. Como nós profissionais da educação atuamos e o que temos trabalhado sobre essas perspectivas das diferenças e das produções multiculturais?

Moreira e Candau, para além de receitas de bolo, nos ajudam como profissionais a entendermos o espaço que vivemos como atuamos e como refletimos sobre esses mundos. Fazendo leituras do cotidiano, podemos construir e transformar diversas realidades. Nosso objetivo se concentra em entendermos como que o ensaio “Dos Canibais” nos ajuda em seus elementos a entendermos o espaço escolar que vivemos e como Moreira e Candau nos ajudam a produzirmos ferramentas para construirmos espaços onde as desigualdades, a violência e o ódio não possuam mais vez.

Para isso, dividiremos o artigo em três partes. A primeira apresentará a visão pluralista de Montaigne em todas as suas formas. Em um segundo momento iremos falar sobre as relações entre escola e cultura em uma perspectiva histórica para finalmente conversamos com Moreira e Candau sobre contextos e estratégias contemporâneas dessas questões e então trabalharmos nas considerações finais “O novo mundo”, por Montaigne, e o novo mundo da sala de aula.

“Dos canibais”: a escrita de mundos plurais
Compreendemos aqui que a visão pluralista de Montaigne decorre muito da forma de sua escrita. Montaigne se notabiliza como o precursor do ensaio como gênero literário no Ocidente: uma espécie de relato argumentativo de si e do cotidiano de caráter pouco sistemático. A linguagem ensaística se apresenta como uma colcha de retalhos tecida à semelhança de uma grande encenação, na qual o palco é a vida comum. Tal linguagem se choca com os rigores de uma Filosofia ainda significativamente norteada pela visão aristotélica. No campo filosófico, o ensaísta se encontra, assim, como um “estrangeiro”, externo às barreiras do que está posto. Desta maneira, o ensaísta tem relativa liberdade para “falar a língua do outro”, ao trabalhar a escrita de si, produzindo assim imagens, cores e intensidades plurais.

O pensamento pluralista de Montaigne tem um de seus importantes pilares na chamada “literatura das navegações” (Marcondes, 2012): as produções acerca dos eventos históricos da descoberta do novo mundo. Dos Canibais desenha uma importante, e talvez até seminal no espaço ocidental, análise da diversidade cultural em sentido relativista. Iremos a partir daqui, retomar a importância desse ensaio e suas características, para entendermos como há uma orientação pluralista em seus escritos, que se baseia no reconhecimento da diferença, do direito à mesma e da necessidade de reconhecimento da pluralidade dos mundos culturais.

Em seu ensaio “Apologia de Raymond Sebond (Ensaios, II, 12) Montaigne promove em sua escrita uma aproximação as ideias do ceticismo antigo, Pirrônico. Ceticismo esse que através da suspensão dos juízos, faz a crítica ao estatuto da razão e das crenças. Nesse ensaio conseguimos enxergar uma crítica direta diante ao mundo vivido e diante das vias de argumentação pelas quais os dogmáticos interpelam os céticos. Desse modo, Montaigne absorve as categorias dessa filosofia pelo que ela representa como uma opção ética.  Abre a possibilidade para que os sujeitos não se adequem a submissões arbitrárias.  Para que [B] mantenham sua liberdade e considerem as coisas sem comprometimento e sujeição (504/206).

É importante esclarecermos aqui o porquê dessas definições. Não defendemos aqui que Montaigne passa do ceticismo ao relativismo como um movimento filosófico. Montaigne em todos os ensaios é cético ao seu modo. Concordamos que seu ceticismo é compatível com um subjetivismo. O sujeito como instância de julgamento. (Birchal, 2007).  Em um Relativismo total, teríamos uma aceitação dos costumes, do que já está posto. Montaigne por sua vez pratica o recuo, constata a diversidade e a falta de fundamentos para o pensamento tido como único. Por isso, destacamos seu caráter pluralista ao invés de relativista, pois o autor por sua vez possui critérios que não admitem justificação para todos os costumes.

Sendo assim conceito da pluralidade dos mundos para Montaigne parte de sua constante crítica diante as limitações da razão humana, o que caminha para as aproximações de seus escritos com a tradição do ceticismo filosófico apresentada. Ou seja, se o projeto de conhecimento das coisas em si mesmas é falho, devemos assim aceitar a pluralidade das mesmas.  Dito isso, numa primeira aproximação ao texto Dos canibais, no qual nos propomos a analisar, o que nos salta os olhos é o processo de conhecimento “do outro” onde a partir de suas observações, Montaigne concebe novas concepções de mundo. Dois deles iremos trabalhar melhor: o conceito de “bárbaro” e de “selvagem”. (…) Acho que não há nessa nação nada de bárbaro ou de selvagem, pelo que me contaram, a não ser que cada um chama de barbárie o que não é praticado em sua terra (…)” (Montaigne, 2002, p. 205).

Em Dos Canibais, Montaigne nos mostra uma visão objetiva daqueles povos. A questão bastante levantada por interpretes, parte do princípio se o próprio pensador conseguiria enxergar o outro em sua originalidade e diferença, sem preconceitos de sua situação.  (Birchal, 2007). Acompanhando o movimento do ensaio, descobrimos que o que Montaigne desconstrói a “barbárie” e a “civilização” afirmada pelos europeus. Trata-se então muito mais da quebra diante ao que se pensa saber sobre “barbárie” e “selvageria” e o que se é passado sobre “o civilizado”. Cultura é algo relativo e não temos como pensá-la em termos hierárquicos.Eles são selvagens assim como chamamos de selvagens os frutos que a natureza por si mesma e por sua marcha habitual produziu (Montaigne, 2002)”.

Aqui, Montaigne relata que os ditos selvagens, estariam mais perto da esfera da natureza, o que retira do adjetivo o seu teor pejorativo como era analisado. O mesmo faz com o termo “bárbaro”. “(…) Portanto, esses povos parecem bárbaros por terem recebido bem pouca preparação de espírito”. Novamente, Montaigne parte para a aproximação dos hábitos desse povo para/com a dinâmica da natureza, como compreensão de seus costumes e ritos. Não há critério nenhum na natureza humana que autorize a tratar os nativos americanos como “bárbaros” e os europeus como “civilizados”, nem o contrário. Ou seja, não há como hierarquizar os povos de acordo com as suas visões de mundo e práticas. 

Podemos analisar no ensaio também a perspectiva que Montaigne constrói diante a relação entre prática social/cultura. No caso do ensaio que estamos trabalhando as práticas sociais e as culturas caminham conjuntamente como categorias essenciais para a compreensão da organização daquelas sociedades. Ou seja, para entendermos o que se foi produzido diante as sociedades antigas e modernas, se faz necessário entendermos as práticas sociais de cada grupo, e a formação de suas identidades a partir das experiências, modos de agir pensar e sentir.  Aqui, a atitude do autor vai além da “tolerância”, não se trata de tolerar o que se é tido como intolerável e sim reconhecer os costumes dos indígenas como crenças comuns e legítimas daquela sociedade e impassíveis de serem postas lado a lado com os costumes europeus num juízo de valor.

Como característica da escrita ensaística de Montaigne, Dos Canibais não afirma certezas indiscutíveis, mas deixa caminhos entreabertos. Ainda assim, fica claro no texto que os nativos americanos possuem seus próprios ritos, crenças e formas de agir e não há como julgá-las como “bárbaras” nem como “civilizadas”. Esta proposição não é pouco impactante no pensamento social. Séculos antes de Lévi-Strauss, Montaigne, mesmo que de modo assistemático, lança as primeiras bases do relativismo cultural, que caracterizaria a disciplina de Antropologia no século XX e seria influente no imaginário social nas últimas décadas.

Pensando em nossas realidades escolares, como podemos transpor a ideia pluralista de Montaigne para o ambiente da sala de aula? Se tomarmos como perspectiva do que Candau e Moreira chamam como a “centralidade da cultura”, podemos observar como a cultura tem emergido como um eixo importante de análise e atuação na esfera escolar. É nesse sentido que discutiremos possíveis articulações entre as ideias de Montaigne sobre a pluralidade cultural e algumas das proposições de Moreira e Candau acerca da educação escolar.

O espaço escolar e as culturas: perspectivas plurais
Nosso ponto de vista é que o pensamento de Montaigne tem eco em parte nos estudos culturais em educação desenvolvidos atualmente. Embora o autor francês tenda a não ser lembrado pelos pesquisadores contemporâneos, há algo das suas ideias que tem chegado ao pensamento educacional. Em especial, o relativismo cultural e o ceticismo valorativo presentes em Dos Canibais são identificáveis na conhecida proposta pedagógica multicultural de Antônio Flávio Moreira e Vera Maria Candau, dois expoentes da pesquisa educacional brasileira.

Moreira e Candau enfatizam a necessidade de que a escola se torne um espaço plural. Para os autores, os saberes a ensinar, as práticas de ensino e os instrumentos de avaliação tendem a ser espaços “monoculturais”, marcados por uma visão unitária e excludente de cultura. A cultura escolar nada mais seria do que uma reprodução da cultura das classes hegemônicas, que desacreditaria todos os outros referenciais culturais. No cenário da escola popular, os alunos vindos das classes socioeconômicas populares e de grupos socioculturais minoritários tendem a passar por um gradativo processo de exclusão, como num “circulo vicioso”.

A cultura escolar (administração, conhecimento e ensino) desvaloriza os seus saberes e experiências como decisivos à aprendizagem e à socialização, os alunos são estigmatizados, se rebelam violentamente contra o cânone, são penalizados e podem até desistir da educação básica e dos seus possíveis benefícios individuais e coletivos. Não soa familiar este quadro? Não seria ele outra encenação do teatro dos “civilizados” e “bárbaros” em que os primeiros se julgam superiores aos últimos? O paralelo entre a imagem evocada em Dos Canibais e a cultura escolar típica é, pois, bastante possível. 

Diante desse quadro, Moreira e Candau acenam a uma perspectiva multicultural do processo educativo, que dê espaço, voz e interlocução às diversas culturas na construção do espaço escolar, sobretudo na sala de aula. Para os autores, a perspectiva sobre multiculturalismo trabalhada se baseia na ideia emancipatória do conceito. Aqui, pensar multiculturalismo é pensar para além do reconhecimento das diferenças e diversidades e reconhecer as relações de poder que habitam em ambientes onde há uma enorme variabilidade de culturas em um mesmo espaço. A escola é um desses espaços. A prática pedagógica multicultural nesse contexto, para os autores representa dar voz a narrativas que não são priorizadas. E quais são as características desses espaços escolares que tratamos? Temos a ideia desses espaços como zonas de conflito, tensões e disputas. Se lidarmos com essa dimensão que habita nas escolas onde a diferença e pluralidade são questões silenciadas, concordamos com os autores de que precisamos como profissionais produzirmos uma perspectiva que valorize e leve em conta a riqueza decorrente da existência de diferentes culturas no espaço escolar.

A transformação curricular passa então a ser fundamental no eixo de argumentação dos nossos autores. Quais olhares e leituras têm sido privilegiadas? Cabe a nós, profissionais da educação, também a partir da análise dessas questões, questionarmos como os temas trabalhados tem sido construídos historicamente, quais são as ideologias dominantes e como podemos a partir disso fazer com que os alunos possam questionar suas próprias experiências. Nesse contexto, surge o crítico cultural. Para os autores, os críticos culturais serão os intelectuais que vão assumir o papel de concretizarem o movimento de “desnaturalização” das coisas. Ou seja, tudo pode e deve ser passível de transformação. Podemos subverter a ordem vigente.

Assim como em “Dos canibais”, Candau e Moreira nos mostram como praticamos e atualizamos o gesto da exclusão do diferente no espaço escolar:

“(…) a demarcação entre “nós” e “os outros” é uma prática social permanente que se manifesta pelo não reconhecimento dos que consideramos não somente diferentes, mas, em muitos casos, “inferiores”, por diferentes características identitárias e comportamentos (…)” (MOREIRA E CANDAU, 2003, p. 163)

Nessa perspectiva, como os conteúdos de ensino, as práticas pedagógicas e as avaliações das aprendizagens poderiam contemplar a visão pluralista que defendemos? Defendemos assim como Moreira e Candau que essas práticas só podem ser construídas diante a coletividade, ou seja, é através das ações conjuntas, do apoio mútuo e continuado que os profissionais da educação poderão construir novas formas de saberes, dentro de espaços tão excludentes. E se aqui destacamos que é preciso trabalharmos coletivamente, é preciso que esse trabalho aconteça também com o apoio para além dos muros da escola. Ora, se a escola é um espaço propriamente integrado aos tecidos da sociedade, é preciso que as instituições também contribuam para que os projetos possam ser concretizados, como as secretarias, que é o exemplo que os autores relatam:

(…) E aí insistimos na construção de um projeto pedagógico que seja da escola e seja da Secretaria também, um projeto claro, porque o projeto pedagógico ele pensa a escola, ele pensa no todo, na sociedade. Ela tem querer uma instituição que tem o objetivo no futuro.(…)(MOREIRA E CANDAU, 2003, p. 165 – 166)

Precisamos também, ao que se refere às avaliações, procurar metodologias que potencializem as formas de expressividade do alunado. Se retomarmos a ideia de que a escrita dos ensaios de Montaigne é a escrita de si, do próprio pensador ponderando e refletindo sobre suas ideias e formulações, podemos destacar o quanto essa escrita de si mesmo o transforma e modifica. Para Moreira e Candau, expressar-se, dizer sua palavra é uma ferramenta libertadora, que faz com que a experiência do outro se aproxime da nossa. É preciso, sem dúvida, desenvolver uma educação escolar que realize, como Montaigne propõe em Dos Canibais, uma relativização do “outro”, de sua cultura, visão de mundo e prática. Culturas são plurais e irredutíveis a comparações valorativas. Será um grande passo rumo à construção de uma educação democrática se a escola básica admitir, efetivamente, esta proposta em seu cotidiano pedagógico.

Considerações Finais
Precisamos dar voz as diferentes narrativas. Sabemos que o caminho é longo e difícil, todavia, concordamos com a dimensão transformadora do professor como agente ativo de todo o processo que buscamos. Valorizarmos nossa formação, nos engajarmos coletivamente, disseminar o pensamento crítico e propor interações reflexivas são algumas das muitas alternativas que podemos buscar para construirmos uma escola plural. A escola nesse sentido, tem um papel muito claro, o de cumprir com a sua função crítica e democrática. Pensarmos em uma educação multicultural é pensar em construir espaços educativos que sejam plurais. Em tempos nos quais a diferença parece mais despertar conflito, violência e ódio, a defesa de práticas pedagógicas multiculturais se faz necessária A diversidade é uma riqueza e deveria ser tratada como tal pela escola.

O “novo mundo” de Montaigne e o “novo mundo” da sala de aula se aproximam dadas as semelhanças. Tal qual o novo mundo relatado por Montaigne em seu ensaio, ainda não sabemos lidar com as diferenças. Podemos tomar Montaigne como Antoine Compagnon o caracteriza, como um dos primeiros críticos ao colonialismo (Compagnon, 2015) ou até nas palavras de Jean Starobinski, como o ensaio “dos canibais” sendo um “manifesto anticolonialista”. O que mostramos no presente artigo foi que para além dessas caracterizações do Montaigne como ensaísta e o que produziu o ensaio “dos canibais”, Montaigne é um pluralista, pois seu pensamento nos faz exercer o movimento de desconstrução do pensamento hegemônico.  Entender esse movimento, é conceber a ideia de que se conseguimos enxergar as pluralidades de culturas, conseguimos por consequência transformar o pensamento de uma época. O que nos fez aproximar um autor do século VI e autores brasileiros contemporâneos foi a partir da observação de que ainda praticamos na vida pública a discriminação e o preconceito. E o que nos faz pensar em alternativas, é termos em vista que ao enxergarmos o processo podemos transformar e modificar essas visões únicas e dogmáticas sobre a vida. Por isso defendemos uma escola multicultural, para que possamos assim fazer das diferenças uma ferramenta que impulsiona e que não segrega.

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Taísa Bezerra

Referências
COMPAGNON, Antoine, (2015). Uma temporada com Montaigne. São Paulo: Martins fontes.
MONTAIGNE, Michel, (2002). Os ensaios. São Paulo: Martins fontes.
MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa  and  CANDAU, Vera Maria. Educação escolar e cultura(s): construindo caminhos. Rev. Bras. Educ. [online]. 2003, n.23,
TOURNON, André. Montaigne. São Paulo, Discurso Editorial, 2004.
MARCONDES, Danilo. Montaigne, a descoberta do Novo Mundo e o ceticismo moderno. Kriterion [online]. 2012, vol.53, n.126.
SOUZA FILHO, Danilo Marcondes. A tradição cética, os argumentos limitativos do conhecimento e a questão da linguagem. Departamento de Filosofia (PUC-RJ). Conferência em 1997.
STAROBINSKI, Jean. Montaigne em Movimento. (1993) São Paulo, Companhia das letras.
BIRCHAL, Telma. (2007).  O eu nos Ensaios de Montaigne. Belo Horizonte: Editora UFMG.

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