O Acre e os Limites das Reservas Extrativistas na Preservação Florestal: observações sobre a Reserva Extrativista Chico Mendes – Número 154 – 08/2017 – [83-95]

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Uma das maneiras de se compreender a relação do Acre com o Brasil é refletir sobre a relevância da atividade do extrativismo e da força do ideário da conservação florestal no estado. A própria anexação acreana ao território brasileiro durante o primeiro ciclo da borracha é consequência de tal relação, como veremos em seguida. Posteriormente, o segundo ciclo da borracha representou nova tentativa, igualmente efêmera, de promover a reforçar a ocupação do então território. Novamente diante de bases extrativas tradicionais. O terceiro momento ocorre já na década de 80 com o recrudescimento das preocupações globais com a preservação ambiental. O seringueiro Chico Mendes é a face mais visível desta era. Nestas circunstâncias a criação das Reservas Extrativistas simbolizou a vitória da Aliança dos Povos da Floresta, movimento social que articulava os seringueiros e outras representações da sociedade civil local. Quase três décadas depois, como é a situação na Reserva Extrativista Chico Mendes, a mais célebre de todas e onde a luta dos seringueiros foi tonificada? Quais os limites da sua estratégia e quais as reflexões expostas por este modelo de unidade de conservação no estado?

1. Acre e o Brasil: ligados pelo extrativismo da borracha

Esta primeira seção almeja revisitar brevemente o processo que culminou com a anexação do Acre ao Brasil mediante a assinatura do Tratado de Petrópolis, em novembro de 1903.

O último quartel do século XVIII é central para a compreensão daquelas circunstâncias: a seca prolongada de 1877-1879 no Nordeste afetou o Ceará de forma particularmente severa, matando cerca de 200 mil pessoas e praticamente dizimando o rebanho bovino, além de causar perdas catastróficas na agricultura local (CANO, 2000). Este evento fez com que cearenses – estimativas indicam cerca de 250 mil (CANO, 2000) – migrassem para a Amazônia, particularmente para o Acre, com o objetivo de buscar uma vida melhor em meio aos seringais da floresta. O aumento da mão-de-obra disponível, – combinado à maior facilidade nos transportes permitida pela livre-navegação no Amazonas – a abundância de seringueiras e um mercado de consumo em forte expansão são fatores-chave para o desenrolar do ciclo da borracha na região. Embora o Acre fosse considerado território boliviano pelo Tratado de Ayacucho, neste período a delimitação física da fronteira era de difícil fixação por conta da densidade vegetal da floresta.

No ano de 1899 a Bolívia ensaiou iniciar cobranças de impostos e impor barreiras alfandegárias na cidade de Puerto Alonso. Esta atitude foi imediatamente rechaçada pelos seringueiros e seringalistas brasileiros que lá viviam. A tensão se agravava pelo fato de que a maior parte da população da cidade era composta justamente por brasileiros provenientes do Nordeste, migrantes trabalhadores da economia gomífera. Já os seringalistas brasileiros temiam que o governo boliviano não reconhecesse os direitos de exploração nos terrenos ocupados. Em Manaus e Belém os barões da borracha acompanhavam a situação à distância, evitando qualquer posição inicial mais incisiva capaz de afetar os rendimentos lucrativos do negócio.

O Bolivian Syndicate, companhia privada com sede em Nova Iorque, conserva um importante papel na história do ciclo gomífero. Após o reconhecimento brasileiro de que o Acre compunha parte do território boliviano, o país vizinho buscou formas de explorá-lo. Já que não possuía meios financeiros para propiciar a ocupação e a exploração da borracha neste território, concedeu licença para que o Bolivian Syndicate o fizesse. As liberdades dadas ao Bolivian Syndicate faziam com que o Acre se tornasse, de fato, uma colônia dos EUA encravada na América do Sul.

O acordo com o Bolivian Syndicate era válido por trinta anos e os direitos eram bastante extensos. Davam ao Bolivian o domínio de toda a administração fiscal do território, o que englobava desde o direito a cobrança de impostos, construção de postos alfandegários até o arrendamento de terras. O acordo dava ainda ao Bolivian a possibilidade de comprar quaisquer terras no Acre que não tivessem sido reclamadas por terceiros nos termos das leis bolivianas. Tinham também os direitos sobre as riquezas minerais e sobre a navegação, sendo de sua competência autorizar novas licenças de navegação. Poderiam ainda utilizar a força para fazer valer todos estes direitos. Por fim, 60% dos lucros do empreendimento iriam para o governo boliviano e o restante poderia ser realizado pela empresa (HECHT ET.AL., 1989). Como é possível notar, os aspectos do acordo o caracterizavam como uma empreitada de caráter tipicamente colonialista.

Insatisfeitos com a situação, seringueiros e seringalistas brasileiros, liderados por José Carvalho, reunidos no seringal de Bom Destino, rebelam-se contra as autoridades bolivianas e, em 1º de maio de 1899, declaram a Independência do Acre, iniciando a chamada Revolução Acreana sem o disparo de um tiro sequer. A administração do novo país passara a ser conduzida pela Junta Central Revolucionária.

Poucos meses antes, em março de 1899, o navio Wilmington, da Marinha dos EUA, ancorava em Belém do Pará. Luiz Galvez, jornalista espanhol que trabalhava na cidade, teve acesso a documento que trazia o acordo militar pactuado entre a Bolívia e os EUA. Estabelecia, entre outras medidas, o auxílio dos EUA à Bolívia, inclusive com assistência militar, em caso de guerra contra o Brasil; o governo dos EUA também se responsabilizaria por pressionar o Brasil a liberar os rios para todos os navios oriundos da Bolívia e defenderia o direito ao livre trânsito para a Bolívia. O acordo previa ainda que: (1) os produtos dos EUA que entrassem na Bolívia teriam desconto de 50% em impostos; (2) os EUA receberiam 50% de todos os impostos derivados dos embarques de borracha feitos na Bolívia durante o período de 10 anos; (3) os EUA pagariam os custos de guerra entre Brasil e Bolívia; (4) os EUA teriam licença do governo boliviano para colonizar cerca de 1/3 do território do Acre. Galvez publicou aquele documento no jornal que trabalhara sem, no entanto, obter a atenção das autoridades brasileiras (TOCANTINS, 2001). A indiferença do governo brasileiro e da elite paraense em relação às suas descobertas fez com que ele viajasse até Manaus, onde finalmente logrou o apoio do então governador do Amazonas, Ramalho Junior. De Manaus Galvez seguiu até Puerto Alonso, rebatizada de Porto Acre, local onde ele juntou-se à Junta Revolucionária e, em 14 de julho de 1899, no aniversário de 110 anos da Revolução Francesa, foi proclamado presidente da nova República.

No ano seguinte o governador do Amazonas envia uma expedição militar, denominada Expedição dos Poetas, para auxiliar o novo governo do Acre diante do contra-ataque boliviano. Composta majoritariamente por pessoas oriundas das artes, boêmios em geral, esta expedição é derrotada pelas Forças Armadas da Bolívia. Depois da vitória ante os rebeldes no Acre o governo boliviano decide pela assinatura do arrendamento do território para o Bolivian Syndicate. Tal medida tomada pelo governo boliviano finalmente preocupou o governo brasileiro, já que seria o sinal mais claro de que os acordos gestados entre o governo boliviano e os EUA ameaçavam a soberania brasileira (TOCANTINS, 2001).

O avanço dos objetivos do governo boliviano no Acre a partir da assinatura do acordo com o Bolivian Syndicate gerou mais uma onda de descontentamento entre os seringueiros e seringalistas brasileiros, desta vez liderados por Plácido de Castro. Seguiu-se uma nova declaração de independência do Acre que, dessa vez, buscava apoio junto ao governo brasileiro para que o território fosse anexado. Nesta segunda tentativa logra êxito em seu intento, já que os governos de Bolívia e Brasil, por meio do Tratado de Petrópolis, decidem pela anexação do Acre ao Brasil em troca do pagamento de indenização de 2 milhões de libras e da promessa do Brasil em construir a ferrovia Madeira-Mamoré, ligando a cidade de Guajará-Mirim até Porto Velho, o que facilitaria o escoamento da produção boliviana para o Rio Madeira, em seguida para o Rio Amazonas e, dali, para o Oceano Atlântico.

Ricupero sugere proximidades entre os processos de anexação do Acre ao Brasil e do Texas aos Estados Unidos:

O Acre constitui caso único e excepcional na experiência histórica brasileira. Foi comparado ao Texas em analogia a um episódio na América do Norte em que há semelhança entre alguns dos elementos essenciais da narrativa: terras povoadas por colonos de nação contígua, revolta armada contra a distante soberania central, autonomia e, em seguida, anexação ao país de origem dos revoltosos. A diferença é o desenlace: em um exemplo, guerra e início do processo de perda de um terço do território mexicano; no outro, afirmação da negociação e da diplomacia (RICUPERO, 2012, p.119).

A anexação do Acre ao Brasil deve-se, em grande medida, ao esforço de brasileiros que buscaram dar novo rumo às suas vidas ao migrar para o Acre e dedicar-se ao extrativismo da borracha. Atividade central na disputa pelo território e labuta que Euclides da Cunha descrevera com beleza lírica, profunda indignação e extrema sensibilidade social:

A exploração da seringa, neste ponto pior do que a do caucho, impõe o isolamento. Há um laivo siberiano naquele trabalho. Dostoiévski sombrearia as suas páginas mais lúgubres com esta tortura: a do homem constrangido a calcar durante a vida inteira a mesma ‘estrada’, de que é ele o único transeunte, trilha obscurecida, estreitíssima e circulante, que o leva, intermitentemente e desesperadamente, ao mesmo ponto de partida. Nesta empresa de Sísifo, a rolar em vez de um bloco o seu próprio corpo — partindo, chegando e partindo — nas voltas constritoras de um círculo demoníaco, no seu eterno giro de encarcerado numa prisão sem muros, agravada por um ofício rudimentar que ele aprende em uma hora para exercê-lo toda a vida, automaticamente, por simples movimentos reflexos — se não o enrija uma sólida estrutura moral, vão-se-lhe, com a inteligência atrofiada, todas as esperanças, e as ilusões ingênuas, e a tonificante alacridade que o arrebataram àquele lance, à ventura, em busca da fortuna (CUNHA, 2000, p.153).

Esta obra de Euclides da Cunha compõe uma das mais belas páginas da literatura em língua portuguesa, assim como a mais sublime descrição da vida e das disposições espirituais do seringueiro, presente no capítulo ‘Judas Ahsverus’.

2. Do estancamento do extrativismo à retomada da luta social dos seringueiros

Cerca de uma década após a anexação do Acre ao Brasil o boom da borracha, que tanto enriquecera os seringalistas e os barões em Belém e Manaus e que tanto manietara os seringueiros, chega ao fim por conta do crescimento do cultivo da Hevea brasiliensis no Sudeste Asiático a preços mais competitivos. Aurora da biopirataria dos recursos naturais da Amazônia.

Até a Segunda Guerra Mundial o Acre viveu momentos de estagnação quando, por conta dos Acordos de Washington celebrados entre os presidentes Getúlio Vargas e Franklin Roosevelt, novo surto de exploração gomífera reviveu a esperança dos acreanos. O governo brasileiro convocava os ‘soldados da borracha’ para o esforço de guerra. Fugaz: durou apenas o período da guerra.

O fim do Acordo de Washington encerra um curto período de prosperidade com o extrativismo no Acre. Este período de prosperidade não deixou de emular as mesmas dificuldades e frustrações presentes no primeiro ciclo da borracha por parte dos seringueiros, o que quer dizer que as condições arriscadas e de exploração do trabalho em meio à floresta não eram apenas lembranças, mas faziam parte da experiência humana cotidiana.

Finda a guerra, o Acre mergulha em questões internas ideológicas relativas ao seu grau de autonomia no contexto do regime federativo. Até a década de 60 os grupos políticos locais discutiam sobre a elevação do Território do Acre a Estado, mas apenas em junho de 1962, com a lei 4.070, o presidente João Goulart sanciona legislação criadora do Estado do Acre. Pouco depois são realizadas eleições estaduais cujo resultado inesperado leva ao poder um jovem político de apenas 34 anos, José Augusto (PTB). Entretanto, por conta dos desdobramentos do golpe militar de 1964, foi deposto antes de completar um ano no cargo (DANTAS, 2007).

Já na década de 70 os incentivos dados pelos governantes militares fizeram com que o estado do Acre começasse a ter seu território ocupado na pata do gado por conta da expansão da pecuária. Entretanto, como em outras áreas da Amazônia, as noções de vazio demográfico e de território a ser colonizado, tão em voga no período, ignoravam os povos indígenas, ribeirinhos, seringueiros e caboclos, habitantes antigos da região. Por essa razão o Acre assistiu a conflitos fundiários entre os grupos de pecuaristas e madeireiros e os grupos de seringueiros e indígenas.

Durante as décadas de 70 e 80 o Acre protagonizou intenso processo de luta trabalhadora liderado pelos seringueiros na defesa da preservação dos recursos naturais e da posse da terra. O líder máximo deste movimento, Chico Mendes, foi assassinado por latifundiários próximo ao Natal de 1988. Sua morte causou comoção internacional diante da repercussão que a luta dos seringueiros havia tomado, para além dos fóruns locais e amazônicos. Antes de Chico Mendes o Sindicato dos Seringueiros havia tido outro presidente assassinado: era Wilson Pinheiro.

Durante a presidência de Pinheiro no sindicato, o movimento dos seringueiros associa-se à Teologia da Libertação – ala da Igreja Católica extremamente influente na América Latina daquele período e definida pelo viés da defesa dos mais pobres e vulneráveis – incorpora o método dos empates na sua luta (PIZARRO, 2014). Neste método os seringueiros faziam uma corrente, dando os braços, no meio da floresta e impediam os peões e suas motosserras de desmatarem para abrir caminho para a chegada do gado. Mulheres e crianças também participavam dos empates. As mulheres ficavam na linha de frente enquanto as crianças exerciam uma função de caráter psicológico em relação aos peões: arrefecer seus ânimos para que não disparassem suas armas. Durante os empates o movimento de seringueiros cantava o hino nacional e, em seguida, levava uma mensagem aos peões cujo conteúdo relacionava-se com a necessidade de preservação florestal e dos povos que nela habitam.

O produto do avanço do modelo baseado na pecuária, vigente até meados dos anos 80 no Acre, produziu deslocamento ou morte de populações, desmatamento e fez com que muitas famílias cuja vida estava ligada ao extrativismo se vissem na iminência de tornarem-se peões de gado nas novas fazendas, fugirem para a vizinha Bolívia ou migrarem para a periferia da capital Rio Branco (BROSE, 2014).

Ainda na primeira metade dos anos 80 os governos local e federal tentaram mediar o conflito por meio do uso de políticas de Reforma Agrária, provendo assentamentos em pequenos lotes desenhados pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). O problema estava no fato de que as atividades extrativas tradicionais têm por característica fundamental a sua dispersão territorial, de modo que a saída apresentada no primeiro momento não seria capaz de manter o modo de vida dos seringueiros.

Nesta década os debates internacionais sobre o desenvolvimento sustentável ganhavam fôlego: em 1987 o relatório Our Common Future caracterizava pela primeira vez, ainda que de maneira vaga, o conceito de desenvolvimento sustentável. Na mesma década o mundo ficara estupefato com os efeitos do Programa PoloNoroeste, financiado pelo Banco Mundial em parceria com o governo brasileiro: o asfaltamento da BR-364 entre Cuiabá e Porto Velho provocara o land rush para Rondônia, com proliferação desmesurada do impaludismo, avanço sobre terras indígenas e assassinatos, florescimento de economia predatória, acelerado desmatamento florestal com queimadas de centenas de quilômetros. Tudo documentado pelas lentes das câmeras de Adrian Cowell em “A década da destruição” e divulgado no exterior. No Acre, mais tragédia: o assassinato de Wilson Pinheiro e de Chico Mendes.

A soma de infortúnios dramáticos na década fez com que o governo Sarney tomasse medidas em nome da preservação ambiental: a apresentação do “Programa Nossa Natureza” em 1988 e a fundação do IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) no ano seguinte. Além de tudo, a proximidade da Eco-92, conferência internacional sobre o meio ambiente a ser realizada no Rio de Janeiro, fez com que o governo federal passasse a tratar o tema do meio ambiente com mais seriedade. Em meio a esta conjunção de crises, o governo complementa a sua resposta pela criação, em 1990, do modelo de Reservas Extrativistas (Resex) no decreto 98.897/90. Fruto das lutas sociais e da organização do Conselho Nacional de Seringueiros e da Aliança dos Povos da Floresta, a concepção legal das RESEX ensejou a fundação da Resex Chico Mendes, em Xapuri (AC) em 1990. Quase três décadas após a criação da Resex Chico Mendes, qual é a sua situação?

3. Resex Chico Mendes: 27 anos depois

A RESEX Chico Mendes espalha-se por sete municípios acreanos – Assis Brasil, Brasiléia, Capixaba, Epitaciolândia, Rio Branco, Sena Madureira e Xapuri – e granjeia 931.542 hectares, lar de 2.135 famílias (ICMBio, 2017). Diante da sua extensão há vários núcleos de habitação esparsos em seu território e 48 seringais. Em visita de campo foi possível observar alguns dos desafios da RESEX. Se o extrativismo da borracha foi o mote das atividades produtivas da região em tempos pregressos, atualmente as famílias que vivem no interior da reserva mantêm variadas fontes de renda: a agricultura de subsistência é plantada ora em roçados, ora às margens dos rios – especialmente culturas como melancia, arroz e feijão. Além disso, por volta de 70 famílias vivem da exploração tradicional da seringa, ao passo que cerca de outras 50 famílias complementam a renda com a exploração do açaí em meio à floresta, também por meio de práticas extrativistas tradicionais.

Quanto à exploração da castanha, também presente na Resex Chico Mendes, destaca-se artigo de Brose (2016) a tratar de estudo de caso sobre as cadeias produtivas de castanha-do-Brasil no Acre e na Bolívia. Sua tese fundamental é a de que a modernização da cadeia produtiva deste produto não foi capaz de soterrar as relações de exploração existentes na Amazônia, tais como a servidão por dívida, o trabalho infantil etc. O trabalho é fruto de estudo de caso realizado entre 2011 e 2014 em cidades da amazônia boliviana e do Acre.

Atividade tradicional na Amazônia, o extrativismo da castanha deu origem a cidades como Puerto Maldonado, no Peru, e Santarém (PA). As flutuações da oferta de castanha, típicas de atividades extrativas, mantêm as famílias em elevado nível de incerteza econômica o que, não raramente, degenera em pobreza.

Por volta de 1990 o Brasil – e o Acre, especialmente, na posição do maior produtor de castanhas do país – viu-se às voltas com uma mudança de paradigma no mercado internacional de castanhas, quando a União Europeia elevou as normas de qualidade para importação do produto. Esta medida fez com que os produtores acreanos se voltassem para o mercado interno brasileiro e renunciassem às exportações, por conta da dificuldade de cumprir as exigências fitossanitárias internacionais.

Entretanto, na Bolívia as consequências foram diferentes. Antecipando as medidas a serem tomadas pela União Europeia o governo boliviano, em parceria com o governo holandês e o Banco Mundial, criou uma fundação especialmente voltada para cuidar da produção de castanhas. Esta parceria incluiu também a criação de um laboratório de controle de qualidade e sanidade e um espaço para capacitação nas cidades da selva amazônica boliviana. Com estas medidas, as exportações de castanha da Bolívia para a Europa chegaram a representar cerca de 20% do total das exportações do país andino. Contudo, apesar do processo modernizante da produção, a castanha seguia dando emprego para cerca de 15 mil famílias do norte do país que trabalhavam em condições semelhantes aos ‘boias-frias’, o que significa que não havia proteção trabalhista conjugado a necessidade de embrenhar-se no meio da selva no período de chuvas, de modo a enfrentar a insalubridade por conta e risco. Brose recorda que a maior parte dos lucros seguia para as indústrias processadoras de castanha, ao passo que os salários seguiam baixos e a servidão por dívida era aspecto presente naquele contexto, bem como o trabalho infantil.

Já no Acre os trabalhadores da castanha viram sua renda reduzir-se por conta do o avanço da castanha boliviana, da redução da produção acreana e da redução nos preços do produto. Com a chegada do PT ao governo do Acre foi estabelecida política de preços mínimos ao produto e os trabalhadores, com apoio dos movimentos sociais florestais do Acre, – em especial a Aliança dos Povos da Floresta – lograram êxito na montagem da Cooperativa Central de Comercialização Extrativista do Acre (Cooperacre). Posteriormente o governo do Acre apoiou a iniciativa com uma série de incentivos e investimentos públicos. Vê avanços no modelo acreano: mobilização social para combater a exclusão social, acesso às políticas públicas, Estado comprometido com a erradicação da servidão por dívida, do trabalho infantil e do analfabetismo (BROSE, 2016). Malgrado a ocorrência destes avanços, Brose (2016) mostra-se cético ao pontuar para a insustentabilidade da produção extrativa de castanha sem inclusão social: nota que mesmo a Resex Chico Mendes vê a expansão da pecuária dentro do seu território, atividade vista como alternativa à castanha.

Esta é preocupação central de vários autores: a queda dos preços dos produtos do extrativismo, aliado à manutenção de técnicas rudimentares faz com que muitas famílias se vissem na iminência de migrar para a pecuária como forma de garantir o seu sustento e o de suas famílias.

Prado e Ribeiro (2011) também chamam a atenção para a expansão da pecuária dentro da Resex Chico Mendes. Atribuem este processo à redução dos preços da castanha e do látex, dois dos principais produtos extrativos da reserva e ambos subsidiados pelo governo local. A alternativa aos baixos preços de venda dos produtos extrativos coletados pelos assentados tem sido a criação bovina, o que eleva as áreas desmatadas. De fato, durante a visita de campo na RESEX Chico Mendes foi possível observar que o atual plano de manejo prevê que cada dono de colocação com mais de 300 hectares poderá desmatar até 30 hectares de floresta para roçado ou pecuária. O resultado de tal prática não poderia ser mais evidente: 20 mil cabeças de gado atualmente existentes na reserva. A razão é simples: o gado é mais rentável e de mais fácil manejo do que as atividades extrativas estimuladas dentro da RESEX.

Tourneau e Kohler (2011), por sua vez, investigam os equívocos e acertos de três projetos de desenvolvimento sustentável na Amazônia brasileira – a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (AM), a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Iratapuru (AP) e a RESEX Chico Mendes (AC). Em sua conclusão descrevem os elementos mais marcantes de cada um dos três locais, traçando pontos em comum. Dentre estes destaca-se o fato de que os projetos realizados nas três áreas possuem rentabilidade econômica abaixo de outras atividades típicas em suas regiões ou então dependem de aportes de agências externas para a sua manutenção. A principal conclusão trazida pelo artigo é a de que os ribeirinhos não se contentam com a estratégia extrativista tradicional proposta pelo movimento ambientalista, segundo o qual em vez de executarem tarefas ligadas à produção, os moradores deveriam tornar-se uma espécie de guardiões da paisagem, modelo bastante em voga no mundo rural europeu, especialmente francês.

Os autores identificam as contradições candentes entre a visão do ambientalismo e a dos moradores:

Querendo modernizar as relações sociais e libertar as populações da dependência social, elas fogem constantemente das relações pessoais que são esperadas pelos seus interlocutores. Mas, ao mesmo tempo, elas não oferecem alternativa para preencher as funções dessas relações sociais, especialmente a capacidade de enfrentar os imprevistos, mesmo que seja pagando caro. Assim, os projetos sustentáveis não configuram alternativas aos gargalos da produção extrativista. É que as redes antigas, apesar de comporem um sistema de opressão e exploração, eram também sistemas sociais que proporcionavam não só ferramentas, utensílios e alimentos, senão também uma razão de ser e uma posição social em um sistema de relacionamento (TORNEAU et al, 2011, p.194).

Logo, os projetos sustentáveis mostrar-se-iam insuficientes para abrir novos horizontes para uma vida engrandecedora a estes ribeirinhos.

Por fim, Márcio Souza (2005), romancista amazônico, aponta suas críticas ao modelo de desenvolvimento na Amazônia, com especial ênfase à realidade acreana. Souza enxerga as incongruências da tecnocracia lotada em Brasília durante o ocaso do regime militar que, à distância, teria comungado com a proposta de estimular a pecuária extensiva na Amazônia em regiões sem tradição neste tipo de atividade produtiva, como o Acre. Por outro lado, igualmente considera equivocada a proposta de extrativismo tradicional em reservas sugerida pelos seringueiros do Acre, sob a liderança de Chico Mendes, como alternativa para o desenvolvimento amazônico:

Chico Mendes era de Xapuri, quase na fronteira com a Bolívia. Em Cruzeiro do Sul, alguns quilômetros para o norte, não serviam mais. Era, portanto, absurdo focalizar-se nelas e apresentá-las como soluções de uso geral na região, como fizeram alguns ecologistas e certos movimentos de defesa da região. Nos parâmetros políticos de 1985, quando a ideia foi gerada, a luta por tais reservas extrativistas estava perfeitamente explicada. No entanto, este foi um conceito que muito foi alargado desde então, a ponto de se tornar uma das mais usadas medidas ‘de preservação’ do governo Sarney e, em termos políticos amplos, como espécie de proposta geral para a região, pois o ‘futuro’ da Amazônia estaria em sua total regressão à economia extrativista (SOUZA, 2005, p.94).

Souza compreende a opção de Chico Mendes pelas reservas extrativistas como uma “brilhante solução tática” para limitar os poderes do agronegócio, diante da incapacidade dos velhos proprietários extrativistas, os seringalistas, em lográ-la. Já que a oligarquia extrativista não estava em condições de defender o seu modelo, vencido pelas novidades tecnológicas e do suporte estatal à agropecuária e à especulação fundiária, Chico Mendes tenta e consegue mobilizar os seringueiros contra este câmbio radical do modelo de desenvolvimento, de seu modo de vida e em defesa da floresta em pé.

Souza defende a tese de que o líder seringueiro sabia das limitações de sua demanda de transformação dos seringais em reservas extrativistas e de como esta solução correspondia a problema local. Nem mesmo o restante do estado do Acre e ainda menos o restante da Amazônia teriam condições de tornar-se uma gigantesca reserva extrativista, ao menos não nos moldes do extrativismo tradicional. Entretanto, alerta para o fato de que, embora este não tenha sido o objetivo de Chico Mendes, haveria grupos econômicos poderosos, dentre os quais as empresas transnacionais da área farmacêutica, interessados na cristalização das relações de poder atuais. Este ‘congelamento’ do status quo implicaria na ausência de concorrentes para a realização de pesquisas aprofundadas sobre a biodiversidade amazônica. Souza (2005) finaliza suas críticas ao extrativismo tradicional ao assinalar a certeza de que

se o extrativismo na Amazônia não está morto, deve ser definitivamente erradicado por qualquer plano que respeite o processo histórico e a vontade regional. Mesmo porque a Amazônia não deve ser reserva de nada, nem celeiro, nem estoque genético ou espaço do rústico para deleite dos turistas pós-industriais (SOUZA, 2005, p.95).

4. Conclusão

Em pouco mais de um século de pertencimento ao Brasil o estado do Acre notabilizou-se pela importância das atividades extrativas em meio à floresta, mas também pela preocupação com a preservação ambiental. O esforço hercúleo do seringueiro local não se deu apenas na luta contra o impaludismo e contra os animais peçonhentos no interior da floresta. Ante a sua indignante situação de miserabilidade e a prisão auto-inflingida em eldorado que inúmeras vezes transformou-se em inferno verde, ainda encontrou forças para pelejar e fundar uma República. Diante da iminência do contra-ataque boliviano reúne-se aos poetas e intelectuais na frente de batalha. Perde. Reconquista. Alcança a anexação do Acre ao Brasil. É triunfo da vontade audaciosa de homens e mulheres comuns, praticamente ignorado pelos demais brasileiros.

Com o final do primeiro ciclo da borracha o Acre viveu as agruras da estagnação durante décadas, parcialmente superadas em momento exíguo da Segunda Guerra, mas ainda marcada pela exploração do seringueiro. Durante o ocaso da ditadura militar enfrentou o avanço da pecuária e, movido pela defesa da floresta e de seu futuro, teve êxito em construir institucionalmente o modelo das Resex.

Quase três décadas após a criação da mais célebre de todas as Resex, algo mudou. É nítido que a antilogia vislumbrada por Euclides da Cunha em sua viagem à Amazônia, na qual a natureza mostrava-se em sua plenitude ao mesmo tempo em que registrava a morte miserável da sua sociedade não é mais algo possível. Natureza e sociedade amazônicas fundiram-se definitivamente. Durante entrevista ao noticioso ‘O Estado de São Paulo’, Unger traduziu magistralmente esta impressão:

a Amazônia não é só a maior coleção de árvores do mundo, é também um grupo de pessoas. Sem alternativas econômicas, essas pessoas serão impelidas, inexoravelmente, a atividades que resultarão na devastação da floresta. E, aí, a questão ambiental se transformará no que foi a questão social para o presidente Washington Luís – caso de polícia. É difícil defender uma vasta região sem projeto. As tarefas do desenvolvimento e da preservação estão irremediavelmente entrelaçadas. Sua visão colide com a de uma boa parcela do ambientalismo. Ambientalismo carente de um projeto econômico construtivo é inconsistência. (GREENHALGH, 2008).

Ao longo do tempo corre-se o risco de se ter reservas extrativistas sem extrativismo devido à conversão da atividade produtiva para a criação bovina, para a agricultura ou mesmo para a exploração madeireira. É estratégia amplamente insuficiente tanto para a geração de oportunidades aos seus cidadãos quanto para a preservação florestal. Entretanto, como sugere Unger, a resposta não pode ser apenas o reforço da fiscalização ao desmatamento, mas também a consecução de oportunidades econômicas aos acreanos e amazônidas, sob pena de presenciarmos a manutenção de ciclos indefinidos de pobreza em nome da preservação da natureza. Contudo, a sociedade brasileira aceita cada vez menos este paradoxo.

A luta pela preservação da floresta e de seus habitantes ganha novos contornos no Acre, mas segue central à Amazônia. Contemporaneamente, a urgência em conciliar o desenvolvimento ao ambientalismo é um dos maiores desafios impostos àqueles que vivem e aos que refletem não apenas sobre as unidades de conservação ou sobre o extrativismo mas, de modo mais amplo, sobre a Amazônia.

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Felipe Iraldo de Oliveira Biasoli

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Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.