A Insistência do Confinamento Racial na Academia Brasileira: um breve ensaio sobre a universidade no contexto pós-ações afirmativas – Número 145 – 04/2017 – [27-31]

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Logo nas primeiras cenas do fundamental documentário I Am Not Your Negro (2017), dirigido por Raoul Peck, vemos o entrevistador Dick Cavett perguntar a James Baldwin se o negro norte americano ainda não está satisfeito diante de todas as supostas conquistas advindas das lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos. Em um tom que transparece genuína surpresa e curiosidade, Cavett indaga: “Por que os negros… Por que eles não estão otimistas? (…) Eles então melhorando tanto, quero dizer, há prefeitos negros, há negros em todos os esportes, há negros na política” (tradução livre).

Essa espécie de pergunta ou curiosidade – que podemos adjetivar até mesmo de simpática – dirigida a pessoas negras não se restringe a situações tais como a entrevista narrada ou seu contexto geográfico e histórico. Gostaríamos de explorar neste breve ensaio as durações e propagações de perguntas dessa natureza em um ambiente específico, a universidade brasileira. Devemos adiantar, contudo, que o tom desse texto é ensaístico. Assim, pretendemos expor algumas reflexões, por vezes de modo um tanto abrupto, focando mais em apresentá-las do que necessariamente aprofundar uma análise mais minuciosa; exercício esse indispensável que pretendemos desenvolver em momentos futuros.

Entendendo a universidade como sendo estruturada e acionada a partir de um componente de “confinamento racial” (Carvalho, 2006), pretendemos observar como, frente às transformações ocorridas em decorrência das recentes políticas de ações afirmativas, tal confinamento – que alguns poderiam dizer extinto – é atualizado por meio de diversos mecanismos. Um deles funcionaria de modo análogo às perguntas feitas a Baldwin: sempre permeado de uma certa surpresa diante da necessidade de enfrentar continuamente os efeitos das engrenagens racistas que perduram no tempo.

Quando nos deparamos com o desafio de escrever sobre uma questão “contemporânea” ou “atual” nas ciências sociais, como é o caso deste ensaio, abrimos um leque de assuntos relativamente grande. Este campo do conhecimento, quando evoca para si a qualidade de engajado, dedica-se a trabalhar com “problemas sociais”, de desigualdades de classe, de gênero. Há, no entanto, alguma resistência em incorporar mais a fundo o tema das relações raciais no Brasil, em que pese o fato de que há muito vem sendo trabalhado por diversos autores, tais como Guerreiro Ramos, Abdias do Nascimento, Beatriz do Nascimento, Lélia Gonzales, Sueli Carneiro, para citarmos apenas alguns. Deparamo-nos, então, com a seguinte questão: o que significa o confinamento racial permanecer uma questão contemporânea no contexto pós-implementação das ações afirmativas?

É inegável que as políticas de ações afirmativas adotadas recentemente nas universidades brasileiras introduzem novas dinâmicas e outros elementos de análise ao tema das relações raciais. Os intensos debates acerca de sua adoção, que se estendem por décadas, são levados adiante enquanto reflexão sobre os efeitos advindos de sua implementação. Inevitavelmente, em paralelo às conquistas dos segmentos negros da população no que diz respeito ao acesso à universidade pública, novos desafios se impõem.

Nesse sentido, retomamos as ideias que José Jorge de Carvalho (2006) desenvolveu há pouco mais de dez anos, ainda no seio dos debates e lutas travadas no processo de consolidação das políticas de ações afirmativas para negros e indígenas na Universidade de Brasília. O autor demonstrou que dois mecanismos, que possuem entre si uma relação de semicausalidade, fundamentam o racismo acadêmico: a exclusão via política estatal e uma certa indiferença ou anuência dos acadêmicos frente a essa notória exclusão. Carvalho rememora o fato de que o Estado brasileiro já teve políticas explícitas de eugenia que incidiram na educação e traz dados acerca da configuração racial nas chamadas grandes universidades brasileiras (USP, UFRJ, UFPR, UnB, e etc.). Nesse sentido, o processo das ações afirmativas funcionou de modo a evidenciar como a formação do mundo acadêmico brasileiro se deu enraizada, desde sua formação, em um regime de confinamento racial. Tal confinamento, o autor destaca, diz respeito ao corpo docente e discente negro e indígena, que enfrentou e segue enfrentando uma série de silenciamentos e barreiras no ambiente universitário, mas igualmente diz respeito aos brancos, que se encastelaram sem muitos questionamentos em um universo esmagadoramente branco em um país de composição racial majoritariamente negra – um confinamento, notemos, que ocorre não apenas no que tange à interlocução acadêmica, mas também à produção de conhecimento.

Carvalho afirma, ainda, que o que caracteriza esse confinamento é precisamente o silêncio e impressionante naturalidade dos acadêmicos brancos frente a um quadro universitário formado pela raríssima presença de discentes e, sobretudo, docentes negros dentro das universidades brasileiras. Tal contexto racial permitiu uma produção acadêmica marcadamente branca – o que, vale supor, não se colocava sequer como uma questão para estes acadêmicos, já que essa produção branca parece se pretender neutra, universal e capaz de dar conta de toda a sociedade brasileira. Em suma, nas palavras de Carvalho, o “resultado dessa segregação racial que já atravessou quatro gerações de universitários é uma prática, quase nunca submetida à crítica, dos acadêmicos brancos pretendendo falar por todos e para todos.” (2006, p. 100).

Desse modo, a “primeira crise epistemológica provocada pelas cotas é questionar a neutralidade racial do campo teórico” (idem), explicitando o caráter racializado da produção de conhecimento. Entre outros efeitos, na esteira dessa crise estão as reflexões que reivindicam o reconhecimento e importância das produções negras, por tanto tempo invisibilizadas, bem como a constatação de que os discursos, assim como a atenção que lhes é oferecida, estão relacionados aos seus enunciadores – o que incontornavelmente reflete assimetrias de força e de poder presentes. Seguimos, portanto, procurando afirmar toda uma literatura científica negra.

A necessidade desse movimento de afirmação, no entanto, não se confunde com os mecanismos que agem no sentido de elaborar e manter o confinamento racial. Vale, aqui, retornar ao filme a que nos referimos nas primeiras linhas deste ensaio. Baldwin afirma que “[0] que as pessoas brancas precisam fazer é investigar no fundo de seus corações por que foi necessário ter um “negro” para começo de conversa, porque eu não sou um “negro”, eu sou um homem, mas se você pensa que eu sou um negro, quer dizer que você precisa disso.” (Tradução livre). Ressalte-se que o termo “nigger”, que em geral traduzimos como “negro”, possui uma particular carga ofensiva no contexto americano. Nessa linha de pensamento, é preciso encarar a fundo o que perguntas como “o negro não está satisfeito? O que ele ainda quer?” carregam em suas essências: parece haver aí uma dificuldade em encarar “o negro” verdadeiramente enquanto um interlocutor, sem pretender confiná-lo a círculos fechados, de ação, de pensamento, de existência. Percebe-se ainda a dificuldade em considerar o que está sendo dito fora da lógica impressa pelo racismo de massa homogênea e sem singularidades no que se refere a grupos não-brancos.

A invenção do “negro” a partir de uma lógica inferiorizante (Santos, 2005) e a dificuldade de boa parte da sociedade, e em particular da academia brasileira, em enfrentar essa construção e combater seus efeitos desembocam na atualização dos mecanismos de confinamento racial. A necessidade de compreender as diferenças entre os movimentos de confinamento e aqueles de afirmação pode ser melhor traduzida no que diz Gislene Aparecida dos Santos: “A história e a história das ideias demonstram que houve lutas e contraposições a essas teorias [racistas]. Mas a força do racismo está, justamente, em se apropriar dos argumentos usados pelos anti-racistas para contestá-los, transformando-os em novas teorias racistas.” (2005, p. 167).

Assim, nosso argumento, é preciso por em evidência, não se dá no sentido de ignorar as diferenças ou a construção histórica de uma sociedade marcada por estruturas intrinsecamente racistas, tampouco em pregar algo traduzido pela noção de “colorblind” ou pela defesa de uma igualdade cega às singularidades em jogo ou às assimetrias criadas ao longo dos tempos. A proposta, bem ao contrário, é fazer o exercício de levar ao limite as potencialidades de transformação dessas singularidades.

É precisamente aqui que tentamos entender um pouco mais como a engrenagem racista funciona, seguindo Kabengele Munanga quando afirma que “[p]recisamos entender melhor como o racismo opera, desvendando suas raízes intelectuais e demonstrando ponto por ponto a sua dinâmica e metamorfose contemporânea a fim de desenvolver novas estratégias para combatê-lo” (prefácio ao livro de Santos, 2005, p. 12). A operação do racismo se dá de modo a engessar questões, recodificando-as, para, então, tentar neutralizar aquilo que desponta como possível desestabilização do racismo acadêmico. Dito de outro modo, a cada vez que as vozes se insurgem, parece ocorrer uma atualização dos mecanismos de confinamento racial que passam, por exemplo, a relegar a produção de autores negros a um certo campo de temas circunscrito a um universo negro, desconsiderando o fato de que autores negros, assim como autores brancos, escrevem sobre os mais variados assuntos. Agem nessa mesma direção mecanismos tais como aqueles que fazem com que cada grupo estude a si mesmo (enquanto o segmento branco em geral mantém seu status de neutralidade passando ao largo de um exercício mínimo de reflexividade); a insistência em qualificar as pesquisas do corpo universitário negro e indígena como militância no sentido de algo menor, não-científico e consequentemente não merecedor de respeito acadêmico; além daquilo que podemos chamar de um apartheid de citações, que exclui de uma verdadeira interlocução as produções negras e indígenas, convidando-as, quando muito, a exercícios de reflexão confinados aos seus próprios coletivos.

Nesse passo, evidencia-se um dinamismo que possibilita a atualização constante da máquina racista, ao mesmo tempo em que busca engessar aquilo que é colocado em questão por vozes dissonantes. De alguma forma, após certa “consolidação” das políticas de ações afirmativas e dos consequentes debates sobre racismo nas universidades, estabeleceu-se a ideia de que a academia reproduz o racismo estrutural do Brasil. Entretanto, se, por um lado, “[é] um fato histórico, portanto, que a universidade pública no Brasil foi instalada explicitamente sob o signo da brancura”, por outro, “[e]nquanto esse pressuposto não for criticado e revisado, continuaremos partícipes desse ato racista inicial” (Carvalho, p. 96). O argumento de Carvalho alerta para as práticas que, deliberadamente ou pela simples negligência, se revelam atos de violência racial mantenedoras de um ambiente de segregação e que dão continuidade ao confinamento racial dentro da academia. Não se trata, neste ensaio, de localizar e atribuir culpas, mas de encarar um quadro marcadamente segregado que se apresenta diante de nós: se a inércia – isto é, permanecer inquestionadamente em um ambiente acadêmico massivamente branco – é suficiente para dar continuidade ao confinamento racial, é preciso tomar para si a responsabilidade de aniquilar o pressuposto do “signo da brancura”, para, a partir daí, almejar qualquer possibilidade de ruptura e transformação. É nessa ótica que poderíamos chamar de insistência do racismo essa engrenagem que se move com a força do acúmulo dos tempos, ainda que apenas pela inércia que por si só já é suficiente para lhe dar continuidade. É preciso, portanto, livrar-nos dos engessamentos e obstáculos criados pela máquina racista, e, então, seguirmos com os encontros potentes. As ações afirmativas, quando liberadas em toda sua potência transformadora, figuram como um desses encontros.

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Barbara Pimentel da Silva Cruz
Noshua Amoras de Morais e Silva

ALS, Hilton. Capturing James Baldwin’s Legacy Onscreen. The New Yorker, Nova York, edição de 13 de fevereiro de 2017. Disponível em: <http://www.newyorker.com/magazine/2017/02/13/capturing-james-baldwins-legacy-onscreen>. Acesso em 30 de março de 2017.

CARVALHO, José Jorge. O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro, in Revista USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006.

PECK, Raoul (dir.). I Am Not Your Negro [filme]. Documentário. 95 min. EUA, França, Bélgica, Suíça: Magnolia Pictures. 2017.

SANTOS, Gislane Aparecida dos. A invenção do “ser negro”: um percurso das idéias que naturalizaram a inferioridade dos negros. Prefácio de Kabengele Munanga. 176p. São Paulo: Educ/Fapesp; Rio de Janeiro: Pallas, 2005.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.